sexta-feira, 15 de maio de 2015


Crítica:

Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road / 2015 / Austrália) dir. George Miller

por Lucas Wagner

Mad Max – Estrada da Fúria é um filme cujo vilão carrega uma banda de heavy metal em seu comboio para manter uma escala épica em sua empreitada. Só isso bastaria para classificar o longa como algo único, ou no mínimo, peculiar. Mas essa volta de George Miller à franquia que fez dele um cineasta e de Mel Gibson um astro de ação ainda vai muito além, e se transforma em um verdadeiro Hosana à loucura.

Funcionando tanto como reboot quanto continuação da franquia, Estrada da Fúria atualiza os “motivos pra insanidade” adicionando a escassez de água e alimentos à falta de petróleo, potencializando o comportamento primitivo/instintual dos protótipos de humanos que habitam aquele universo. E Miller segue a lógica que foi criando ao longo da franquia, de aumentar, a cada capítulo, o absurdo daquele mundo, mas aqui vai bem além de um ou dois elementos insanos a mais, e atola seu filme de situações e personagens completamente fritos, desde os soldados “meio-vivos” que usam humanos como bolsas de sangue (sendo que esses ainda tem as informações sobre seu tipo sanguíneo tatuadas nas costas), passando pelas gírias envolvendo cromo, até a idolatria do modelo de motor V-8, que ganha contornos ainda mais exaltados na perspectiva daqueles indivíduos de, quando mortos, partirem para o paraíso de Valhalla que, não por acaso tem a inicial “V” e oito letras, ao todo.

E é por uma construção visual minuciosa que Miller e seu designer de produção, Colin Gibson, conferem uma riqueza ímpar à sua narrativa, com diversos elementos feitos de ossos misturados com objetos de metal, uma fortaleza grandiosa que reflete a grandiloqüência de seu vilão (e interessante que a “sacada” de onde fala parece a boca de sua máscara), que ainda tem um harém que mais parece uma enorme gaiola, apenas mais uma parte funcional de uma simulação de império que conta ainda com ordenha de mães (sério) e hortas. Mais curioso ainda talvez sejam os carros, esses os elementos primordiais de qualquer Mad Max, e que aqui assumem diversas modalidades de misturas de carcaças de outros automóveis, às vezes parecendo porcos espinhos e outras até mesmo carros de luxo acoplados a tanques, sem esquecer, é claro, da citada banda de heavy metal que tem um carro completamente adaptado às suas necessidades. As tribos vistas também ganham uma diversidade maior, e Miller tem a criatividade de, mesmo de relance, apresentar modalidades de sobreviventes tão peculiares como aqueles que vagam pelo deserto enlameado como gazelas em pernas de pau. Interessante notar ainda o descompromisso de Miller com o politicamente correto ao usar formas físicas de alguns personagens deformados para causar uma evidente sensação de desconforto no espectador, ao passo que ele mesmo é inteligente ao se adaptar a contextos sociais atuais e tirar as mulheres de seu papel de meros figurantes ou, no máximo, coadjuvantes, como tinham nos anteriores, e aqui as colocar como figuras fortes e independentes, se revoltando contra uma cultura machista.

Aproveitando que citei as mulheres, Charlize Theron se destaca com facilidade como a personagem mais intensa do filme, a Imperatriz Furiosa, capaz de se entregar a acessos de ódio que a tornam uma máquina mortal, mas trazendo sempre uma voz serena, triste como seu semblante tradutor de uma história trágica, numa gama de emoções que Theron equilibra com maestria, chegando a dividir com o próprio Max o papel de protagonista. Falando nele, Tom Hardy pode não ter aqui o carisma de Gibson, mas manda bem ao compor um personagem tão auto-centrado e solitário que a maior parte das falas parecem monólogos resmungados, enquanto Nicholas Hoult mais uma vez demonstra a capacidade de explorar ao máximo um personagem coadjuvante. Ah! E, claro, Melissa Jafer, com quase oitenta anos, expressa um vigor incrível e uma capacidade admirável de descer o cacete.

Trazendo como centro absoluto as sequências de ação, Miller se entrega a exageros deliciosos no crescendo de absurdo ao qual se propõe, tanto de forma mais grotesca (a tempestade de areia) como em elementos mais moleculares, embora igualmente geniais, como o guitarrista que insiste em seu solo mesmo sob porrada. Acaba que Estrada da Fúria, com sua trama simples e focada nas possibilidades de ação, vai ganhando uma energia frenética ao ponto da taquicardia, com Miller se dando o direito de explorar a sensação de um frame rate mais baixo que se traduz na experiência de movimento acelerado dos personagens, o que confere um sabor diferente, estranho a princípio, mas gradualmente mais empolgante, inclusive funcionando na montagem fluída que consegue coadunar as alucinações de Max com suas porradarias (e a sequência de ação na caverna, no início, por isso mesmo acaba ganhando um caráter de pesadelo). É um filme tão confiante nesse seu propósito de chutar bundas, que se permite o direito de construir ação sem que a vejamos, e ainda mostrar, sem o mínimo peso na consciência, personagens saindo tranquilos de acidentes horríveis, tudo isso colorido pelas tonalidades fortes da fotografia de John Seale, que aqui promove diversas experimentações em busca de tons belos, tanto com o sol árido como com a noite azulada com focos de faróis que conferem um efeito bem bonito.

Filme puro em sua proposta de funcionar como um verdadeiro exercício de insanidade, Estrada da Fúria talvez seja o melhor filme da franquia, mesmo comparado com Guerreiro da Estrada. A intensidade que alcança, assim como o compromisso declarado com o nonsense, conferem um valor único a uma produção que alcança estágios raros na fritação.