sábado, 29 de junho de 2013



Crítica O Homem de Aço (Man Of Steel / 2013 / EUA) dir. Zack Snyder

por Lucas Wagner

  Para ser bastante sincero, o superman está bem longe de ser meu herói favorito. Sua invulnerabilidade, força hiper-humana, ao mesmo tempo em que suas crenças exacerbadas em valores morais e éticos, na bondade humana, etc, tornavam, a meu ver, o personagem uma figura unidimensional e artificial, um estereótipo de herói que só busca o bem e que não tem um pingo de complexidade. Pois bem, agora chegamos à esse O Homem de Aço, dirigido Zack Snyder (do excelente Watchmen e dos bacanas 300 e Madrugada dos Mortos) e “abençoado” por Christopher Nolan (produtor e conselheiro do projeto), e o resultado é...é lindo, sinceramente. Um filme forte, que volta às origens do Superman para desenvolver o personagem de forma a torná-lo um herói complexo e admirável que realmente sente o peso do mundo sobre seus ombros.

  O Superman aqui não é uma figura inerentemente boa. Ele é um ser moldado pelas contingências que foram estabelecidas por modelos específicos: seus pais adotivos e seu pai biológico. E é a força com que enxergamos essas figuras que permite que compreendamos porque Clark Kent se torna o herói que acredita na raça humana como acredita, e se dedica a salvá-la. Sua mãe, Martha Kent (Diane Lane), em certo momento, guia o Clark criança enquanto este sofre uma espécie de crise de pânico, e é a doçura de sua voz e a poesia de suas palavras que trazem conforto ao menino, e permite que ele reestabeleça o controle de si mesmo; e como não admirar uma mulher que, diante do lar destruído e da preocupação do filho, diz, sem remorsos, que eram apenas “coisas materiais”? Russell Crowe, como o pai biológico de Kent, Jor-El, nos permite compreender a grandeza desse homem, principalmente no longo início do filme, em Krypton, quando podemos enxergar nele os germes de honra, racionalidade e sabedoria que, mais tarde (quando Kent o conhecesse) seriam tão vitais para permitir a ignição das potencialidades do protagonista. Mas é em Kevin Conster, como Jonathan Kent, que esse O Homem de Aço tem sua maior força, e digo isso pois esse é, claramente, a maior fonte de influência e sabedoria para Clark. Compreendendo a importância que o garoto poderia ter para a humanidade, Jonathan tem a sabedoria de enxergar que os seres humanos não estavam prontos para aceitar a existência de alguém como Clark. Com uma certa rigidez carinhosa, sem buscar muletas na religião, ou qualquer conforto fácil para o filho adotivo, Jonathan guia Clark em momentos sombrios, em que esse quase não consegue controlar-se, e se mostra disposto a se sacrificar para permitir que o filho possa atingir seu objetivo no futuro como um guia, um messias, quando a humanidade estivesse pronta para ele. E Conster, numa performance contida, mas forte, revela, até em pequenos traços de sua entonação de voz, toda a carga emocional de seu personagem, em especial no momento em que revela para Clark sua verdadeira natureza.

  Pois Clark Kent aqui nem sempre foi um super-humano. Com a dificuldade biológica de uma criança de sua espécie para se adaptar à um planeta como a Terra, o menino sofria com o abuso de estímulos sensoriais ultrassensíveis com os quais era bombardeado constantemente. Ainda, como um ser metade humano, o garoto sofria para controlar impulsos violentos, como o de bater em um menino que o incomodava (e o plano detalhe do objeto que Clark segurava enquanto era bulinado é revelador e elegante na economia de informação transmitida). É claro que ele tinha medo, mas a força da direção dada por seus pais adotivos permitiu que esse fosse aceitando seu destino, e esperando pacientemente pelo momento em que deveria assumir o papel que tanto guardou dentro de si. Assim, quando finalmente vê que chegou a hora, o que vemos é um ser maduro e ciente de seu papel, com a coragem que este demanda, mas também com o medo que este exige, formando assim um herói extremamente complexo e trágico, que, devido à sua criação, compreende a magnitude de sua influência, e passa a agir de maneira sábia e racional, em busca da paz para o planeta Terra, realizando o sonho de seus pais de ver um mundo melhor, sonho esse que ele assumiu para si mesmo. E nesse sentido, Henry Cavill deixa de lado qualquer traço de sua medíocre performance no fraco Imortais e confere enorme peso dramático à Clark Kent, deixando evidente a força e estrutura que o papel que o protagonista tem exige, conseguindo ainda mostrar certa paz que ele guarda dentro de si, pela aceitação de seu destino, sem deixar de lado o medo e insegurança que sente.

  Superman é um messias, e Zack Snyder e o roteirista David S. Goyer (que trabalhou em Batman Begins e Blade II) compreendem isso e busca simbolizar esse fato de maneira sutil e elegante, como pelo fato de Clark, quando assume seu papel como o Superman, ter 33 anos (idade com que Jesus Cristo foi crucificado), ou ainda o enquadramento que coloca a figura do protagonista ao lado de uma imagem de Cristo em uma vidraça de Igreja. Desse modo, Jonathan é uma espécie de José, e Martha é Maria, enquanto Jor-El seria Deus-pai. Essa simbologia surge diante do cinismo da humanidade atual, da necessidade de um herói-messias que pudesse guiar essa espécie diante de toda sua infantilidade, ao mesmo tempo em que compreendendo a grandeza de pequenos gestos de amor que fazem dos seres humanos criaturas tão únicas. A infância simples de Clark, numa fazenda no interior dos EUA, permitiu o florescimento dessa compreensão tácita pela beleza interior do ser humano, ao mesmo tempo em que a paisagem rural entra em confronto com a opressão das grandes metrópoles, o que permite ainda que o protagonista vá se apaixonando por esse planeta mesmo não pertencendo a ele (e o modo como Snyder filma essas sequências, remetendo ao trabalho do diretor Terrence Malick, é belíssimo e eficaz).

  Sabendo explorar bem as possibilidades visuais (as baleias no oceano junto com Clark; os animais nativos do planeta de Krypton; a máquina de terraformação; etc), Snyder e S. Goyer mergulham também em questões filosóficas valiosas no contexto contemporâneo, onde fica evidente o valor que a sabedoria, a bondade, o amor e a Ciência (representados por Jor-El) tem sobre a violência e a opressão (representados pelo vilão Zod), enquanto vemos também Krypton morrendo por problemas que podem muito bem acabar com o nosso próprio planeta, como o esgotamento de recursos energéticos (em certo momento, a máquina de terraformação lembra uma estação de extração de petróleo pegando fogo) ou a robotização dos novos membros da população, que nascem com futuros estabelecidos (vemos, como um pequeno exemplo da realidade, o tanto de gente que nasce e já é definido que farão Medicina pela pressão dos pais e das escolas), algo que me lembrou do brilhante livro de Aldus Huxley, Admirável Mundo Novo. Tudo isso, que poderia gerar uma reflexão pessimista acerca da humanidade e seu futuro, acaba trazendo uma reflexão otimista, já que, como eu disse, esse filme busca explorar o que há de melhor no ser humano, apesar dos defeitos dessa espécie, e encontra esperança na sua mudança positiva. E assim é notável que não seja só Superman o grande herói responsável pela salvação do dia, mas diversos humanos que, lutando pelas próprias vidas, pela vida de sua espécie e pelas vidas de seus amados, acabam se unindo quando necessário.

  Snyder foge completamente do seu estilo estabelecido em seus trabalhos anteriores, evitando assim movimentos por demais ousados com sua câmera ou suas famosas câmeras lenta, optando por uma maior sutileza, como o bom uso dos flares em flashbacks da infância de Clark, conseguindo o efeito fantasmagórico de uma memória. Com uma montagem enxuta, o diretor nunca perde tempo e conta sua história alternando flashbacks e a história atual do Superman, o que, se por um lado prejudica a estrutura do longa por impedir que compreendamos passo a passo a formação do herói e, além disso, quebra o ritmo da ação em vários momentos, ainda assim consegue permitir que o filme corra com tranquilidade, não impedindo que compreendamos a profundidade do protagonista e de sua formação, e acaba formando uma espécie de quebra-cabeça que vai se juntando num todo mais complexo que é a personalidade de Clark no decorrer da projeção. E se O Homem de Aço tem seu caráter filosófico, ainda assim assume uma força extremamente épica que toma conta da metade final do filme, sendo eficaz justamente pelos laços que criamos com os personagens.

