terça-feira, 4 de março de 2014


Análise:

A Imagem Que Falta (L’image Manquante / 2013 / França, Camboja) dir. Rithy Panh

Por Lucas Wagner

Assim como fez Petra Costa em Elena, o cambojano Rithy Panh busca usar o Cinema como uma forma de reconciliar-se consigo mesmo, buscando fazer sentido do que sua vida se tornou depois de um evento externo devastador. Se para Costa era o suicídio da irmã, aqui são os anos de servidão brutal ao Khmer Vermelho, que dizimou (física e espiritualmente) não só a família de Panh, mas diversos de seus conterrâneos, sob o pretexto de criar uma sociedade comunista e coletivista. Dessa forma, quando no início do filme somos sufocados por imagens ininterruptas de ondas do mar que açoitam a tela, podemos sentir um pouco da asfixia e desespero com que Panh vive desde sua infância, e somos então guiados por ele através de uma viagem íntima e assustadora.

Utilizando-se de imagens de arquivo e outras filmadas com bonequinhos de argila (aparentemente feitos pelo próprio diretor), A Imagem Que Falta conta com uma narração em off (de Randal Douc, mas representando Panh) que surge monocórdia, quase tediosa, trazendo em si uma espécie de frieza construída com os anos de intenso sofrimento. As palavras escritas pelo diretor vem, no entanto, repletas de angústia quase poética ao se referir aos eventos de sua juventude, quando este se entremeia em reflexões acerca de como no meio da vida a infância volta a aparecer, e como não parece mais ser tanto ele que busca sua infância, mas como esta parece buscá-lo. Essa sensibilidade ainda fica evidente quando o diretor se permite declarada apreciação, que surge doída, por pessoas como seu pai (“Às vezes, o silêncio é um grito desesperado”) ou sua mãe, em suas silenciosas e íntimas revoltas, que no fim levaram à ruína dos dois, separadamente. Em outros momentos, o diretor se entrega a devaneios imagísticos e dolorosamente bonitos, como os bonequinhos de crianças que acabaram de morrer e então são vistos voando felizes no céu aberto.

Com os bonecos de argila, Panh é inteligente ao muitas vezes mostrar um boneco de si mesmo criança com uma vestimenta distinta do preto coletivo, usando então uma camisa amarela com toques vermelhos, em tons fortes e chamativos, numa representação da ser infantil que ainda habitava o seu corpo maltratado. Esse bonequinho em diversos momentos aparece sentado e com a boca aberta e olhos arregalados, numa espécie de grito que nunca sai, se posicionando no meio de outros bonecos trabalhando e sofrendo, numa representação do desespero íntimo que Panh sentia mas não expressava naquele tempo. Fascinante, diga-se de passagem, é o momento em que Panh troca fisicamente (vemos seu braço realizando a ação) seu boneco com uniforme preto pelo de camisa colorida, num momento em que ele se permite um delírio infantil que o lança para longe daquela realidade.

Mas Panh ainda consegue ser objetivo na descrição das atrocidades cometidas pelo Khmer Vermelho, e assim explora não apenas os atos de violência física, seja na agressão direta, seja na fome que obrigavam seus “servos” a passar pelo “bem do coletivismo”, ou ainda mesmo ao serem obrigados a trabalhar escutando slogans sobre a “bondade” do Kampuchea Democrático. Com o pretexto de estarem construindo uma sociedade igualitária, coletiva e unida, o governo obriga seus servos a trabalharem brutalmente hoje para “colherem os frutos amanhã”, como se isso justificasse a brutalidade com que tratava os cambojanos. O governo ainda utilizava a mídia como forma de propagação de seus valores, tanto para seus membros, como para o resto do mundo que, ao verem as imagens de crianças arando terra com um sorriso e uma expressão determinada, parecia não enxergar os horrores que realmente ocorriam ali.

O pior é que, como Steve McQueen trabalhou em seu poderoso 12 Anos de Escravidão, esses anos de trabalho forçado e contato direto com a violência não serviram apenas para machucar no sentido físico, mas para destruir a sensibilidade e individualidade daquelas pessoas, que em certo ponto foram obrigadas a adotar a frieza como defesa contra o cotidiano. Assim, só fica mais triste (e fascinante) que a dor de Panh tenha sobrepujado a frieza, e que assim o diretor tenha buscado, duas vezes já, propagar para o mundo toda a sua angústia que por anos foi obrigado a guardar.

Pois A Imagem Que Falta é a segunda tentativa de Panh de retratar cinematograficamente os eventos que destruíram sua vida. A primeira vez (que não assisti) lhe soaram insatisfatórias e incompletas. No entanto, essa segunda acabou caindo na mesma situação, mas Panh aparentemente amadureceu como ser humano, e compreendeu que por mais que tente, nunca conseguirá entrar em perfeita harmonia consigo mesmo, não depois de tudo o que já passou. Li há pouco tempo que “o Cinema é um antídoto para o desamparo”, e isso é verdade, só que em parte, pois esse antídoto funcionará “apenas” como uma tentativa de compreensão de algo que é incompreensível. Como o próprio Panh chega a afirmar, ele nunca encontrará a imagem que falta, aquela que juntaria tudo num grande painel que finalmente faria sua vida fazer sentido. E o diretor mostra compreender isso desde as cenas iniciais, quando filma diversos rolos de filme e negativos bagunçados, remexidos e estragados, chegando a estar amontoados um em cima do outro como se, depois de muito trabalho, Panh tivesse aberto mão dessa procura insana de uma imagem ideal.

Não que por ser conscientemente apenas uma tentativa seus esforços sejam menos válidos. Como comentei em meu texto sobre A Grande Beleza, o fazer Arte pode ser doloroso e até mesmo frustrante, mas também é irresistível como uma forma de elaboração de uma compreensão do mundo que ninguém além de si mesmo pode oferecer. Então, assim como Petra Costa no citado Elena, é visível que Panh saiu de sua nova experiência cinematográfica mais maduro e em melhores termos com o seu passado. Seus pesadelos e angústias nunca acabarão, mas pelo menos o diretor parece ter sido capaz de falar, através da Arte, sobre sua devastação emocional, empreendendo o que foi, tenho certeza absoluta, uma experiência íntima e difícil.

Como os bonequinhos que Panh afirma ser tão fáceis de fazer, o ser humano é também extremamente frágil, e experiências como a que o diretor passou são mais do que suficientes para destruir o mais forte dentre nós. Sua grande sorte (e de todo o mundo, diga-se de passagem) é a existência de uma forma de comunicação como a Arte para expressar um pouco do que sente.

2 comentários:

  1. Ótimo - você não acha que este filme deveria ser exibido nas escolas nas aulas de história? Claudio

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    1. Com certeza seria bastante proveitoso se fosse exibido em aulas de história, geografia e até sociologia...

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