terça-feira, 27 de agosto de 2013




Crítica Sem Dor, Sem Ganho (Pain & Gain / 2013 / EUA) dir. Michael Bay

por Lucas Wagner

  A história real dos marombeiros de Miami que, cansados de uma vida apertada no sentido financeiro, resolvem cometer um sequestro ousado, dá uma ótima comédia de erros, e isso pelo fato de que tais sujeitos eram realmente...estúpidos. Despreparados e notavelmente burros, os três fisiculturistas mergulharam de cabeça numa empreitada arriscada demais, sem pensar todas as possibilidades e sem ter conhecimento de todas as variáveis envolvidas (um deles não sabia nem o que era “tabelião”) e, o que é o mais absurdo, vão mergulhando em ações mais arriscadas e ainda mais estúpidas, como se não tivessem aprendido nada com seus erros. Entregar um material desse nas mãos de um cineasta como Guy Ritchie seria o ideal, já que o diretor iria abraçar com toda paixão o absurdo e o rídiculo dessa proposta, criando um longa diretamente semelhante aos seus memoráveis Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch – Porcos e Diamantes. Mas não é lá muito inteligente entregar o material para um cineasta como Michael Bay (de coisas como a trilogia Transformers e Pearl Harbor), ainda mais com um roteiro porco como esse escrito por Christopher Markus e Stephen McFeely.

  Pois não é senão no roteiro que Sem Dor, Sem Ganho encontra seus piores problemas, e isso se refere principalmente à completa incapacidade demonstrada pelos dois roteiristas de contar uma história. Apoiando-se em narrações em off que, muito provavelmente, tentam remeter ao trabalho feito por Martin Scorsese no inesquecível Cassino, Markus e McFeely criam, na verdade, narrações enfadonhas que, não trazendo nada de muito interessante ou pelo menos engraçado, são falhas ainda em não estabelecer bem a história e nem as motivações dos personagens. E eles levam vários minutos (ou páginas do roteiro) para explicar as bases da trama e as motivações do personagem Daniel Lugo (Mark Walhberg), e sua incompetência fica bem visível quando paramos para pensar o quão vagamente sabemos o que está acontecendo na tela, mesmo com tanta falação. Aliás, durante o filme inteiro, o que compreendemos é muito vago. Markus e McFeely ainda falham no quesito humor, já que nunca conseguem criar alguma tirada ou situação realmente engraçada, falhando em explorar o humor negro disso tudo (e se alguma vez rimos, é mais por mérito de algum ator, em especial Dwayne “The Rock” Johnson). Mas não dá muito para esperar algo competente de roteiristas que cometem erros tão básicos como introduzir um personagem completamente novo na história em mais da metade da projeção.

  E se geralmente condeno Michael Bay como sinônimo de incompetência/estupidez (quem lê minhas críticas sabe bem disso) aqui o pobre diabo nem foi tão terrível assim, embora apresente diversas daquelas marcas que o “consagrou” como um dos piores diretores de sua geração. Estão aqui todos aqueles irritantes e constantes travellings, aqueles planos em contra-plongê (câmera filmando de baixo para cima) dando um caráter heróico aos personagens, aquele humor retardado e sem graça, um sem-número de planos em contra-luz, aquelas câmeras-lentas fora de hora, aqueles planos grandiosamente idiotas (o momento em que vemos uma mulher toda de rosa, com uma malinha rosa, em cima de uma montanha no deserto entra em conflito, no quesito burrice, com a loira parada, de salto, no meio de uma guerra em Transformers 3) aquela montagem altamente insana que dificulta para o espectador a experiência de olhar para a tela, e, o pior de tudo, o seu machismo escroto e o patriotismo nojento. Aqui, a pobre coitada da personagem interpretada pela linda Bar Paly é retratada como uma piranha idiota, mimada, ridícula, nada mais que um objeto sexual a ser usado e descartado quando não servir mais (como um personagem realmente faz nesse filme com ela), e o patriotismo é visto na exaltação da “América” sempre feita pelo protagonista, e da figura da bandeira ser um constante elemento do cenário. Mas, como eu tinha dito, Bay não está tão nojento, talvez por ter maneirado um pouco, conseguindo inserir uma energia relativamente eficiente ao longa, com planos inclinados e (alguns) movimentos de câmera que conseguem ressaltar um pouco o caráter absurdo e instável de toda essa história, ainda sendo ajudado pela ótima fotografia de Ben Seresin para estabelecer uma imagem que sempre lembra sujeira e podridão, ao apostar numa paleta forte repleta de amarelo e verde

  Mas, juntamente com o roteiro, o que faz de Sem Dor, Sem Ganho um longa inferior é a seriedade com que Bay o dirige durante a maior parte do tempo. Se o já citado Guy Ritchie abraçaria a bobagem que é esse projeto, e apostaria mesmo na bagunça e no humor negro para funcionar, Bay parece nunca se definir se quer fazer um filme de ação ou de comédia, não conseguindo andar em equilíbrio com os dois, como Ritchie fez tão bem em suas obras já citadas aqui. E nesse ponto, a ótima trilha sonora de Steve Jablonsky acaba sendo inadequada justamente por apostar na tensão como ponto principal. O pior de tudo, no entanto, é que Bay percebe seu erro na metade final do longa, e tenta corrigi-lo inserindo um humor mais acentuado, além de uma montagem e movimentos de câmera que ressaltam o absurdo de tudo aquilo; essa estratégia acaba sendo forçada demais, além de muito óbvia ao escancarar a incompetência do diretor, principalmente quando recorre a recursos bestas (e desesperados) como piadas, como quando uma legenda aparece dizendo “essa ainda é uma história real” ou quando os efeitos colaterais da cocaína são (d)escritos na tela. Como se não bastasse, o diretor não resiste e insere uma cena de ação extremamente exagerada no segundo ato, que nem deveria existir, e funciona apenas para mostrar alguns tiros e correria. O que é uma pena, pois Bay toma algumas decisões até que acertadas, como ao usar um longo travelling circular em 360º para mostrar uma trágica briga e uma festa ao mesmo tempo.