  Tudo o que poderia dar errado nas mãos de um maluco doente como Michael Bay (diretor da fecal trilogia Transformers) vira ouro nas mãos de Zack Snyder, que nos liga emocionalmente com toda a ação que virá. E o que vemos é mais porradaria do que estamos acostumados no cinema. Funcionando como um enorme clímax, a metade final do filme vai chegando a limites extremos, que dá certo muito pelo fato de os personagens principais demonstrarem vulnerabilidade. Sim, até mesmo Superman. Toda a estrutura da história cria um contexto biológico fascinante para os kryptonianos, permitindo que compreendamos como seu organismo funciona na Terra; mais importante ainda, como o organismo do Superman (um ser meio humano, meio kryptoniano) funciona em relação à tecnologias estranhas à seu sistema. Isso tudo cria o contexto para cenas de ação mais cheias de tensão. Cenas de ação que duvido muito que serão superadas por qualquer outro longa esse ano, já que, bem montadas e enérgicas, exploram com habilidade absoluta todos os poderes dos envolvidos, os ambientes, as tecnologias, e muito mais, numa escala extremamente épica, poderosa e brutal, de Apocalipse mesmo, que exige uma força absurda de seu protagonista.
 
  Com um design de produção fabuloso, a equipe técnica de O Homem de Aço cria cenários impecáveis e criativos, como o lago com as crianças sendo gestadas, ou toda Krypton em si mesmo, além dos visuais das naves e dos figurinos da equipe de Zod, que surgem sempre inventivos. Os efeitos especiais conseguem superar até mesmo os de Além da Escuridão – Star Trek, tanto em escala quanto em qualidade, já que mesmo tão fantasiosos, surgem palpáveis e poderosos, transmitindo toda a oponência exigida. A trilha sonora de Hans Zimmer já surge como uma obra de arte à parte, conseguindo ser um trabalho tanto lindo isoladamente quanto perfeito dentro do filme, trazendo tons fortes como os de seu trabalho na trilogia Batman e elementos mais melancólicos e sensíveis, não buscando uma música tema, mas surgindo como que para preencher ainda mais a narrativa.

  E se tudo isso é lindo, O Homem de Aço não seria grande coisa como ação sem um grande vilão, e Zod é personificado por Michael Shannon com uma entrega tal que só um ator como ele (um dos melhores da atualidade, para ser honesto) poderia fazer. O que temos então é um vilão que realmente acredita no que faz, cuja convicção traz uma certa honra militar que nos obriga a, em certos momentos, até apreciar sua força. Além dele, a maravilhosa Amy Adams (outra que considero uma das melhores profissionais de sua área atualmente) cria uma Lois Lane de personalidade forte e tridimensional, que fica representada em atos mais simples e juvenis (como beber uísque puro sem nem piscar) como em momentos mais complexos que demonstram a força de vontade em desvendar segredos e expô-los no jornal em que trabalha, como uma verdadeira jornalista de qualidade deve fazer. Enérgica e sempre ativa, a Lane de Adams ganha uma importância enorme dentro da ação do filme, não sendo uma “mocinha em apuros”, mas uma mulher independente que sabe se cuidar, e não precisa de homem nenhum para salvá-la. Assim, a dinâmica que estabelece com o Superman é fascinante e vai se desenvolvendo com calma, permitindo que, quando surja o contexto amoroso entre os dois, este não seja nada estranho, mas sim perfeitamente natural.

  E assim O Homem de Aço se estabelece como já um dos melhores filmes de 2013, sendo inteligente o suficiente para explorar a complexidade da formação do herói protagonista e todas as questões filosóficas que um bom trabalho de ficção pode trazer, sem deixar de lado toda a intensidade que um longa como esse exige. Um filmaço.


sexta-feira, 28 de junho de 2013


Crítica Os Amantes Passageiros (Los Amantes Pasajeros / 2013 / Espanha) dir. Pedro Almodóvar
por Lucas Wagner
  Os Amantes Passageiros é um Apertem os Cintos...o Piloto Sumiu! só que gay. Assim como o clássico da comédia besteirol da década de 80, esse novo filme do cineasta Pedro Almodóvar se passa em um avião onde uma falha técnica obriga que a tripulação e os passageiros permaneçam a bordo durante muito mais tempo do que o previsto, o que faz com que todos os personagens comecem a revelar mais e mais suas bizarrices chegando ao extremismo absoluto. Sendo um pouco mais sóbrio do que o filme de David Zucker e companhia, essa comédia de Almodóvar chega a limites insanos com um humor negro concentrado em personagens em sua maioria ou gays ou meio tarados.
   O tom absurdo do longa é ressaltado a todo momento, em todos os detalhes. A direção de arte, assim como o figurino, investe sempre em cores fortes e claras, nos lembrando da artificialidade do que vemos, ao mesmo tempo em que o figurino tembém é divertido ao vestir os comissários de uma forma totalmente afeminada. A fotografia pressiona ainda mais a tecla desse artificialidade ao investir numa superexposição de luzes, tornando o longa ainda mais colorido. Almodóvar se diverte também ao constantemente usar planos inclinados e enquadramentos estranhos, o que confere um tom de instabilidade mais do que adequado ao projeto.
   Abraçando sem reservas um humor mais besteirol, Almodóvar (que também é o roteirista) consegue criar situações engraçadas mesmo em piadas mais sutis (uma raridade aqui) ou nas maiores. Sem medo algum do que seria considerado politicamente incorreto (como é de praxe para o diretor), o cineasta cria momentos como o que vemos um pouco de sêmen na boca de um comissário, ou ainda mostra domínio do humor quando corta do rosto de uma virgem (sexualmente excitada, nesse momento) para uma enorme lanterna. Aliás, o modo como Almodóvar vai mergulhando no humor erótico assume um tom completamente surrealista naquela que é a melhor (e mais engraçada) sequência do filme, quando aparentemente todo mundo na aeronave resolve transar, não mostrando qualquer timidez, transando até mesmo nas poltronas ou nos estreitos corredores entre essas. Nessa sequência, nem pessoas que estão dormindo são poupadas (o que me lembrou outro trabalho do diretor: Fale Com Ela), e vemos até um homem drogar e embebedar constantemente sua noiva, pois essa, quando dormindo (ela é sonâmbula), revela uma sede de sexo insaciável. E não é por acaso que no fim do longa os personagens saem do avião e pisam numa enorme e extensa camada de espuma branca, um simbolismo óbvio, porém divertido.
   Não que seja só no humor erótico que Almodóvar acerte, pois ele consegue criar piadas bem sucedidas em outros âmbitos, satirizando, por exemplo, o uso do Twitter quando um personagem se machuca e logo twitta que está “se esvaindo em sangue”. E, para quem espera sempre algo cult e “alternativo” do diretor, se surpreenderá com piadas envolvendo peidos. Até mesmo estereótipos como o do comissário afeminado e escandaloso são abraçados pelo diretor, que inclui um número musical divertidíssimo envolvendo os comissários, que é bem sucedido por Almodóvar ressaltar a todo momento a bizarrice que é vermos homens dançando daquele jeito, o que é mais engraçado ainda pelas suas formas corporais, que passam do magrelo para o obeso, mas nunca para um corpo típico de dançarino.
   Mas é nesse completo “foda-se” por parte de Almodóvar, fazendo graça com o que quer, não se importando se é ofensivo ou não, ou se a piada é clichê ou não, que faz de Os Amantes Passageiros um longa realmente divertido. Assim, a estrutura do longa se revela toda falha, com o diretor incluindo uma subtrama que não se adequa à narrativa e a quebra bruscamente, mas percebemos que os objetivos de Almodóvar aqui estão longe do sensível e do complexo, e essa quebra não incomoda muito. Dessa forma, nenhum personagem recebe uma profundidade maior, o que é um acerto, visando os objetivos do longa. E o elenco abraça esse descompromisso sem reservas, com atuações eficazes, sendo que quem se destaca é Cecília Roth, em seu monólogo sobre suas atividades sadomasoquistas, quando revela um lado diferente do que conhecíamos da personagem até então.
   Passando longe de ser um grande filme, Os Amantes Passageiros não encontra nem lugar na lista dos melhores da filmografia de Pedro Almodóvar (seu longa anterior, A Pele Que Habito, é infinitamente superior), mas seu descompromisso absoluto é mais do que suficiente para nos fazer rir a todo momento, o que é o seu único e bem sucedido objetivo.

