sábado, 1 de março de 2014


Análise:

O Sonho de Wadjda (وجدة  / Arábia Saudita / 2013) dir. Haifaa Al Mansour

por Lucas Wagner

O Sonho de Wadjda é uma obra doce com uma protagonista idem, e ainda é relevante por ser o primeiro filme totalmente filmado na Arábia Saudíta e, o que é mais importante, é o primeiro longa metragem dirigido por um mulher árabe. Isso mesmo. E o filme dessa talentosa estreante, Haifaa Al Mansour, trata justamente da opressão sob a qual vivem as mulheres de seu país. Só que ao invés de criar uma obra densa, a diretora e roteirista optou por uma abordagem mais leve, contando a história de uma garotinha cujo objeto de desejo é algo capaz de deixar as mulheres do país chocadas: uma bicicleta, para apostar corrida com seu melhor amigo.

Al Mansour usa sua história simples de maneira eficaz para mostrar o cotidiano daquelas mulheres e meninas. Vivendo numa realidade na qual permitir ser vista por um homem é sinal de impureza, elas se cobrem completamente e, à vista de um ser do sexo masculino, desaparecem de vista. Não que as garotas aqui sejam muito diferentes das encontradas no resto do mundo, já que manifestam interesse por outros garotos e por fofocas sobre relacionamentos. E se a única possibilidade de se engajarem em uma relação amorosa é através do casamento, a notícia de que uma delas (garotas de no máximo 12 anos) se casou é motivo para congratulações e até mesmo piadinhas de outras meninas, tão imaturas no que diz respeito à relacionamentos. Elas manifestam sinais claros de uma existência alienada da sexualidade, e se já estava na hora de pararem de dar risadinhas  ao som de uma palavra como “menstruação”, ainda não resistem a rir cheias de vergonha.

A diretora acerta na sensibilidade de mostrar várias dessas meninas escapando pelas frestas das leis, como ao planejarem encontros fugazes com rapazes (isso são as mais ousadas que fazem) ou até em vista de prazeres simples, mas vistos como pecados, como pintar as unhas dos pés, algo que deve ser feito as escondidas e sempre com alguém de guarda. As hipocrisias existentes não são deixadas de lado pela cineasta, e a figura da coordenadora do colégio, Ms. Hussa (Ahd), é um sinal claro de ambivalência, pois ela pode pregar com toda a força e paixão a disciplina e reserva com que as mulheres devem viver, mas ela mesma usa roupas estilosas quando no colégio (no que seria um péssimo exemplo para as alunas, segundo a lógica daquela sociedade), como se por colocar-se no pedestal que criou tivesse direito a esses agrados, e ainda existem boatos que falam sobre ela e um amante que a visita de noite.

Assim, Al Mansour demonstra sua inteligência ao ir contra o mais senso comum, abordando sua temática com mais riqueza, e isso muito também através da personagem da mãe da protagonista, figura extremamente complexa. Não é surpresa que naquela sociedade os homens tenham mais de uma esposa, mas como fica o sentimento dessas mulheres ao terem que dividir o marido? E é esse o grande dilema da personagem, já que o pai de sua filha está à caça de mais uma mulher, e ela passa a sentir um profundo desamparo e fazer o pouco que pode para tentar convencer o marido do contrário (e é mais um acerto da obra que esse homem não seja visto como um antagonista, mas como um cara tridimensional e amoroso, que faz o que faz não por maldade, mas porque foi criado assim). Ora, não é só porque vive numa sociedade na qual essa situação é comum que ela vai deixar de sentir ciúmes. E ainda a excelente performance de Reem Abdullah permite que a personagem se torne mais e mais complexa, pois é uma mulher repleta de energia com talentos que talvez nunca sejam explorados, algo que pode ser evidente também pelo figurino, com as roupas elegantes e de cores vivas que usa em casa, em contraponto à burca que usa nas ruas. Quando canta (lindamente) perto de sua filha, a pequena sugere que a mãe poderia ser cantora, algo que deveria vir como um elogio mas é recebido como ultraje. Até mesmo coisas mais simples, como o possível emprego no hospital, é algo que se ela chega a pensar sobre, é com muita culpa e relutância. Esses comportamentos em nenhum momento lhe tiram as características de mulher forte e amorosa que tão bem lhe definem.

Mas falar de O Sonho de Wadjda é mesmo falar de...Wadjda. A garotinha vai contra o estereótipo de meninas de sua idade e nacionalidade, já que gosta de rock, é extrovertida, brinca tranquilamente com meninos, bate boca com homens, gosta de usar adereços que são visíveis, e ainda é esperta e um tanto maliciosa. Assim, o seu figurino é eficaz ao permitir que vejamos claros sinais de sua personalidade, algo pouco comum dentre as mulheres árabes, e desde a primeira cena do filme a diferença dela com as outras meninas fica clara quando a vemos usando um All-Star com cadarços azuis enquanto suas colegas usam o sapato preto do uniforme. Não que Wadjda seja alguma espécie de revolucionária (embora seja possível que ela amadureça para tal), mas é simplesmente uma garota que gosta de ser e expressar-se como bem lhe agrada, e se ela obedece leis e costumes sociais, é só até o ponto em que isso não se torna inconveniente para ela. Aliás, a menina encontra soluções um tanto criativas para contornar dilemas que surgem, como pintar de preto a parte branca de seu All-Star depois que leva uma bronca por não usar os sapatos do uniforme.

Nenhuma garota pode andar de bicicleta, e todo mundo repete isso à ela, mas sua determinação e desligamento das regras acaba encantando muitas pessoas em seu caminho. E se nós mesmos nos encantamos com a menina, é também em grande parte devido à bela performance de Waad Mohammed, expressiva e sapeca o tempo todo, mas também sendo capaz de demonstrar emoções mais íntimas, como no olhar de carinho que muitas vezes tem pela mãe, compreendendo um pouco a dor dela e tendo maturidade o suficiente para não oferecer soluções infantis para a mãe, sabendo respeitar seus sentimentos frente à sua complicada situação.

Al Mansour consegue empregar um bom humor exemplar à obra, até mesmo frente à alguns absurdos do Islamismo, como quando Wadjda recebe uma bronca da mãe por ter deixado o Alcorão aberto, pois assim “o diabo iria cuspir nele”. A diretora demonstra ainda inteligência ao confrontar materiais do mundo moderno (como celulares), com aquele universo que parece ter parado no tempo. A trilha sonora do fascinante músico Max Richter também é outro elemento de qualidade na obra, principalmente pela parcimônia com que suas composições são usadas pela diretora, muito embora alguns dos belos temas criados pelo músico por vezes soem um pouco densos demais para uma obra que almeja a leveza.

Dito tudo isso, O Sonho de Wadjda é um filme delicioso de assistir, conseguindo cativar o seu espectador para tratar de uma temática séria que, por incrível que pareça, não soe datada em pleno século XXI.

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