  Vai sem dizer a completa falta de habilidade dos roteiristas e do diretor para desenvolver seus personagens, desperdiçando um elenco que conta com nomes como o de Ed Harris, que aqui parece apenas estar trabalhando pelo dinheiro. Quem se sobressai é só o sempre ótimo Mark Walhberg, que mesmo com um arco dramático tão mal escrito, consegue mostrar bem a trajetória do protagonista, que passa de um homem inocente e sonhador com visão e princípios, para um inconsequente candidato a psicopata louco por adrenalina, e também Dwayne “The Rock” Johnson, que com seu enorme carisma, transforma Paul Doyle num sujeito divertidíssimo em sua religiosidade e inocência quase infantil, ao mesmo tempo em que não deixa de conferir certo peso dramático ideal ao personagem; mas o ator é atrapalhado pelo roteiro quando esse demonstra de novo sua burrice ao mostrar uma transformação brusca e mal feita vivida pelo personagem.

  Inchado em seus desnecessários 129 minutos de duração (Bay parece realmente incapaz de fazer um filme mais curto do que isso), Sem Dor, Sem Ganho poderia ter sido extremamente divertido e engraçado, mas acabou caindo nas mãos de incompetentes que não sabem fazer Cinema.


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Resenha – EP Super Metal: Edition Z – Immortal Guardian



Por Paulo Henrique Faria  

O que dizer de uma banda nova que grava e produz todo o seu primeiro EP de forma independente? Isso não é lá muito incomum, agora, fazer o som que os caras do Immortal Guardian fizeram isso sim é para poucos. Misture Power Metal com Metal Progressivo e nuances de Thrash Metal , Death Metal, adicione pitadas de Metal Core, daí você terá o ótimo “Super Metal – Edition: Z”. A banda é composta pelos jovens americanos Cody Gilliland (Bateria), Foster Minor (Baixo), Jyro Alejo (Guitarra), Gabriel Guardian (Guitarra e Teclado) e ninguém mais, ninguém menos que o experiente vocalista brasileiro Carlos Zema (Ex- HEAVEN’S GUARDIAN, ex-VOUGAN, ex-OUTWORLD).   

         O grupo foi criado em 2008, por Gabriel e Cody, moradores da cidade de San Antonio (EUA). Logo em seguida chamaram Foster e o vocalista Wesley McCool para integrarem o projeto. Em março de 2012 lançaram o primeiro EP oficial do Immortal (Também de nome Super Metal), entretanto, McCool deixou o grupo meses depois. Foi aí que entrou o ótimo papel do manager da banda, Brett Rivera, que primeiro chamou o virtuoso guitarrista de Los Angeles, Jyro Alejo e, logo em seguida Carlos Zema para assumir os vocais. A empatia de todos os envolvidos foi tremenda, tanto que no começo já deste ano de 2013, resolveram regravar todo o EP novamente, colocando as vozes de Carlos e ainda, modificando a parte lírica. Antes a temática era mais voltada para práticas Cristãs e, para não serem rotulados de White Metal, o brasileiro tratou de readequar as letras, que passaram a ter um cunho mais realista e político. Pois bem, o resultado foi mais que satisfatório e a banda embarcou aqui em terras brasileiras no começo de julho com sua primeira turnê pelo país, passando pela capital do Tocantins, Palmas, além das cidades de Goiás como Anápolis, Inhumas e Goiânia (esta última terra natal de Carlos Zema). 
         O EP tem cinco músicas e a primeira faixa chama-se “Surface”. E os gringos já começam com tudo, mostrando a que veio. A canção começa com uma introdução nervosa, bem ao estilo Power de se tocar. Os vocais variam entre o gutural e o agudo de Zema. O ponto forte do instrumental é na hora do solo, quando o guitarrista Jyro faz duetos cheios de arpejos com Gabriel, que pasmem, toca guitarra e teclado ao mesmo tempo. Vale ressaltar ainda a parte melódica, que é bem composta pelos backing vocals de todos da banda e claro, o vocal marcante de Carlos Zema, que joga os tons lá em cima. No fim, Gabriel ainda executa uma bela parte de piano para dar uma quebrada no ritmo.
         O segundo track é a paulera sonora “The Great Escape”, que começa bem ao estilo Power/Prog do SYMPHONY X – uma das maiores influências dos caras. Gabriel novamente faz dois 2 em 1, mandando ver nos solos velozes de guitarra e teclado simultâneos. Outro detalhe a se ressaltar é a capacidade de Carlos Zema de variar sua voz. O frontman vai do gutural à voz de cabeça em questão de segundos. Grande atuação e esplêndida canção! A melhor de todas para mim.  
         A número três é “Disclosure”, que é digamos a balada do registro, pois tem um estilo mais cadenciado. Diminui-se aqui a velocidade, mas não o ímpeto. No meio percebe-se a parte progressiva da coisa, cheio de quebradas e contra tempos. O baterista Cody Gilliland detona tudo na batera e ainda tem fôlego para mandar os seus screamings. O vocal de Carlos aqui é mais melódico e muito bem composto, aliás, para variar.
         A quarta e penúltima é “Nevermore”, que começa já a todo gás com vocal bem agressivo de Zema. A música hora flerta com Power, outro momento com Prog e, ao mesmo tempo com Metal Core. Acredito que deve ser por isso que usaram essa definição “Super Metal”, que ao meu entender é a junção de vários estilos dentro do Metal. Aqui Jyro e Gabriel detonam ainda mais na guitarra, mostrando-nos todas as suas apuradas técnicas e virtuosismos de guitarristas shred que são. Os duetos e solos duplicados são demais! 
         Pra fechar com chave de ouro, temos “Desperation”, canção que começa bem ao estilo Death e depois logo ganha contornos mais melódicos. O refrão é do tipo chiclete e muito bem arranjado. Aqui Cody aumenta os beats em sua bateria, espancando os pratos e caixa da batera e, ainda fazendo de seu bumbo uma metralhadora sonora. Destaque ainda para os arranjos de teclado e o baixo frenético de Foster. Que desfecho! 
         “Super Metal – Edition Z” mostra que o Metal no mundo ainda tem salvação, porque existem bandas novas de qualidade sim! O Immortal Guardian é um verdadeiro exemplo de que se pode fazer algo democrático e cheio de técnica, sem fritação e tampouco apelo comercial. Carlos Zema deixa claro que segue firme e forte com sua brilhante carreira, não ficando atrás de nenhum vocalista a nível mundial em minha opinião. O cara canta demais! A banda é boa pra caramba! E esperem, que muito em breve os americanos vão lançar seu début CD cheio, chamado “Revolution Part 1”, que já estar em fase de produção pelo renomado Roy Z, produtor de álbuns de grandes nomes do Metal como BRUCE DICKINSON, ROB HALFORD, HELLOWEEN, SEPULTURA, ANDRE MATOS e muitos outros. Vocês têm dúvidas de que vem mais coisa de qualidade por aí? Eu não.
  