terça-feira, 25 de junho de 2013


Crítica O Lugar Onde Tudo Termina (The Place Beyond The Pines / 2013 / EUA) dir. Derek Cianfrance
por Lucas Wagner
 OBS: Como esse é um filme repleto de reviravoltas, tomarei o máximo cuidado possível com spoilers. Portanto, peço desculpas adiantadas para o caso de alguns momentos não ser muito claro nas minhas explicações.
  O Lugar Onde Tudo Termina é uma obra, no mínimo, ousada. O modo como é estruturado faz com que o filme adquira uma dimensão épica, na qual vemos como a vida de pessoas completamente diferentes se ligam de um modo que ultrapassa uma geração, como se estivessem unidos por uma “relação kármica” que precisa ser resolvida. No entanto, é essa mesma ambição que também é responsável por diversos problemas que impedem que esse seja um grande filme.
  Adotando o mesmo estilo “cru” que usou no seu trabalho anterior, o belo Namorados Para Sempre, o diretor Derek Cianfrance consegue estabelecer a temática “ciclíca” de sua obra de maneira simbólica desde o início do filme, quando vemos Luke (Ryan Gosling) pilotando uma moto dentro de um globo da morte junto com dois outros motoqueiros. O controle do cineasta com seu trabalho é importante para não tornar o longa muito sentimentalista, e assim ele consegue desenvolver seus personagens com calma e economia, não investindo em diálogos expositivos com os personagens falando sobre seus sentimentos. Também o roteiro (dele e mais dois outros camaradas) acerta na elegância com que vai desenvolvendo a trama, nos surpreendendo com várias reviravoltas inesperadas, chegando a inclusive mudar o personagem que estava sob foco, mesmo que de maneira brusca. Sendo em grande parte um drama, O Lugar Onde Tudo Termina ainda surpreende por, em alguns momentos, se transformar num suspense puro, apenas para depois voltar mais ao gênero drama. Essa coragem dos realizadores de reverter os caminhos do projeto, obrigando o espectador a se readaptar constantemente, confere uma fluidez curiosa ao filme, tornando-o, consequentemente, mais interessante. Essa reversão dos caminhos podem parecer um pouco caótica à princípio, mas se juntam para conferir uma perspectiva maior, cujo quadro só se completa com o decorrer da projeção.
  Mas se essas reviravoltas e mudanças de caminhos e abordagens realmente tornam o longa mais interessante, por outro lado o enfraquece por diversos motivos. Provavelmente o principal destes seja que, por inserir personagens importantes mesmo em mais da metade de projeção (o que é, geralmente, um erro grave), o espectador acaba se cansando um pouco, a partir de certo ponto, por ter que passar a conhecer e se envolver com uma figura totalmente nova. Assim, mesmo Cianfrance aparentando calma ao desenvolver os personagens, esse desenvolvimento, muitas vezes, fica prejudicado (menos no que se refere aos personagens de Avery e Luke, que são extremamente bem construídos). Porém, também há um elemento de incompetência dos roteiristas nesse ponto quando vão desenvolver alguns personagens, que se tornam caóticos e incompreensíveis, mas mais sobre isso nos parágrafos abaixo. E mesmo a mão firme de Cianfrance ao comandar seu projeto acaba sendo ineficaz quando o longa vai ficando longo demais e parecendo não ter fim, se tornando extremamente enfadonho no terceiro ato. Ainda assim, a direção merece créditos tanto pelo o que eu já comentei no parágrafo anterior e por momentos como o de uma perseguição que, mesmo com poucos cortes e a câmera praticamente estabilizada o tempo todo no interior de um carro, é extremamente empolgante, além do momento em que esconde parte do rosto do personagem de Ray Liotta, tornando-o mais assustador, e por simbolismos elegantes como aquele em que vemos Avery (Bradley Cooper) atrás de grades de madeira enquanto tem uma arma apontada às suas costas, simbolizando como ele é preso ao passado.
  O que realmente faz com que O Lugar Onde Tudo Termina seja realmente acima da média são as performances poderosas de Ryan Gosling e Bradley Cooper. Gosling, caladão e introspectivo como sempre, permite que enxerguemos Luke, logo de cara, como um sujeito cuja vida é vazia e insignificante, e nada parece o empolgar muito, nem mesmo o fato de ficar perto da morte sempre, por trabalhar como motoqueiro de um globo da morte. Quando descobre ser pai, é como se a sua vida ganhasse um sopro novo, e Gosling permite que o espectador compreenda e compartilhe da força dessa descoberta para ele e como ela o moverá dali em diante. É como se Luke estivesse sufocado pela vida que vivia, algo que o ator nos deixa perceber a todo momento, principalmente na bela cena em que comenta com Romina (Eva Mendes) o por que que cuidar de seu filho é tão importante. E, assim como no maravilhoso Drive, são mesmo nos detalhes que Gosling acerta mais, como quando chora calado nos fundos da igreja durante o batizado de seu filho, ou ainda pelo sorriso e emoção espontânea que libera quando se vê junto com Romina e o bebê. Como se não bastasse, o arco dramático do personagem vai ganhando contornos intensos na mão do ator, quando Luke vai se transformando num sujeito mais impaciente e violento, algo que surge mais do próprio sentimento de medo do que de qualquer outra coisa. E Bradley Cooper não fica atrás na sua performance do policial Avery, compondo o sujeito de uma maneira tímida e minimalista, mas deixando transparecer todo o idealismo que permeia o personagem. Assim, quanto mais Avery se vê envolto por uma polícia extremamente corrupta, Cooper balanceia o idealismo com o medo que ele está sentindo, sem contar que ainda há a culpa que o corrói (por motivo que, se revelados, seriam spoilers). Mais fascinante ainda é notarmos camadas ainda mais complexas e ambíguas de Avery, que se mostram num senso de oportunismo que não poderíamos prever. Desse modo, Cooper é genial ao, ainda por cima, interpretar um Avery mais velho de uma forma mais orgulhosa e segura de si. A relação entre os dois personagens não posso comentar por motivos de spoilers, mas devo comentar a questão “kármica” que citei no primeiro parágrafo. Com seus destinos traçados, é interessante que o roteiro insira diversas semelhanças entre Luke e Avery, mais óbvias ou mais subliminares, mas que trazem certa ironia dramática elegante ao projeto.
  Já outro personagem importante, Jason, interpretado por Dane DeHaan (genial em Poder Sem Limites e desperdiçado em Os Infratores e Lincoln), é certamente uma figura complexa, mas, dessa vez, mal desenvolvida. Fica óbvio que a ausência de maior conhecimento sobre seu pai é a grande fonte de sua tormenta, e é até compreensível, pelo fato de ser um adolescente em busca de uma identidade (e não saber direito quem foi o pai é uma peça faltante importante no mosaico de sua personalidade). Mas, muitas de suas ações no terceiro ato são incompreensíveis. Podemos, é claro, falar que é por causa de seu desequilíbrio devido a sua questão paterna (o que seria forçar a barra), mas também (e é o que parece o certo) pode ser incompetência do roteiro. Ainda assim, DeHaan acerta numa performance trágica e antissocial, ao mesmo tempo em que o arco dramático de busca de identidade funciona bem, principalmente pelo belo plano final do filme. Já AJ é um patetão, um personagem pessimamente escrito. Qual é o motivo, por exemplo, de sempre querer pirraçar seus pais, custe o que custar? É só rebeldia adolescente ou incompetência de roteirista? Mais uma vez aposto no segundo, já que o primeiro caso é uma explicação que nada explica.
  O resto do elenco contém atores que fazem bem o que se propõem. Bruce Greenwood, tão paternal (tanto na dureza quanto no carinho) esse ano no excepcional Além da Escuridão – Star Trek, aqui revela-se um monstro em corpo de cordeiro, maduro e digno, principalmente quando reconhece uma derrota. Ray Liotta interpreta um antagonista realmente ameaçador. A bela Rose Byrne cria uma Jennifer (mulher de Avery) com uma complexidade sutil que fica expressa em diversos e minúsculos olhares da atriz (prestem bastante atenção na cena do jantar em sua casa). Mahershalalhashbaz Ali tem poucos momentos para realmente trabalhar a personalidade de Kofi, mas consegue torna-lo suficientemente carismático, ao passo que a linda Eva Mendes começa interpretando Romina como uma figura extremamente complexa, mas é pouco depois sabotada pelo roteiro, que tira a lógica do seu desenvolvimento psicológico (a fala “Você fodeu a vida do meu filho!” para Avery vai contra tudo o que sabíamos dela) e força a atriz a adotar uma performance unidimensional de sofrimento.
  Com uma trilha sonora lindíssima e uma maquiagem absolutamente incompetente (quer dizer que nem uma ruguinha nasceu no rosto de pessoas mesmo 15 anos mais velhas?), O Lugar Onde Tudo Termina pode ter diversos problemas que o enfraquecem de forma significativa, mas ainda é um bom filme, corajoso e ambicioso.

segunda-feira, 24 de junho de 2013


Crítica Universidade Monstros (Monsters University / 2013 / EUA) dir. Dan Scanlon

por Lucas Wagner

  No auge de sua glória, a Pixar realizou obras inesquecíveis, sendo que Monstros S.A fazia parte dessa invejável lista. O humor aguçado e criativo, junto com a direção empolgante preenchiam um longa que já contava com personagens carismáticos e um universo fascinante e muitíssimo curioso, e ainda por cima a empresa conseguiu situar aquela história num contexto maior da situação do mundo capitalista moderno ao desenvolver uma trama que tratava justamente de crise energética e desenvolvimento de novas formas de energia, algumas não muito honrosas e que ainda por cima poderiam afetar os trabalhadores da empresa. Monstros S.A ainda tinha a decência de empregar uma cena final tocante na qual o monstro Sullivan reencontrava a garotinha Boo, e os realizadores demonstraram sensibilidade e respeito com as figuras que criaram ao preservar a intimidade dos dois. Com tudo isso, Monstros S.A não precisava de continuação, e nem de uma pré-continuação, que foi exatamente o que fizeram. A boa notícia é que a Pixar realizou um longa absolutamente adorável e inventivo, fugindo de ser o fracasso que poderia muito bem ter sido.

