sábado, 27 de setembro de 2014


Análise:

Sin City 2: A Dama Fatal (Sin City: A Dame To Kill For / 2014 / EUA) dir. Robert Rodriguez & Frank Miller

por Lucas Wagner

Sin City – A Cidade do Pecado, de 2005, merecidamente foi ganhando um respeito crescente ao longo dos anos já que, além de funcionar como um verdadeiro pulp fiction, trazia para as telas do cinema uma autêntica atmosfera noir mixada com as peculiaridades da linguagem de HQs. O resultado foi um espetáculo visual de tirar o fôlego, um exercício narrativo digno de nota que sempre vale a pena revisitar. Nove anos depois e sua continuação, A Dama Fatal, chega às telas, com muitos dos elogios voltados ao primeiro filme podendo ser justamente aqui repetidos, apesar de que essa continuação em nada se esforce para criar algo novo em relação ao que já vimos.

O que acaba não sendo tão problemático assim. A Dama Fatal é tão, ou mais, visualmente arrebatador do que o seu antecessor, e a obra já mereceria aplausos pela sublime beleza estética de seus planos e sua fotografia. Novamente filmando em green screen, os diretores Robert Rodriguez e Frank Miller (também responsável pela graphic novel que inspirou o filme) apostam no preto e branco como estratégia visual para corroborar na criação de uma atmosfera de film noir que remete a clássicos do gênero ao mesmo tempo em que a obra continua ganhando singularidade ao misturar essa característica com os predicados visuais que tanto marcam o universo das HQs. E assim, certas peculiaridades dessa mídia ganham destaques sutis, como nos óculos de grau que parecem refletir uma forte luz branca.

Mais importante é como o filme recria nuances próprias do universo dos quadrinhos, algo que fica evidente em cenas como a que Marv (Mickey Rourke) luta para relembrar uma perseguição e, enquanto a câmara gira ao seu redor, vemos dois carros em miniatura perseguindo um ao outro. Fora que, por fazer parte do mundo das HQs, justifica-se exageros gráficos que, de outro modo, pareceriam deslocados. Completa essa imersão nos quadrinhos o fato de os diretores continuarem buscando adaptar a narração em off dos personagens para a estrutura sucinta e funcional das HQs, sendo bem sucedidos aqui, muito embora à esse A Dama Fatal falte a poesia de falas do seu antecessor como: “Seu corpo treme ao vento como uma folha seca em uma árvore morta”. Uma pena.

Porém, os “nervos poéticos” de Rodriguez e Miller afloram na beleza infernal de detalhes visuais aqui concebidos, alguns com uma tremenda força simbólica, como a piscina de Ava (Eva Green), cujo vapor de água quente é deveras perceptível, reforçando o tom mitológico de sua figura, ao mesmo tempo em que o design de produção acerta basicamente na criação de cada metro quadrado desse universo, e que ganha nuances próprias em detalhes como aqueles que compõem a casa de Nancy (Jessica Alba), onde o papel de parede com temas floridos se encontra severamente rasgado, destroçado até. Além disso, “beleza infernal” é uma expressão também cabível para os planos criados pelos diretores, que muitas vezes extravasam os limites físicos para fins metafóricos, e já que citei a casa de Nancy, é fascinante como seu quarto consegue se transformar em uma enorme cova sepulcral em certo momento do terceiro ato.

O mais fascinante em Sin City, no entanto, continua a ser a forma como são utilizadas as cores nesse universo em preto e branco. Aparecendo como pontos isolados, as cores hora são usadas apenas para fins estéticos (como a imagem de tirar o fôlego da sombria Basin City iluminada por parcos pontos coloridos) e hora com fins simbólicos, assim como foi feito no longa anterior. No geral, quando voltadas a metáforas, as cores referem-se a fortes emoções, ou mesmo sensações, envolvendo luxúria, repugnância, medo ou simplesmente maldade. Algumas vezes, os motivos são simplesmente fetichistas, como as ruivas sempre evidentemente ruivas, mas está valendo. Com tudo o que poderia falar sobre as cores nesse texto, escolho comentar os olhos e a boca de Eva Green. Desde sua primeira aparição, a linda mulher exibe com os carnudos lábios desenhados por um forte batom vermelho, enquanto o resto de sua figura fica no básico preto e branco. Ora, o vermelho já vai remeter à paixão destrutiva de Dwight (Josh Brolin) por ela, ao mesmo tempo que é uma cor de alerta sobre essa mulher em quem não podemos confiar. Mas é apenas a partir de um momento estratégico da narrativa que seus olhos ganham uma forte coloração verde, que vai lembrar o tema da morte e o cerne maligno dessa mulher (afinal, os olhos são as “janelas para a alma”).

Aproveitando que falei das mulheres, essa continuação perde um pouco de característica de mundo controlado (por vezes subliminarmente e outras descaradamente) por pessoas do sexo feminino altamente manipuladoras. No entanto, a história envolvendo Ava compensa bem nesse sentido, tanto pela personagem em si quanto por trazer de volta o conceito da parte da cidade governado por mulheres independentes. Mas, voltando à Ava: essa é uma figura absolutamente aterradora, fascinante e sedutora, e é palpável o nível de ameaça representado pela mulher, algo que os diretores ressaltam ao mostrar a facilidade com que ela destrói a vida de um homem sem nem perceber (e se percebe então...). Para isso, a atuação de Eva Green está irretocável, conseguindo usar toda sua beleza e imponência física para criar a figura mefistotélica que, afinal, é Ava.