Nota do EP: 10
  

Quem quiser conferir o som dos caras ao vivo, veja esse vídeo aqui:



Contatos: 

Membros:
Carlos Zema - Vocais
Gabriel Guardian - Guitarra, teclado e backing vocals
Jyro Alejo – Guitarra e backing vocals
Cody Gilliland -  Bateria e backing vocals
Foster Minor – Baixo e backing vocals

Immortal Guardian – Super Metal, Edition: Z (2013 – Independente – USA)

01.  Surface
02.  The Great Escape
03.  Disclosure
04.  Nevermore

05.  Desperation 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013



Crítica Tese Sobre Um Homicídio (Tesis Sobre Um Homicidio / 2013 / Argentina, Espanha) dir. Hérnan Goldfrid

por Lucas Wagner

  Roberto (Ricardo Darín) é um advogado aposentado e atual professor com problemas pessoais que claramente o afetam psicologicamente. Quando um assassinato ocorre na universidade onde trabalha, ele começa a desconfiar de um aluno seu, Ruiz, e, com poucas provas, começa a tentar provar a culpa do rapaz, enquanto ninguém parece acreditar no professor. A partir disso, Tese Sobre Um Homicídio busca desenvolver uma trama extremamente ambígua, cujo maior acerto é justamente sempre deixar o espectador na dúvida sobre o que está vendo, ou seja, sobre a razão ou não das conclusões de Roberto. Mas, e me perdoem pela piadinha infame, isso acaba funcionando mesmo é em tese, já que o roteiro de Patricio Vega não parece capaz de explorar com propriedade as possibilidades de uma trama e um protagonista tão curiosos, tornando a obra inevitavelmente irregular. Apesar disso, o filme possui alguns pontos positivos que não o deixam ser totalmente destruído.

  A fotografia de Rolo Pulpeiro faz um excelente trabalho ao, através de grande uso de sombras e cores escuras, ambientar Tese Sobre Um Homicídio numa atmosfera sombria e ameaçadora, algo que o diretor Hérnan Goldfrid faz bem também ao abrir o longa com um flashforward que mostra o bonito apartamento de Roberto todo bagunçado e revirado, já nos preparando para a desordem que o mundo daquele personagem sofrerá. Além disso, Pulpeiro e Goldfrid conseguem criar certas tomadas esteticamente curiosas, como aquela em que se passa em uma boate e, nesse momento, por cima dos personagens está acontecendo um ato artístico particularmente belo. Corroborando na atmosfera, Sergio Moure cria uma trilha sonora constantemente melancólica, não deixando espaço para leveza no longa. O design de produção também se revela um acerto na medida em que constrói ambientes que transmitem certas emoções específicas para o espectador, como o enorme apartamento de Roberto, mas que surge vazio em sua amplitude, mesmo com tantos objetos intelectuais, algo que contrasta com o apartamento da irmã da vítima, que surge mais apertado, mas também mais aconchegante (e foi inteligente por parte do diretor Goldfrid ter, numa boa misé-én-scene, colocado a moça deitada aconchegada no sofá, com coberta e tudo); mais curioso ainda é ver como o apartamento cinzento e moderno de Ruiz pode ser mesmo como o de um verdadeiro psicopata (limpo, organizado) mas também transmite a neutralidade ideal que corrobora para a incerteza buscada pelo roteiro.