  Evitando com habilidade apenas repetir o que fez sucesso no original, os realizadores fazem de Universidade Monstros uma obra extremamente distante da outra, dessa vez investigando outros rumos que não foram explorados (e muitas vezes nem mencionados) no primeiro. Aqui, assustar crianças não é tão simples como parecia antes (ou depois?), mas é uma verdadeira arte que exige técnica e habilidades específicas. Ainda, todo o contexto da vida universitária é explorado de forma divertida, e vemos a diversidade dos estereótipos dos jovens acadêmicos, como os emos, os fortões, os excluídos, o estudante meio hippie de filosofia, etc. Há, como não poderia faltar, diversas ligações com Monstros S.A que surgem mais como homenagens nostálgicas, como quando podemos ver as portas para os quartos das crianças sendo feitas, ou quando a velha infiltrada do anterior aparece numa pequena ponta, e até mesmo nos pequenos detalhes, como no boneco de pelúcia que, no original, Mike briga quando Boo o toca, e aqui aparece no detalhe do personagem arrumando seu quarto da faculdade. Mais interessante é vermos personagens que conhecemos tão bem agindo de forma bastante diferente do que esperaríamos do seu “eu” futuro, como quando vemos o vilão Randall, tão malvado no primeiro filme, aqui com uma insegurança doce e tocante (e é bacana que o personagem esteja envolvido em sombras no momento em que aparece pela primeira vez, lembrando-nos do seu futuro sombrio e tornando mais surpreendente para nós o modo como o veremos quando jovem).

  Apresentando todo o rigor técnico digno da Pixar, Universidade Monstros é sublime no quesito visual, mostrando preocupação com detalhes minúsculos mas que enriquecem a experiência, como o velho boné de Mike, que possui certos pontos do tecido que estão rasgados, ou mesmo as marcas nos pneus de um ônibus. Ainda, a direção de arte acerta na construção de diversos ambientes, como a opressiva e ao mesmo tempo elegante sala de aula de sustos, além de a fotografia ser eficaz ao inserir uma paleta mais fria ou mais colorida de acordo com a narrativa. O filme também surpreende no quesito humor, conseguindo ser aguçado e criativo como o primeiro, e apostando muitas vezes na quebra de expectativa para arrancar mais risadas (a mãe doce de um monstro escutando heavy metal vem imediatamente à cabeça). Infelizmente, diferente do outro, esse daqui não demonstra muita criatividade no visual dos monstros, muitas vezes investindo no lugar comum, e poucas vezes surpreendendo com algo interessante (sendo alguma raras exceções: a bibliotecária, as monstras patricinhas que revelam ter um olhar satânico, ou a diretora Hardscrabble).

  Mas Universidade Monstros aposta mesmo é no carisma de seus protagonistas para funcionar. Invertendo os papéis de antes, quando vimos Sullivan ser o inegável protagonista, aqui quem assume esse papel mesmo é Mike. O roteiro acerta imensamente ao não colocá-lo logo de cara como o Mike egoísta do anterior, e assim o vemos todo otimista e querendo ajudar a todos, enquanto luta pelo sonho de ser um “Assustador”. Não tendo o físico para ser um Assustador, Mike aposta é na inteligência e na força de vontade, diferente de Sullivan que, todo boa vida e “folgadão”, acha que tem uma habilidade nata para ser Assustador. Essa atitude metida do personagem entra em choque com o Sullivan humilde do original, que mesmo sendo exaltado por todos, não se gabava por isso. E é no arco dramático que mudará as vidas dos dois personagens que o filme estabelece seu foco, e vale dizer que a construção desses arcos dramáticos se dá de forma impecável, com Mike e Sullivan estabelecendo uma dinâmica que vai tomando forma com calma até que os dois se tornem amigos inseparáveis. Assim, o longa permite que o espectador estabeleça grande ligação emocional com o que assiste, já que torcemos por eles a cada momento. É uma pena que, se os dois estão tão tridimensionais, a maioria dos outros personagens não alcancem isso, inclusive o grupo da fraternidade que os dois fazem parte, já que, se aqui e ali surpreendem um pouco (a sequência da biblioteca, por exemplo), no geral são unidimensionais e nem um pouco marcantes para que realmente nos importemos com eles; o mesmo vale para o antagonista – que não me lembro do nome - líder da fraternidade ROR. Fora os protagonistas, quem merece algum destaque é Randall (que já comentei) e a diretora Hardscrabble, sempre ameaçadora, e com um visual que surge sempre opressivo e assustador.

  O que mais enriquece essa animação é, no entanto, sua mensagem, capaz de atingir tanto adultos como crianças. Frequentemente a Pixar inclui mensagens mais profundas em seus trabalhos, e aqui não é exceção. Dessa vez, o que vemos é que cada um de nós tem algo realmente especial. Somos únicos à nossa própria maneira e, por mais que não sejamos únicos naquilo que desejamos ser únicos, nos nossos sonhos, no que acreditamos ser nosso caminho, ainda assim temos algo especial, que às vezes apenas fuja do nosso foco, mas quando o enxergamos, podemos concentrar nossas energias naquilo em que somos bons, e desenvolver todo o nosso potencial. Assim, Universidade Monstros cria uma ligação temática com outros trabalhos da Pixar que trabalharam questões semelhantes, como Ratatouille e Os Incríveis. Pode parecer piegas quando escrevo, mas acreditem: o filme não torna a mensagem piegas.


  Constantemente surpreendendo o espectador ao tomar rumos inesperados na narrativa (como no início do terceiro ato ou o modo como Mike e Sullivan ingressam na Monstros S.A), Universidade Monstros é uma excelente experiência, conseguindo retomar o equilíbrio invejável entre o divertido e o tocante, que a Pixar estava devendo desde seu maravilhoso Toy Story 3 (convenhamos, Carros 2 e Valente são, no máximo, suportáveis). Mesmo não alcançando o status de obra-prima alcançado por diversas obras da empresa, esse ainda é um esforço digno de nota.


OBS: o curta metragem que precede o longa é adorável.


sábado, 22 de junho de 2013


Crítica Elena (Elena / 2013 / Brasil) dir. Petra Costa

por Lucas Wagner

  Analisar o documentário Elena se revela um desafio considerável, já que estamos lidando com um material extremamente pessoal e subjetivo trazido pela diretora Petra Costa. Assim, julgá-lo como, por vezes, emotivo e melodramático demais pode ser até mesmo uma injustiça, já que estamos enxergando um relato sofrido e até corajoso da diretora, que ousou usar o Cinema como ferramenta para explorar as consequências que o suicídio de sua jovem irmã mais velha teve nas vidas de Petra e sua mãe, e como essa experiência trágica serviu para definir o curso do resto de suas vidas. Elena é, acima de tudo, uma carta de Petra à sua irmã, dizendo tudo que sempre quis dizer mas que não seria possível. E por isso só já é uma empreitada no mínimo admirável.

  Garota sonhadora, Elena sempre quis trabalhar no Cinema, como atriz. Buscando em Nova York a realização desse sonho, a garota foi sofrendo paulada atrás de paulada ao ver como esse seu objetivo parecia cada vez mais distante, o que desencadeou uma depressão que a encurralou, fazendo com que o suicídio fosse a única saída viável. Nesse sentido, é de partir o coração o modo carinhoso como a diretora explora a vida de sua irmã mais velha, até mesmo na narração (da própria diretora), que transmite toda a tristeza e o amor que nutria por essa. Utilizando, em sua primeira metade, um rico material de vídeos em VHS que foram filmados pela própria Elena durante os anos 80, quando Petra ainda era bebê ou muito novinha, somos introduzidos na vida familiar da personagem título, e assim somos capazes de encontrar na menina cheia de energia e jovialidade um triste contraste com a moça jovem que se matou. Mais importante nessa primeira metade é enxergarmos o amor absoluto que Elena tinha pela irmã mais nova, tratando-a como uma princesa e amiga desde que nasceu, a enchendo de beijos e abraços, e assim se transformando num modelo para Petra. Ainda nessa primeira metade, a “alma artística” de Elena fica evidenciada por atitudes cheias de poesia, como se mostrar toda empolgada ao perceber que conseguia fazer a Lua “dançar” com seus movimentos com a câmera. Aliás, a figura da mãe de Elena se mostra uma enorme influência para essa “alma artística”, algo que Petra demonstra em gravações como quando a mãe se interrompe em um depoimento para apreciar a beleza de uma árvore, ou pela própria história de sua juventude, que em todo momento parece cinematográfica.