  Com tudo isso, Goldfrid tem as ferramentas para trabalhar o suspense com propriedade, algo que ele faz bem ao estabelecer um ritmo adequado à obra, mantendo a tensão sobre controle. Busca também, acertadamente, colocar-nos sob uma perspectiva subjetiva de Roberto quando se coloca no lugar da cena do crime (e assim sua imaginação pode assumir o ponto de vista do assassino ou da vítima) ou ainda quando esse se encontra angustiado e o cineasta utiliza-se (até mesmo com certo exagero, infelizmente) de babylens para distorcer a imagem que estamos vendo, traduzindo o estado emocional do personagem de forma visual. Ainda, é bacana o momento em que o cineasta usa um travelling circular em 360º para mostrar Roberto em vários lugares explorando insanamente um ambiente, novamente traduzindo as emoções do personagem de forma eficaz.

  E é mesmo em sua trama que Tese Sobre Um Homicídio aposta a maior parte de sua ficha, o que revela até mesmo inteligência do roteirista Patricio Vega por perceber as possibilidades temáticas do projeto. Assim, várias questões são levantadas e relativamente bem exploradas: até que ponto a atenção aos detalhes por parte de Roberto foi fria o suficiente? Será que ele não enxerga determinados detalhes simplesmente porque escolheu (inconscientemente) assim o fazer? Ainda, mesmo que em certos momentos as evidências levantadas pelo protagonista podem parecer muito viajadas, porque parecem se ligar ao assassinato como fazem? Apenas por pura coincidência? Pode muito bem ser (e Vega explora isso bem) que consigamos enxergar as coisas do modo com enxergamos simplesmente porque estamos partindo do ponto de vista subjetivo do protagonista, que é, vale lembrar, um sujeito com diversos problemas pessoais, depressivo e levemente alcoólatra. Assim, o mais fascinante do longa é justamente perceber que essas ambiguidades e incertezas que singularizam a obra, e cria assim um thriller instigante que teria tudo para ser um filmaço, não fosse pelo fato de que, salvo os elogios que acabei de tecer à Vega, ele não sabe como convencer o espectador sobre o que vemos e ainda trabalha porcamente um personagem tão complexo como Roberto.

  Pode ser que esses erros estejam no romance que originou o filme (que não li), mas é um fato que Tese Sobre Um Homicídio carece de verossimilhança suficiente para convencer-nos das pistas e deduções de Roberto. Por exemplo: nenhum espectador em sã consciência aceitará o modo como ele inicia sua busca (baseado na ligação de uma corrente da vítima com uma fala de Ruiz). Isso é apenas um pequeno exemplo, já que se fosse citar outros, poderia acabar entregando algum spoiler (não que não seja difícil enxergar os absurdos de suas deduções durante a projeção). Sem contar que muitos de seus argumentos não são completados durante os 106 minutos de duração, se tornando sugestões vazias que prejudicam o longa em retrospectiva (afinal, Ruiz tinha ou não problemas com a mãe? Ora, Roberto tinha maneiras de saber disso!). E é inegável que existam problemas mais graves ainda na construção do longa, principalmente por não hesitar em usar recursos pobres e inverossímeis, como a ação de Roberto para descobrir uma informação (sério que ele precisava gastar um dinheirão para conferir o preço de certos objetos em conjunto? Ele não poderia só ter checado com um vendedor?) e coincidências extremamente toscas para criar uma tensãozinha pobre*.

  Pior ainda talvez seja perceber que Roberto é uma figura cujas motivações são sempre obscuras ao espectador. Por que diabos ele se dedica tanto à esse caso? Poderíamos forçar a barra e falar que é devido à uma busca de equilíbrio em sua própria vida (algo que poderia ser simbolizado pela sua mania de sempre tentar equilibrar uma moeda) mas, sinceramente, essa hipótese me parece muito forçada e uma tentativa tola de minha parte para salvar o filme. Aliás, o personagem é tão mal construído que faltam informações valiosíssimas para compreendermos sua jornada, como, apenas para citar alguns exemplos: o que tinha acontecido de tão terrível no outro caso que ele atendeu e deu errado? Quais eram seus problemas com a ex-esposa? Porque se divorciaram?

  E se isso causa tanto grilo talvez seja porque exista, em Roberto, um personagem extremamente complexo e fascinante, algo que o extraordinário ator Ricardo Darín parece enxergar e abraçar, numa performance soberba que explora maravilhosamente bem uma figura tão mal construída. Vivendo Roberto com a naturalidade com que assume todos os seus papéis, Darín percebe que por trás da arrogância do professor há um homem deprimido, solitário e totalmente fatigado (observem o detalhe espetacular e sutil no rosto do ator quando recebe, de seu aluno, uma resposta totalmente previsível e tola para uma pergunta que faz à classe, evidenciando talvez o tanto de vezes que foi obrigado a escutar algo como aquilo**). Darín também abraça a carência de Roberto, que inevitavelmente vai entrar em choque com sua máscara de homem sério e profissional, e o ator demonstra toda a vergonha calada dele nesses momentos sutis (observem quando uma moça rejeita um beijo seu). Assim, esse fascinante ator consegue quase fazer de Tese Sobre Um Homicídio um projeto de estudo de personagem, extraindo camadas dele que não existiam no roteiro. Mas, como comentei antes, o personagem é muito mal escrito para um ator (mesmo um Ricardo Darín) dar conta totalmente de levantá-lo.

  Severamente prejudicado pela falta de atenção e incompreensão de si mesmo pelo seu próprio delírio de grandeza, Tese Sobre Um Homicídio acaba tendo pontos positivos demais para ser chamado de “filme ruim”. Poderia ter se tornado um longa excepcional e extremamente complexo nas mãos de alguém que manejasse melhor o material que tem em mãos. Enfim, acabou que ficamos uma obra mediana.

*SPOILER: Me refiro à cena em que a irmã da vítima descobre as luvas e o formol na casa de Roberto.

** “-Qual a principal ferramenta do juiz?” Roberto; “-Os fatos!” Aluno.


sábado, 10 de agosto de 2013


Crítica Círculo de Fogo (Pacific Rim / 2013 / EUA) dir. Guillermo Del Toro

por Lucas Wagner

  Completamente apaixonado, desde criança, por histórias envolvendo fantasia, monstros e fantasmas, o cineasta Guillermo Del Toro construiu uma carreira realmente admirável onde, em cada filme seu, pôde brincar na construção de universos fantásticos e fazer com que o espectador mergulhe junto com ele em sua visão sempre inventiva, promovendo viagens curiosas tanto em seus projetos mais voltados para o puro entretenimento (Blade II, Hellboy 1 e 2, etc) ou naqueles tematicamente mais sérios e ambiciosos (O Labirinto do Fauno, A Espinha do Diabo, Cronos, etc). E é nesse espírito que ele volta à cadeira de diretor (da qual esteve afastado desde 2008, quando, de lá para cá, viu vários projetos afundarem antes mesmo de começarem a ser feitos), construindo em Círculo de Fogo um longa extremamente empolgante cujo universo criativo e personagens marcantes fazem do filme uma experiência mais singular que busca servir como homenagem do diretor para os seus amados filmes de monstros japoneses.

  Com roteiro de Del Toro e Travis Beachem (da medíocre refilmagem de Fúria de Titãs), o longa narra os acontecimentos envolvendo a abertura de uma fenda interdimensional no Oceano Pacífico, de onde saem monstros satânicos com terrível poder de destruição que obrigam os humanos, como medida desesperada, a criarem robôs gigantes para poder combate-los.

  Conferindo uma energia admirável ao projeto, Del Toro cria um longa extremamente fluído, com um ritmo que vai adquirindo cada vez mais urgência e sensação de perigo com o decorrer da projeção, recebendo, nesse ponto, grande ajuda da excelente trilha sonora de Ramin Djawadi (Homem de Ferro, Protegendo o Inimigo, etc), que surge sempre enérgica no sensacional uso que faz da guitarra elétrica e, aqui e ali, de tons remetentes de música eletrônica. Del Toro ainda apresenta uma segurança admirável na condução de sequências de ação realmente fantásticas e destruidoras, levando o espectador a espasmos de empolgação nos excepcionais duelos entre monstros e robôs, que nunca surgem repetitivos, em especial pela sabedoria do diretor ao variar o máximo possível as ambientações desses duelos, o que permite ainda que ele explore as possibilidades visuais que cada ambiente oferece, seja na cidade ou ainda dentro do oceano. Aliás, essa exploração de possibilidades visuais é um dos melhores aspectos de Círculo de Fogo, por não hesitar mesmo em mergulhar-nos em ambientes completamente alienígenas (e, em um momento que tal descrição cabe perfeitamente, Del Toro é sábio ao utilizar lentes que distorcem a imagem do que estamos vendo, dando a necessária sensação de estranheza) e fazer com que seus robôs utilizem o máximo possível de repertório de armas, mesmo aquelas improvisadas, como quando Gipsy (o principal dos robôs) aparece batalhando com um monstro usando um enorme navio como espada.      E assim, os efeitos visuais são geniais por nunca denunciarem completamente sua natureza digital, apresentando cuidado admirável ao, por exemplo, conferir peso e densidade à movimentação dos robôs, sugerindo assim a dificuldade que é movimentá-los; ainda, o visual dos monstros surge como um espetáculo à parte, já que são suficientemente peculiares para nos causar ainda mais medo e curiosidade por aquelas criaturas, que surgem ainda mais ricos pela diversidade de espécies que apresentam.