  Funcionando, como disse, como um modelo para Petra, quando se mata, Elena balança o mundo da diretora, então apenas com 7 anos, de uma maneira estrondosa. Sem idade suficiente para se situar de forma saudável quanto ao que aconteceu, a diretora cria defesas psicológicas complexas para se comportar nesse “novo mundo”, buscando, inclusive, proteger a mãe de qualquer perigo para que ela não morra também, desenvolvendo uma espécie de transtorno obsessivo compulsivo que envolvia diversos comportamentos supersticiosos, como não comer sal ou subir de joelhos as escadas de seu apartamento. Essa desestruturação que a morte de Elena causou sobre a irmã a marcou de uma maneira indelével, e a melancolia ininterrupta pela sua morte, mesmo anestesiada pelo tempo, nunca deixou de exercer influência, e assim, Petra acabou se tornando, à sua própria maneira, Elena, o que esta não viveu, alcançando o que esta não conseguiu alcançar. Assim, é uma linda ironia que a morte de Elena, para quem a Arte era tudo, tenha sido o ponto de partido para criar uma peça de Arte, nas mãos da irmã ao realizar esse filme. Mais fascinante ainda é notar que Petra tem plena consciência disso ao constantemente se filmar de costas ou apenas sua sombra quando caminha por Nova York, o que impede que enxerguemos seu rosto, mas apenas as similaridades que esta tinha com Elena. Inclusive as semelhanças físicas das duas são ressaltadas quando a diretora, na narração, lembra comentários de várias pessoas sobre as similaridades físicas das duas.

  Pois Elena não é apenas um filme sobre a morte da jovem do título, e por isso se estende por muito mais tempo depois que seu suicídio é narrado. A formação da identidade de Petra é um foco enorme, assim como o modo como a mãe se comporta depois da morte da filha. Mulher forte e admirável, procurou dedicar a Petra o amor e apoio que esta precisava, embora ela mesma precisasse de amor e apoio. Assim, a decisão dela de dar vários depoimentos ao longo do filme é, no mínimo, corajosa, cavando numa ferida poderosa, mas, como Petra, tentando encontrar na Arte um alívio para sua melancolia.

  E o filme é mesmo um grito de tudo que estava estalado na garganta de Petra (e da mãe), uma busca de um alívio para algo que ela bem sabe que não tem alívio. Através da Arte, Petra busca reconciliar-se consigo mesmo, encontrar uma ordem e (por que não?) até se compreender melhor. E, vale de dizer, ela é uma artista formidável, que demonstra, mesmo em um trabalho tão emotivo e particular, encontrar maneiras elegantes de se expressar. O simbolismo da água é assim, mesmo bem óbvio, eficaz, principalmente quando a vemos levantando o rosto que antes estava submerso. O raccord que ela insere em certo momento, quando corta do seu rosto para o da mãe, é cheio de significados, assim como quando as três (mãe, Elena e Petra) estão partindo em viagem para Nova York e a diretora filma a janela do avião cheia de gotas de chuva, como que simbolizando as lágrimas que viriam a ser derramadas.

  Experiência melancólica mas que trás um sofrido senso de otimismo em relação à vida e à mudanças (como vemos na cena em que Petra, a mãe e diversas outras mulheres aparecem boiando em águas calmas, simbolizando tantas pessoas que lutam para encontrar paz nas águas do luto), Elena é mais do que terapia para sua diretora: é um diário, é uma carta... é talvez um acerto de contas com sua irmã e com sua própria vida, ousando enxergar a si mesma como realmente é, não fantasiando sobre algum dia superar a morte de Elena, mas compreendendo como essa morte a moldou e fazendo o possível para viver o melhor que pode com quem ela é, aceitando-se por completo e por isso mesmo encontrando certa paz.

Nota: 10,0 / 10,0


segunda-feira, 17 de junho de 2013


Crítica Além da Escuridão – Star Trek (Star Trek – Into Darkness / 2013 / EUA) dir. J.J Abrams

por Lucas Wagner

  Com um pai muito fã da franquia Star Wars, já nasci polarizado na eterna briga entre Star Wars e Star Trek. Assim, quando assisti ao primeiro filme desse reboot do J.J Abrams em 2009, fiquei absolutamente sem palavras diante do excepcional trabalho que tinha acabado de conferir. Construindo personagens marcantes e tridimensionais, o Star Trek de 2009 ainda contava com uma trama fenomenal que unia com perfeição a série (e filmes) clássicos da franquia com essa nova que estava começando, enlaçando os dois universos ao mesmo tempo que promovia possibilidades dramáticas interessantíssimas. O que é melhor ainda é que, quatro anos depois, J.J Abrams e sua equipe voltam com um trabalho ainda melhor nesse Além da Escuridão – Star Trek, criando um longa extremamente intenso, empolgante e que sabe aproveitar as possibilidades temáticas que surgem pelo caminho.
                           
  Tecnicamente sublime, esse novo filme tem efeitos especiais que merecem espaço em uma análise crítica justamente pela perfeição meticulosa com que foram construídos. Diferente das maiorias das grandes superproduções modernas, que sempre traem a natureza virtual de seus efeitos, aqui até mesmo os elementos mais fantasiosos ganham substância e realismo, graças ao fantástico trabalho da equipe da Industrial Light & Magic, que se importa com detalhes como ferrugens no exterior de naves ou com os poros e detalhes da pele de uma raça alienígena atrasada. O design de produção ainda se sobressai na criação dos diferentes ambientes, que surgem ricos, como o planeta Nibiru (se não me engano é esse mesmo o nome) ou o próprio planeta Terra, com seu ambiente frio e apático. O problema aqui é que Abrams continua investindo em muitos planos fechados, o que prejudica o aproveitamento do visual como um todo, mesmo que nesse filme em particular (e Super 8 também, por sinal) ele insira mais planos abertos do que antes, mas ainda assim esses últimos deveriam vir em ainda maior quantidade. Completando essa parte técnica da crítica, a extraordinariamente linda trilha sonora de Michael Giacchino ainda merece todos os aplausos do mundo, não só como valor musical em si mesmo, mas também por ajudar a manter um ritmo empolgante e pontuando bem as cenas mais intensas e as mais sensíveis.

  J.J Abrams continua amadurecendo como diretor de Cinema, desde que começou na função com o bacaninha Missão Impossível 3. Diminuindo os exageros que prejudicaram um pouco o longa anterior, Abrams investe numa direção bem mais calculada e pensada. Diferente do anterior, que assumia um ritmo insano demais desde os minutos iniciais, o que atrapalhava um pouco o desenvolvimento da história e dos personagens, neste aqui o diretor assume um narrativa mais sombria, se focando na construção cuidadosa de uma atmosfera de tensão que culmina num poderoso e longo clímax. Essa estratégia de não se exaltar durante boa parte da projeção, aumentando o ritmo da narrativa de acordo com as reviravoltas que vão se revelando e aumentando a urgência da trama, permite que o espectador vá se adaptando aos diferentes rumos tomados, percebendo quando as coisas vão ficando mais e mais perigosas e sentindo esse perigo com muito mais intensidade. Dessa forma, se no anterior os planos inclinados e outros movimentos ousados com a câmera vinham numa quantidade tão massiva que diluia completamente o efeito buscado com essas técnicas pelo diretor, aqui esses vem de forma mais moderada, passando a aumentar a quantidade de acordo com as reviravoltas, alcançando assim o seu objetivo de sugerir instabilidade, urgência e tensão. Até mesmo os flares, pelos quais Abrams tem um óbvio fetiche, aparecem mais moderadamente aqui, embora o diretor não resista a partir de certo ponto e derrame o efeito a torto e a direito. Mas tudo bem...