  Como seria de se esperar do homem que criou os fascinantes vampiros da Trilogia da Escuridão (série de livros vampiresca escrita por Del Toro e Chuck Hogan), os monstros de Círculo de Fogo não são curiosos apenas em matéria de visual, mas são trabalhados por Del Toro (tá, e Beachem também) de modo a serem desenvolvidos em sua natureza de maneira mais complexa, fazendo com que cresçam como vilões quanto mais vamos aprendendo sobre eles. Aliás, o longa está repleto de excelentes e ricas ideias relativamente bem exploradas, envolvendo aquele universo todo (o mercado negro é um aspecto particularmente interessante) e o próprio funcionamento dos robôs, quando se refere à conexão interneuronal necessária entre duas pessoas, algo que o roteiro trabalha bem na ligação dos pilotos com a máquina que isso cria e a ligação inevitável entre eles mesmos (os pilotos), já que se encontram, quando conectados, dentro da mente um do outro, sendo capazes de compartilhar sentimentos profundos e extremamente particulares de cada um, o que estreita os laços entre eles. Além das diversas outras curiosíssimas ideias, o roteiro acerta quando flerta com temáticas mais sérias ao sugerir, por exemplo, os privilégios que os ricos teriam sobre os pobres (o que levaria a diversos protestos da população) dentro do contexto do filme, e ainda, mesmo que de forma juvenil, indicar uma ligação direta entre a destruição ambiental que causamos hoje em dia e a invasão dos monstros. O roteiro não se detém sobre essas temáticas mais sérias durante muito tempo, mais é um ponto enriquecedor principalmente por ressaltar o aspecto trágico desse mundo futurista.

  O design de produção faz um bom trabalho traduzindo visualmente tais ideias, principalmente no submundo de Tóquio, embora, infelizmente, não consiga variar muito o visual das ambientações. Mais interessante, no entanto, é notar o cuidado dos realizadores com aspectos mais sutis que acabam enriquecendo demais a obra, como no detalhe de azul no cabelo de Mako (Rinko Kikushi), remetendo à experiência traumatizante de sua infância (observem a coloração do monstro em sua lembrança), ou ainda quando um personagem secundário, que carrega sempre um terço amarrado à mão, surge usando uma indumentária antiquada, sugerindo como a própria religião se tornou antiquada naquele universo. Ainda, é notável a atenção dos realizadores ao colocar Mako, num momento de adrenalina/pânico, esquecendo-se de falar em inglês e usar sua língua materna (o japonês), como que por reflexo, e é curioso como Del Toro parece ambientar o longa sempre no período da noite, mudando esse lógica apenas quando percebe uma possibilidade narrativa que, mesmo clara, surge elegante na sua sugestão de algum ponto de esperança onde antes não existia nenhuma.

 E essa surpreendente sensibilidade permite que um excelente elenco trabalhe em prol de construir personagens realmente admiráveis, que conseguem conquistar emocionalmente o espectador. O ótimo Charlie Hunnam (que interpretou de maneira poderosa o complexo arco dramático do protagonista Jax Teller no seriado Sons of Anarchy) confere peso dramático à Raleigh, mostrando-o como um jovem empolgado e depois como um adulto mais trágico e amargurado, mas que mantém a jovialidade e o amor pelo que faz, ao mesmo tempo em que uma solidariedade e sabedoria que serão essenciais em sua relação com Mako. O excelente Idris Elba (ator que defendo veemente desde seu trabalho em Extermínio 2) tem, finalmente, espaço mais folgado para desenvolver um personagem, e transforma Stacker numa figura complexa e fascinante, demonstrando a sabedoria do personagem, que sabe ser gentil ao mesmo tempo que demonstra uma bondade realmente admirável que o faz crescer tanto como líder e ser humano, mas que revela-se em constante estado de tensão, lutando para manter e calma e não explodir, mesmo que isso seja impossível de vez em quando. Mas a personagem mais complexa do filme é mesmo Mako, principalmente pela performance cheia de nuances da linda Rinko Kikushi, que sabe compor uma figura tímida mas persistente em seus objetivos, cujas emoções que segura dentro de si podem ser muito mais intensas do que ela acredita, o que tanto a fragiliza quanto, ao mesmo tempo, a torna uma figura mais forte. 
  Completando essa gama de personagens ricos, o sempre genial Ron Perlman (parceiro habitual de Del Toro e também um dos principais de Sons of Anarchy) transforma o traficante Hannibal Chou numa figura divertidíssima e repleta de surpresas, se tornando sempre imprevisível (e o figurino faz um ótimo trabalho ao vesti-lo de forma excêntrica, meio como um cafetão), enquanto o geralmente medíocre Charlie Day (com sua irritante mania de sempre gritar suas falas) faz um trabalho relativamente eficaz como o cientista fascinado pelos monstros, mas essa eficácia se deve mais pela natureza do personagem do que pelo ator (o momento em que, aterrorizado, tenta usar de um status de médico para conseguir privilégios no meio de uma multidão desesperada é hilário). E também merece menção a dupla de pilotos formada pelo pai experiente e o filho rebelde, já que o primeiro desde o início se estabelece como figura de respeito, cansado e meio deprimido, enquanto o segundo é um estorvo durante a maior parte do filme, mas sabe demonstrar seu valor quando necessário. 
  No entanto, mesmo com tantos acertos admiráveis, Círculo de Fogo passa longe de ser um grande filme principalmente por aderir sem reservas ao freneticismo insano tão comum entre os blockbusters de hoje em dia (apesar de, no início do texto, eu ter elogiado o ritmo do filme, que ainda é bom, apesar das ressalvas que farei), enquanto claramente o longa em questão se beneficiaria se, aqui e ali, se arriscasse num tom mais contemplativo. Digo isso em especial porque permitiria uma ilustração mais singela e apurada do estado mental compartilhado na conexão interneuronal, onde um toque até meio surrealista poderia conferir poesia e maior complexidade ao momento; mas o que vemos é quase sempre uma série de imagens em alta velocidade que mal conseguimos captar direito. Há apenas um momento em que tal tom contemplativo é abraçado, e não é atoa que seja um dos melhores momentos do filme. Além disso, o ritmo insano demais acaba prejudicando o desenvolvimento dos personagens que, se ainda são ótimos, isso é mais por culpa do elenco, já que o roteiro deixa pouco espaço de tempo para realmente se dedicar a explorar a complexidade de cada um daqueles indivíduos que estamos conhecendo pela primeira vez. Talvez pior do que isso tudo seja como Del Toro não consegue evitar uma entrega besta à vários clichês tão enfadonhos e de fácil escapatória, o que faz com que qualquer espectador (mesmo aquele que pouco assiste filme) se sinta como se sendo feito de idiota. Sem revelar nada de especial, alguns desses clichês se referem a, por exemplo, aquela velha cena do personagem que começa um discurso aparentemente aversivo apenas para mostrar que na verdade que está orgulhoso, ou ainda a conclusão do clímax, que mostra inocência de Del Toro ao usar um mesmo recurso que está se tornando mais e mais comum, e consequentemente, mais e mais cansativo, e já não engana ninguém. 
  Ainda assim, Círculo de Fogo é um ótimo filme, que mais uma vez demonstra o talento e criatividade de Del Toro como contador de histórias, estabelecendo esta obra como entretenimento de alta qualidade. Agora é esperar ansioso pelo seu próximo projeto, Crimson Peak, e sonhar, como qualquer bom cinéfilo, que depois ele possa finalmente se dedicar ao projeto de seus sonhos: levar para as telas o genial conto Nas Montanhas da Loucura, do mestre do terror H.P Lovecraft. Esperemos...