  O caso é que com essa construção mais cuidadosa da atmosfera, Abrams vai nos puxando para cada vez mais perto da beira da poltrona até quase nos fazer cair dela, quando chega em um ponto máximo onde a trama verdadeiramente se transforma numa corrida insana contra o tempo, com um continuum de perigos que revelam outros perigos ainda maiores que deixa o espectador quase que arrancando os braços da poltrona. Assim, a qualidade das sequências de ação desse novo filme é altíssima, talvez as melhores que Abrams foi capaz de construir até agora em sua carreira. Explorando com habilidade as possibilidades envolvidas em cada ambiente em que ocorre alguma luta ou confronto, o diretor nos leva de superfícies de planetas e até a batalhas espaciais na velocidade da luz, passando por momentos em que vemos seres humanos livres no espaço e até uma extraordinária perseguição a pé que culmina numa luta mano-a-mano no mínimo fascinante, sem contar o modo genial como Abrams aproveita um momento em que uma nave gira loucamente em queda para mostrar como os tripulantes tem que se virar dentro dela. A montagem enérgica, com o bom uso de planos inclinados e a coreografia das batalhas, fazem das sequências de ação desse Star Trek algo próximo do brilhantismo. E tudo isso foi possível principalmente pela mão firme com que Abrams conduz o seu filme.

  Falando em mão firme, quem na verdade é o provável líder e senhor desse longa é mesmo o capitão James T. Kirk, que possui em Chris Pine um ator excepcional que segura e controla esse filme inteiro com uma força extraordinária. Aproveitando o bem desenvolvido arco dramático do personagem no longa anterior, onde Kirk passava de moleque sem rumo para um verdadeiro líder, Pine explora como as novas habilidades do capitão agora são testadas ao máximo. Sabiamente explorando momentos em que o personagem mostra seu lado moleque e como esse fica em segundo plano quando encontra o lado da responsabilidade que tem com a nave Enterprise e sua tripulação, Pine incorpora Kirk como um líder corajoso que, mesmo que muitas vezes aja sem pensar direito, é um homem de honra que faria de tudo por sua tripulação, que agora é sua família. Para isso, o mais importante é o peso dramático que Pine confere ao capitão, dando verossimilhança e muita intensidade às ações e escolhas deste, que se mostra gradativa e genuinamente mais preocupado ao longo da projeção, embora sempre tenha em mente que deve se manter no controle e ser o líder que todos precisam. Assim, é fascinante que o vilão interpretado por Benedict Cumberbatch (que já tinha demonstrado talento no seriado Sherlock e na obra-prima O Espião Que Sabia Demais) seja como que a outra face da moeda em relação à Kirk. Assim como o capitão, o vilão faz de tudo por aqueles que considera como sua família, tem uma coragem e inteligência admiráveis, mas a intensidade com que sente suas emoções e sua fúria indestrutível vem com uma força bem maior e desequilibrada do que em Kirk. Dessa forma, temos aqui um embate entre vilão e protagonista realmente admirável, que fica ainda melhor pelo fato de Cumberbatch estar simplesmente impecável como o vilão, conferindo uma intensidade absurda à esse nos momentos em que perde seu controle, ao mesmo tempo em que sempre demonstra uma confiança total em si e em seus atos, se colocando como que num pedestal que nos faz sentir pena do pobre coitado que tiver a ousadia de desafiá-lo, o que faz com que ele represente um perigo real para os heróis, tornando a experiência de assistir ao filme ainda mais intensa e empolgante.

  Zachary Quinto parece não ter muito o que fazer com seu Spock (tão fascinante e complexo no filme anterior) até que cheguemos ao terceiro ato, quando é explorado um lado diferente do personagem que, no entanto, foi construído cuidadosamente ao longo da projeção, e que exige bastante de Quinto como ator, algo a que ele responde à altura, até mesmo ao adotar uma cadência mais calculadamente frágil em momentos específicos, enriquecendo assim ainda mais Spock. Aliás, a dinâmica entre Kirk e Spock surge, assim como no primeiro, extremamente rica e produzindo diversos momentos interessantes e muito bem trabalhados. De resto, ainda há muita gente inexplorada no elenco (como os ótimos Karl Urban, Simon Pegg e John Cho), embora todos consigam cumprir bem suas funções e tenham momentos em que brilhem um pouco mais (como quando Cho tem uns minutos como capitão da Enterprise). A exceção fica por conta de Zoe Saldana, que no longa anterior compunha em Uhura uma figura sexy e forte, enquanto nessa continuação é apenas um espécie de “namorada chata” (quem é sexy aqui é Alice Eve que... santo Cristo...). James Weller e Bruce Greenwood completam o elenco conferindo a maturidade esperada para as figuras de, respectivamente, Marcus e Pike, enquanto Greenwood ainda é eficiente ao dar calor humano à esse segundo desses personagens, algo que é vital para o desenvolvimento emocional do capitão Kirk.

  Mas o que talvez seja o melhor desse Além da Escuridão – Star Trek é a habilidade com que o roteiro explora as possibilidades dramáticas e, principalmente, temáticas. No primeiro caso, os roteiristas, assim como no primeiro filme, conseguem criar uma trama intrincada e interessante, que vai revelando camadas ainda mais curiosas com o decorrer da projeção, ainda conseguindo fazer um link fascinante com o universo da franquia clássica. Mas, é no segundo caso que o roteiro realmente se sobressai, conseguindo contextualizar esse novo Star Trek com questões políticas e sociais relevantes e contemporâneas, principalmente em relação à história recente dos EUA. É notável podermos enxergar no longa claras metáforas para eventos absurdos da atualidade: há aqui referências aos eventos envolvendo a Guerra do Iraque, principalmente quando lembramos que Bush atacou o país com uma segunda e nada louvável intenção; a punição de um terrorista em um ataque não autorizado (ring a bell?); e até mesmo os ataque às Torres Gêmeas é aqui lembrado de maneira visual. Ainda mais impressionante é como os realizadores fazem com que o longa funcione como uma grande metáfora em especial à (SPOILER: quem não viu o filme continue no próximo parágrafo) ligação do governo e da indústria bélica, sendo que um necessita do outro e que aqui é observado como as tentativas de Marcus de militarizar a Frota Estelar, e para isso busca desencadear uma guerra que (como qualquer outra) matará diversos inocentes mas fará necessária a produção de armas, algo muito evidente no mundo real quando observamos que muitas das guerras desencadeadas pelos EUA (a do Iraque, sua entrada na Segunda Guerra Mundial e até mesmo a corrida armamentista da Guerra Fria) tinham como objetivo essencial a estimulação da produção bélica do país. Isso só já eleva esse Além da Escuridão a um patamar superior à maioria absoluta das superproduções do gênero ação produzidas ano após ano.

  Conferindo um peso humano admirável à obra, J.J Abrams e sua equipe mais uma vez entregam um exemplar digno de nota de Star Trek. Um filme inventivo, empolgante, intenso, bem feito e que acima de tudo ultrapassa a barreira de mera ficção escapista e exige mais de si mesmo e de seus espectadores. Agora é aguardar ansioso pela próxima aventura e torcer para que J.J Abrams, que agora vai comandar um novo Star Wars, consiga levar para essa franquia toda a qualidade que trouxe para Star Trek.


Nota: 9,8 / 10,0

sexta-feira, 14 de junho de 2013



Crítica Segredos de Sangue (Stoker / 2013 / EUA, Reino Unido) dir. Park Chan-Wook

por Lucas Wagner

  Na filmografia do cineasta Park Chan-Wook o mal exerce um poder magnético extraordinário que suga os protagonistas para fora da pureza, engolfando-os num conforto que não pode ser encontrado senão nas trevas. Era assim para Oh Dae-Su, que em Oldboy passava de homem de família (mesmo com seus óbvios defeitos) para um fantasma guiado pelo sentimento de vingança, e também era assim para Park em Mr. Vingança, para quem a dor da morte da filha só podia ser anestesiada pela tortura dos responsáveis. Mais fascinante ainda é enxergar esses aspectos nas personagens femininas do diretor, já que nelas a sensibilidade se mescla com o profano de uma forma a gerar uma combinação libidinosa cheia de veneno, como podemos enxergar em Geum-ja, a protagonista de Lady Vingança (melhor trabalho do diretor), cujo mergulho nas trevas foi mais profundo do que esperava, ou ainda Tae-joo, que em Sede de Sangue era uma mulher para a qual o sexo e a violência tinha uma inegável ligação. Pois nesse Segredos de Sangue, primeiro filme fora da Coréia do Sul realizado pelo diretor, mais uma vez o profano massacra a pureza, desta vez no corpo de uma adolescente que, assim como Tae-joo, encontra no sexo e na violência uma liberdade para seus demônios internos mais assustadores.

  A adolescente é India Stoker (Mia Wasikowska), que acaba de perder o pai (que era também seu melhor amigo) em um acidente automobilístico. Depois da tragédia, seu misterioso tio, Charlie (Matthew Goode), vai passar um tempo morando com ela e sua mãe, Evelyn (Nicole Kidman). O que decorre acaba sendo uma estranha ligação entre tio e sobrinha que pode gerar diversas consequências obscuras.