domingo, 4 de agosto de 2013




Crítica Antes da Meia-Noite (Before Midnight / 2013 / EUA) dir. Richard Linklater

por Lucas Wagner

  A chamada “Before Trilogy”, composta por Antes do Amanhecer, Antes do Pôr-do-Sol e agora este Antes da Meia-Noite é, sem dúvida, uma das mais fascinantes empreitadas cinematográficas de todos os tempos, mesmo que aparente simplicidade à olhos mais ingênuos. Em Antes do Amanhecer, conhecemos Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) quando eram apenas jovens sonhadores de 23 anos e os vemos se apaixonar com um doce romantismo juvenil, se descobrindo com um fascínio delicioso (como qualquer duas pessoas que vão se apaixonando) enquanto trocavam diversas ideias sobre assuntos triviais e outros mais profundos, indagando-se sobre um futuro misterioso e cheio de promessas. Os encontramos novamente em Antes do Pôr-do-Sol, quando eles se reencontram em Paris depois dos nove anos sem se ver, e os vemos com cicatrizes emocionais e um cinismo maior, embora sempre esperançosos principalmente agora que se reencontraram. E em Antes da Meia-Noite encontramos um casal amadurecido, que se conhece nos mínimos detalhes e que, apesar do gostoso romantismo que viveram nos dois primeiros longas, aqui enfrentam dois inimigos implacáveis no que diz respeito a qualquer duas pessoas que um dia foram loucamente apaixonados: o cotidiano e o tempo.

  Mais uma vez escrito pelo diretor Richard Linklater e pelos atores que interpretam o casal protagonista, essa terceira parte da trilogia encontra um Jesse e uma Celine que viveram juntos desde que se reencontraram em Paris, no segundo filme, há nove anos. Com duas filhas gêmeas e o filho de Jesse de seu casamento mal sucedido, o casal passa as férias de verão na Grécia, juntamente com amigos escritores de Jesse. Mas esse é o cenário preparado para os longos diálogos que caracterizaram tão bem essa trilogia.

  É até meio estranho ver Jesse e Celine dando ordens para seus filhos, discutindo coisas mundanas de qualquer casal, já que estávamos acostumados a vê-los tendo discussões filosóficas sobre assuntos profundos, ou mesmo fazendo piada com bobagens do cotidiano. Afinal, é isso o que mais encantou principalmente no primeiro filme: a paixão dos dois era desenvolvida através de conversas, como na vida real, e não de grandes aventuras, como a maioria dos romances hollywoodianos. Mas esse casal amadurecido de agora não tem grandes conversas desde muito tempo, devido à massacrante quantidade de tempo que tem que dedicar aos filhos, ao trabalho, e a coisas bobas do cotidiano como o que precisa ser comprado no supermercado. Assim, é divertido ver a surpresa com que os dois percebem silêncio sem barulho de crianças correndo para lá e para cá ou de fúteis discussões infantis entre as meninas. E a partir disso, Linklater volta a criar longos planos que acompanham o casal em longas caminhadas, simplesmente conversando, ou até mesmo manter a câmera estabilizada durante um longo diálogo em um carro, interrompendo pontualmente suas conversas para mostrar um elemento interessante do cenário para o outro, como quando duas pessoas conversam na vida real.

  Diálogos esses que, mais uma vez, surgem com uma riqueza e naturalidade que é extremamente rara de achar em qualquer material que busque inspiração no cotidiano, seja um livro, um filme, ou que for. O que não é apenas sinal de qualidade do roteiro, mas dos próprios atores envolvidos, e novamente, Hawke e Delpy estabelecem a mesma química fascinante de antes, só que conversando dessa vez não como dois pombinhos se conhecendo, mas agora como um casal que já se conhece muito bem, sabe o que esperar um do outro, mas que veem-se surpresos ao, aqui e ali, encontrarem algo que não sabiam do outro, e os atores demonstram, através de simples expressões faciais, essa surpresa. É bem verdade que não vemos aqui, como nos longas anteriores, Jesse contemplando, fascinado, a mágica criatura que era Celine aos seus olhos, quando ela dava longas filosofadas sobre assuntos diversos, mas a pequena surpresa de saberem algo um do outro que antes não sabiam é o substituto real (promovido pelo longo tempo de convívio) para a fascinação de antes. Desta vez, no entanto, as conversas dos dois não giram em torno de questões tão grandiosas como as inúmeras promessas do futuro de antes, mas sim em torno de coisas passadas e de pensamentos como “será quem que vai morrer primeiro”. E é realmente fascinante que Linklater, Hawke e Delpy criem uma sequência de diálogo sublime envolvendo vários casais durante um almoço, quando, mascarada por piadas e pela naturalidade de uma conversa de amigos, encontramos as mais profundas reflexões do longa, quando esses diferentes casais falam sobre suas visões de amor, sexo, perdas, as mudanças promovidas pela tecnologia no âmbito dos relacionamentos, etc.

  Antes da Meia-Noite não é, no entanto, um filme doce e deliciosamente romântico como Antes do Amanhecer e Antes do Pôr-do-Sol. Afinal, mesmo nesses dois outros longas, Jesse e Celine falavam, com a arrogância típica de jovens inexperientes, sobre como qualquer relacionamento era massacrado pelo tempo e os elementos do casal viriam, eventualmente, a se odiar. Não que esse casal amadurecido que aqui encontramos se despreze, mas um conhece o outro o suficiente para ter deletado a imagem romântica e idealizada que tinham do (a) parceiro (a). E assim, até mesmo o bom humor que cada um sempre teve é revestido de uma acidez antes inexistente, já que muitas vezes as piadinhas servem como pontadas para lembrar um defeito do outro. Aliás, Linklater faz um excepcional trabalho ao transmitir essa decadência do amor deles de forma visual, como pelo fato de ao invés dos passeios por belos ambientes como no primeiro e segundo filmes, respectivamente, em Viena e Paris, aqui evitar grande parte das belas localizações da Grécia para passar a maior parte do tempo dentro de um apartamento de hotel, representando, através das paredes que os cercam (ao contrário dos amplos ambientes das românticas cidades de antes) a espécie de prisão que se tornou o relacionamento dos dois, ou ainda quando os dois assistem ao sol se pondo, com a luz sumindo gradativamente. Ainda, o próprio fato do filme se passar na Grécia revela inteligência por parte de seus realizadores, já que as ruínas e a História trágica da ambientação reflete ainda mais a desmistificação e decadência do relacionamento de Jesse e Celine.

  Afinal, em certo momento, Celine pergunta à Jesse se ele ainda a convidaria a descer do trem com ele (modo como se conheceram em Antes do Amanhecer), e este mesmo hesita de maneira reveladora. Mesmo uma história de amor tão bonita quanto a dos dois tende a decair, a ter sua beleza engolida pelo impiedoso cotidiano. Assim, se os dois primeiros filmes conseguiam com enorme sucesso passar a sensação deliciosa de conhecer (ou reencontrar) alguém novo e se apaixonar (e re-apaixonar), este terceiro passa a sensação de fadiga de um relacionamento longo. É impossível não concluir que, no espaço entre Antes do Amanhecer e Antes do Pôr-do-Sol, o que fez com que os dois tivessem mantido um ao outro com tanto carinho na memória, e chegado à conclusão de terem encontrado (e perdido, entre esses dois filmes) o amor de sua vida, é simplesmente o fato de que não se viram desde que se conheceram, e que o tempo que tinham passado juntos era tão curto que não tinha permitido que um conhecesse o outro o suficiente para tirá-lo (a) do pedestal. E agora, o espaço para longas discussões sobre o valor e a beleza dos pequenos momentos, sobre verdadeiro amor, sobre diversas histórias e sonhos, é totalmente secundário, e brigas poderosas e extremamente amargas tomam o primeiro plano, com cada um tendo o conhecimento mais do que suficiente do outro para destruí-lo completamente.

  No entanto, se isso tudo faz Antes da Meia-Noite parecer um longa amargo e sem qualquer esperança no amor, na verdade há espaço suficiente aqui para perceber que um relacionamento longo tem certas belezas inegáveis no profundo conhecimento um do outro que podem ser suficientes para que um “Eu te amo incondicionalmente” seja dito com sinceridade. Assim, a história de Jesse e Celine, contada nesses três maravilhosos filmes, é icônica justamente por perceber o que nos faz humanos e como somos terrivelmente frágeis na nossa necessidade de amor e carinho; que aquela mesma pele que um dia beijamos com tanta doçura e devoção, aquela mesma voz que soa como música aos nossos ouvidos, aquelas mesmas ideias que um dia nos fascinaram em outra pessoa serão, eventualmente, motivo de nossa maior ruína.

  PS: o melhor filme de Richard Linklater, Waking Life, trás o casal Jesse e Celine, em forma de animação, discutindo reencarnação, tema que discutiram também em Antes do Amanhecer e Antes do Pôr-do-Sol. Curiosidade inútil, porém interessante.