  Assumindo um tom sombrio desde os momentos iniciais, Segredos de Sangue parece até um de filme de terror, já que a própria casa em que vive India parece uma mansão mal-assombrada que esconde em cada canto algum mistério. Nesse sentido, acabamos vendo uma representação do interior da protagonista, que parece, para si mesma, um mistério sombrio. Moça taciturna, tímida e que odeia ser tocada, India parece pouco se interessar pelos outros, preferindo se focar no barulho de uma casca de ovo se quebrando do que numa conversa (e assim, a sonoplastia do longa é impecável ao ressaltar diversos sons ambientais que se impõem ao som das pessoas), e encontrando conforto, aparentemente, no lugar mais obscuro de sua casa. Reconhecendo o potencial sociopático da garota (como Harry com Dexter no seriado Dexter), seu pai parecia tentar controlar seus impulsos agressivos através da atividade da caça (“às vezes, um mau menor pode prevenir algo muito pior”, é algo que ele dizia), empalhando os diversos animais atingidos pela filha. Mas esse controle se perde com sua morte, e a figura do tio se torna ao mesmo tempo um objeto de fascínio e de repulsa, por ela reconhecer, mesmo que inconscientemente, os perigos que essa pessoa, ou o que ele representa, se mostra para ela, ou seja, uma completa liberação de fantasias perversas que ela mantinha encaixotada dentro de si. O simbolismo da chave que ela carrega é, nessa perspectiva, digno de aplausos.

  Toda essência do longa se baseia no desabrochar de India para sua violência e sexualidade inerentes, e assim, Chan-Wook realiza um trabalho impecável numa direção extremamente complexa e repleta de simbolismos que ajudam a estabelecer a luta interna da protagonista. Certos enquadramentos e modos de filmar do diretor assumem uma significação profunda, como aquele em que India está tocando piano e Charlie intervém, e o que vemos é apenas a figura de India enquanto Charlie está coberto pela tampa do instrumento e assim vemos no lugar dele o reflexo da garota na tampa polida; ou ainda, quando a protagonista se encontra em um gira-gira e acompanhamos seus movimentos, que imediatamente assumem um aspecto fantasmagórico. Diversos raccords criados pelo cineasta ainda contribuem para a criação de significados, como aquele em que o fechar do freezer com “algo dentro” se transforma no fechar da caixa de lápis da menina; ainda, aqui existe constantemente o jogo de poder representado por quem fica num plano superior à outra pessoa. Assim como em Lady Vingança o preto e o vermelho-sangue pareciam cobrir a pureza representada pela brancura da neve, aqui uma aranha se torna um símbolo para a dialética da maldade e do sexo de Chan-Wook: India deixa que o inseto suba por suas pernas calmamente, como se não a incomodasse e, em um sonho, essa aranha entra na sua saia, no meio de suas pernas. O cinto que era de seu pai passa a ser usado por seu tio, e se torna uma representação de uma arma e de um pênis. O quarto de sua mãe não é todo vermelho-sangue por acaso, mas encontra sentido na imagem de sensualidade que ela assume para a filha. Ainda, os sapatos que a protagonista recebe de presente desde pequena tem um código de cores todo especial: branco, preto e branco de novo; e não é a toa que a cor básica do figurino de Charlie seja um marrom escuro avermelhado, como que numa mistura do preto (as trevas) e o vermelho (o sexo), e que os saltos (sapatos de mulher adulta) que India usa no final tenham essa mesma cor e, no solado, seja completamente vermelho. E nem precisaria comentar a significação da flor branca que recebe um jorro de sangue em certo momento.

  Pois não é senão na profunda descoberta e aceitação de sua própria sexualidade perversa que India mergulha, e encontra prazer orgástico em momentos chave, como quando, depois de um ato de violência, se masturba chorando e gemendo ao mesmo tempo, ou ainda quando seu tio começa a tocar piano com ela, e os cortes e planos de Chan-Wook em determinados movimentos da garota não transmitem outra ideia que não a do gozo. Nesse mesmo momento ainda, é fascinante que ela esteja tocando uma música melancólica e sensível e Charlie intervenha com tons fortes e opressores, e que ainda tenhamos vários vislumbres da parte das teclas do piano que se encontra dentro do instrumento e cujo preto absoluto encontra contraponto na brancura da parte externa dessas. O interesse da garota no desenrolar da relação entre Charlie e Evelyn ainda explora a relação desta com a mãe: ao vê-la se entregando ao tio, e menina tenta imitá-la, inserindo nessa empreitada um elemento agressivo ao morder violentamente a boca do menino com quem se envolve. O relacionamento dela com sua mãe vem carregado de uma grande tensão, e há vários motivos para isso; um deles pode ser ciúmes da mãe por ter tido seu pai, e assim busca imitá-la ao mesmo tempo em que tenta agredi-la. Nesse sentido, o fato de India procurar a mãe em certo momento em que se sente vulnerável e demonstrar carinho é extremamente revelador.

  O fato é que, no fundo, India se torna um mosaico de identidades, que acabam por compor a dela própria, como fica representado no seu figurino: cinto do pai, saia da mãe, sapatos do tio. Assim, seus atos no clímax do longa não vão contra a lógica de mergulho ao profano tão presente nos trabalhos de Chan-Wook. Muito pelo contrário: ao “eliminar certo elemento no final” (quem viu o filme entenderá mais claramente), India não busca desconectar-se de suas trevas, agora não mais escondidas, mas sim tomá-las para si, abraçá-las sem reservas e incorporá-las totalmente à sua identidade, sem precisar de uma ponte de ligação para isso. Se pensarmos bem, é curioso que Segredos de Sangue assuma uma posição até levemente diferente dentro da filmografia do diretor, mesmo não contradizendo a lógica de seus trabalhos anteriores, como já comentei: se Oldboy, Lady Vingança, Sede de Sangue, etc, traziam certa moralidade (que nunca vinha exacerbada, mas sim como ironia dramática), este novo trabalho do diretor não enxerga o mergulho no profano como algo ruim, torturante, mas como algo libertador, e repleto de uma sensação de prazer orgástico que não poderia existir senão pela entrega total de India ao seus demônios interiores.

  Todo o processo de construção do filme é dialético ao, na montagem, trazer diversas cenas que podem parecer desconexas (as imagens de India e o pai caçando; a mãe aparecendo num flash num sonho; etc), mas que vem em momentos específicos para ajudar a construir toda a significação essencial que discorri nos parágrafos anteriores. E ainda, o elenco contribui com força para o sucesso do trabalho de Park Chan-Wook: Mia Wasikowska corporifica India em seu aspecto fantasmagórico e no prazer que podemos entrever em suas feições em vários momentos, ao mesmo tempo em que a atriz é competente ao mostrar o medo que a menina muitas vezes sente de si mesma; Matthew Goode interpreta Charlie de maneira ambígua, elegante e sempre misteriosa, deixando-o ainda mais complexo por optar por optar, em um flashback, por uma estratégia de atuação completamente diferente da que vinha adotando; já Nicole Kidman desenvolve com perfeição absoluta todas as infinitamente complexas camadas de Evelyn, que tanto exercem influência na filha. Para completar, a trilha sonora do genial Clint Mansell confere um tom ainda mais macabro e sombrio à atmosfera do longa, optando por tons dissonantes em momentos-chave, enquanto a já comentada sonoplastia constantemente influencia positivamente nas interpretações do longa, transmitindo determinadas percepções subjetivas de India (o barulho insuportável das conversas quando ela entra na sala de sua casa, depois do enterro do pai; os sons de uma transa – imaginários – quando ela vai guardar o sorvete no freezer; etc).

  Constantemente flertando com o surrealismo (como em seus outros trabalhos), Park Chan-Wook entrega um filme de caráter inegavelmente erótico, cuja complexidade só pode ser totalmente desvendada com várias visitas ao longa. Mais uma vez, na impecável filmografia do cineasta, somos atraídos para o obscuro e para o profano, como seus atormentados personagens, e nos sentimos magnetizados por isso, ao mesmo tempo em que assustados.

sábado, 1 de junho de 2013



Crítica Faroeste Cabloco (Faroeste Cabloco / 2013 / Brasil) dir. René Sampaio

por Lucas Wagner

  João de Santo Cristo é um herói trágico e solitário, cuja trajetória foi, desde pequeno, repleta de dor e sofrimento. Nasceu sem condições que o facilitassem na vida, João sempre foi obrigado a conseguir as coisas na base da luta, aprendendo a se adaptar num mundo cão que parecia não ter lugar para alguém como ele. Vivendo em guerra constante para sobreviver, o que ele realmente queria era poder viver honestamente ao lado do amor de sua vida, Maria Lúcia, mas diversas condições tornavam isso um sonho impossível. Foi ao narrar a eterna batalha do herói, colocando-a em um contexto de crítica social, que Renato Russo fez de sua canção Faroeste Cabloco uma pequena obra de arte. Repleto de interessantíssimas possibilidades dramáticas para serem exploradas em uma obra cinematográfica, a canção foi finalmente adaptada para a telona pelo estreante René Sampaio que, mais do que tentar agradar aos fãs de Legião Urbana, se preocupou em contar a história de João de Santo Cristo de maneira sóbria e extremamente violenta.

  Descartando o contexto macrossocial presente na música, Sampaio e os roteiristas Victor Atherino e Marcos Bernstein tornam a história mais intimista, com João (Francisco Boliveira) dessa vez não se preocupando exatamente em “falar pro presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”, mas sim em simplesmente sobreviver ao ambiente cruel do mundo das drogas de Brasília da década de 80, se adaptando ao contexto e sabendo que, para ser alguém lá, tem que provar que é perigoso e capaz. Assim, Sampaio investe num nível altíssimo de violência gráfica, não virando a câmera para momentos mais desagradáveis, o que ajuda a deixar o espectador consciente de que lá ninguém pode confiar em ninguém, e que o perigo é sempre iminente, algo ainda ressaltado pela câmera inquieta do diretor, além da fotografia granulada de Gustavo Hadha, que transmite constantemente a ideia de sujeira. Essa lógica cabe também ao próprio personagem de João, que em nenhum momento é suavizado pelos realizadores e, aliás, se torna ainda mais violento do que na canção, sendo capaz de atos brutais e repletos de ódio que o fazem se aproximar mais da figura de um anti-herói do que da de um herói.

  Nesse quesito, o ator Francisco Boliveira faz um ótimo trabalho como João, retratando-o como um sujeito introspectivo que, no entanto, não deve ser subestimado, já que é capaz de tudo para alcançar seus objetivos. Esses objetivos são retratados com certa pureza por Boliveira, e somos capazes de compreender a honestidade da vontade de João de querer ser alguém certo, não ser bandido, levando uma existência tranquila ao lado de Maria Lúcia (Isis Valverde), embora não resista a ganhar um dinheirinho mais fácil a mais como traficante, mentindo para a namorada, o que o torna ainda mais complexo. A trajetória cada vez mais trágica do protagonista é interpretada de forma visceral pelo ator, que aos poucos se transforma numa figura mais e mais temível, o que culmina no famoso e esperado clímax. Apesar de toda a violência, continuamos sempre torcendo por João, por compreendermos seus objetivos e que, diante da forma como viveu os anos de sua vida até agora e do ambiente em que se encontra, agir de outro jeito seria sinal de inegável fraqueza num lugar onde os fracos não tem vez.

  O roteiro toma liberdades com a trajetória de João, excluindo muito do que havia na música e centralizando mais o filme. Por um lado, isso trás inegáveis aspectos positivos para o longa, já que, em primeiro lugar, o torna mais sintético e centrado, e em segundo, a escolha de inserir determinados flashbacks da infância de João em momentos específicos acabam dando uma dinâmica bacana para o longa, que assim, em sua primeira metade, ganha momentos mais introspectivos nos quais, diante de circunstâncias atuais, o protagonista relembra seu primeiro contato em situações relativamente semelhantes e que ajudaram a moldar sua personalidade. No entanto, tal processo de sintetização faz com que os roteiristas recorram ao recurso de uma narração em off para clarificar pensamentos de João, se mostrando um recurso preguiçoso que poderia ter sido evitado caso houvesse mais tempo para que pudéssemos conhecer mais sobre a vida do personagem em Santo Cristo. Além do mais, os roteiristas abandonam esse recurso na metade da projeção apenas para recuperá-lo no final, o que acaba detonando certa falta de preparação. Esse processo de sintetização também impede que conheçamos mais as dificuldades do início da vida de João, que foi obrigado a cometer atos não muito, por assim dizer, louváveis quando criança (pelo próprio ambiente em que vivia), o que contribuía para que se fortalecesse em seu ser a vontade de seguir uma vida diferente em um ambiente diferente, algo bem retratado na canção e não muito bem no filme.

  Porém, se esses problemas acabam não atrapalhando muito o projeto, o que realmente incomoda acaba ficando, infelizmente, na figura de Maria Lúcia. Retratada desde o principio como uma figura solitária e isolada, seus objetivos nunca ficam, no entanto, muito claros para o espectador. Sim, sabemos que muito do que ela faz é por amor a João, mas o relacionamento dos dois não é desenvolvido com propriedade pelo roteiro. O que a faz cair de amores por João? E o que faz João cair de amores por ela? Parece que a única coisa que os mantém tão unidos é o sexo, nada mais. Ainda por cima, ela é trabalhada no roteiro de forma completamente desconexa para uma figura tão importante na história e que exercerá tanta influência. Não há como não enxergar certa hipocrisia em suas ações (o que poderia torna-la mais complexa, mas isso não acontece), como a de dizer que João não é homem para ela porque ele trafica drogas, ao mesmo tempo em que ela é mais maconheira que todo mundo lá. E, assim como na canção, não tem jeito de entender por que ela decide se casar e ter um filho com Jeremias (Felipe Abib), já que ela nunca tinha demonstrado interesse por ele e isso não ajudaria João de forma alguma. Aliás, todo o interesse de Jeremias por ela nunca é evidenciado a não ser quando esse interesse vai ter importância na trama, o que denota falta de estruturação adequada do roteiro. Apesar disso tudo, preciso dizer que aprecio o fato de terem introduzido a figura de Maria de maneira paralela à de João, e também de terem se conhecido antes no filme do que se conheciam na música, o que teria sido um problema na estrutura do roteiro. Além disso, a forma como Sampaio ilustra a personagem em relação à figura do pai (ele todo certinho escutando música clássica e ela toda roqueira), mostra um pouco do que pode definir sua personalidade (e é uma decisão inteligente do diretor de, quando pai e filha estão em um carro, ouvirmos música clássica, como se a personalidade e gostos deste se sobrepusessem à ela). A atuação da bela Isis Valverde também encontra certo carisma e demonstra verdadeira força de vontade da atriz que, no entanto, é sabotada pelo roteiro.

  Quanto ao resto do elenco, infelizmente o ator Felipe Abib transforma o vilão Jeremias numa figura extremamente caricata, nunca convencendo de verdade como alguém perigoso, e sim como um playboyzinho mimado e babaca que não sabe o que está fazendo. Assim, o ator Antonio Calloni constrói na figura do policial corrupto que trabalha com Jeremias um personagem infinitamente mais interessante e ameaçador, que, inteligente o suficiente para manipular o próprio Jeremias, se revela um verdadeiro vilão capaz de humilhar e servir de perigo palpável para o João. Completando, Cesar Troncoso faz um bom trabalho como Pablo, deixando-o tridimensional e carismático o suficiente para ser interessante.

  Na direção, René Sampaio se mostra incrivelmente promissor, sabendo dar ao longa uma atmosfera de tensão quase constante, criando um clima pesado e violento com pouco espaço para o humor. No entanto, a sensação de tempo no filme é extremamente falha, e nunca sabemos exatamente quanto tempo se passa, por exemplo, quando João está preso, ou ainda quanto tempo se passa desde que Maria se estrega a Jeremias, o que é um erro de dimensões consideráveis. Mas o diretor ainda assim se mostra competente até mesmo nas sequências de ação, que são enérgicas e bem montadas, e, principalmente, no duelo final, em que Sampaio mostra toda uma influência do diretor italiano Sergio Leone, responsável por vários e inesquecíveis westerns/faroestes.

  Finalizando, é ainda preciso comentar a maravilhosa trilha sonora original composta por Philippe Seabra, cujos acordes são, além de sinceramente lindíssimos, responsáveis por ajudar a estabelecer determinadas atmosferas das cenas; o uso da guitarra elétrica feito por ele é, por sinal, extraordinário, lembrando diretamente os trabalhos do compositor Ennio Morricone nos filmes do já citado Sergio Leone. A trilha sonora incidental também mostra ter sido bem selecionada por Sampaio, ao passo que, tecnicamente ainda, a direção de arte mereça créditos por estabelecer com maestria os diferentes ambientes e atmosferas do filme, desde a pobreza das locações em Santo Cristo, até as partes mais pobres, mais ricas e de classe média de Brasília da década de 80.

  Forte e violento, Faroeste Cabloco é um retrato digno da canção da Legião Urbana, merecendo créditos por não suavizar em nenhum momento a experiência e de não ter medo em desagradar fanáticos pela música. Apesar de seus óbvios defeitos, um ótimo filme.

Nota: 7,8 / 10,0