Estruturalmente, A Dama Fatal também não decepciona, novamente contando três histórias independentes pontuadas por leves elementos em comum. Mas essa continuação ousa um pouco mais ao apresentar as tramas envolvendo Johnny (Joseph Gordon-Levitt) e Nancy e interrompê-las em momentos tensos, nos deixando atiçados ao utilizar a estratégia narrativa de “causa e conseqüência”, para então iniciar-se na trama envolvendo Ava e Dwight. Além disso, é curioso como as três histórias se passam em distintos períodos no tempo (uma inclusive antes do primeiro filme) e que os diretores sejam delicados ao expor essas informações. Interessante também como foram incluídos elementos sobrenaturais que cabem perfeitamente nesse universo demoníaco, e assim, o detetive Hartigan (Bruce Willis) volta não como alucinação de Nancy, mas como um verdadeiro fantasma amaldiçoado. Contribuindo para essa noção surreal, é bacana que certos elementos fantásticos e até farsescos se façam presentes, como o funcionamento do complexo habitacional onde cresceu Marv. É uma pena, no entanto, que esse personagem, tão fascinante no filme de 2005, aqui seja usado basicamente para falhos fins cômicos.

Sin City 2: A Dama Fatal novamente é um mergulho em um universo amaldiçoado e aversivo, com personagens malditos condenados a viver chafurdando na própria miséria, na violência, sem a mínima possibilidade de redenção. Aliás, quem é que quer redenção?

E se isso tudo pode ser dito também sobre o primeiro filme, tanto melhor.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014


Análise:

Coherence (Coherence / 2014 / EUA) dir. James Ward Byrkit

por Lucas Wagner

Existe aquela velha máxima que alguns cinéfilos e cineastas adoram, romanticamente, repetir: câmera na mão e ideia na cabeça. Ao invés de criar um visual arrojado para o projeto, o foco dessas criativas produções de baixo orçamento está nas ideias, e o improviso muitas vezes reina. Essa ficção científica Coherence é um ótimo feito nesse sentido recentemente, representando ainda um excelente ponta-pé para a carreira do diretor e roteirista James Ward Byrkit, que já tinha trabalhado no roteiro da inesquecível animação Rango.

Sem revelar nada que comprometa as melhores reviravoltas presentes no projeto, a trama poderia ser resumida da seguinte forma: ocorre um jantar entre velhos amigos na mesma noite em que um cometa passa bem próximo do planeta Terra, sendo visível no céu noturno. Durante essa passagem, a energia acaba em todo o bairro, deixando luz apenas em uma isolada casa a alguns quarteirões de distância. A partir disso, uma série de perturbadores eventos tem início, em especial quando os personagens percebem estar lidando com uma situação envolvendo universos paralelos.

Por motivos de redução de custos de filmagem, o diretor rodou o projeto em sua própria casa, e, aliás, a própria premissa de ficção científica partiu de necessidades financeiras, já que o cineasta gostaria de “fazer uma sala de jantar parecer maior do que uma sala de jantar”. As ideias envolvendo universos paralelos trazidas para o projeto ampliam em complexidade e drama o parco espaço físico, que diretor e equipe souberam usar com inteligência.

A começar pela forma como desenvolvem a relação entre os amigos no início da obra, e como, aos poucos, vai apresentando informações que introduzem a narrativa em sua temática sem, no entanto, atropelar o desenvolvimento dos personagens ou soar deveras óbvio em atender suas necessidades narrativas. Assim, os amigos conversam tranquilamente sobre diversas coisas (e a fotografia de Nic Sadler acerta nos tons quentes e aconchegantes, assim como os móveis e objetos de cena transmitem a mesma sensação), muitas delas envolvendo suas histórias, besteiras, piadas, e apenas pontualmente tocando em temas importantes para a trama de ficção científica.

Quando esta definitivamente começa, a tensão se instala, em especial pela maneira brusca como os amigos são interrompidos em sua reunião, e essa mesma brusquidão só funciona por já termos sido preparados por pistas que, de leve, introduziam maior suspense, como os celulares quebrados ou a falta de internet. Ward Byrkit (o diretor) então se mostra bem sucedido ao conseguir imprimir uma atmosfera de tensão crescente, com a narrativa se tornando cada vez mais angustiante quanto mais os personagens vão se tornando cientes, ou ao menos fazendo suposições, sobre a situação em que estão implicados. Além disso, a obra ganha ao criar um clima de paranóia que em muito remete a clássicos como O Enigma de Outro Mundo ou Vampiros de Almas, quando a confiança dos personagens (e a nossa também) sobre a natureza e intenções de várias daquelas pessoas começa a ser testada. No entanto, Coherence ganha ainda mais complexidade nesse âmbito do que nas outras obras citadas, pois aqui os possíveis “impostores” (ou “visitantes”) na casa não tem, a priori, intenções malignas, mas são seres humanos tão confusos quanto seus companheiros (ou adversários).

A trama em si prima pela inteligência. Coherence é uma ficção científica mais focada em desenvolver ideias, e assim a obra fascina ao brincar com conceitos de múltiplas realidades e do famoso experimento “mental” do gato de Schrödinger. Só é uma pena que algumas vezes esses conceitos não sejam introduzidos de forma mais orgânica, mas sim envolvendo muletas narrativas como a protagonista (Emily Baldoni – lindíssima) que já pesquisou o assunto, ou o personagem de Hugh que, por glória de deus, tem um livro no carro que fala sobre essas questões, além de ser irmão de um físico teórico. Mas isso acaba pouco importando por sermos completamente fisgados pela trama, nos tornando cada vez mais interessados com as reviravoltas e suas implicações presentes no roteiro, com o filme se tornando um delicioso “mindfuck” que qualquer espectador vai se perceber regozijando ao, às vezes sem intenção consciente, decifrar. Além disso, corrobora a inteligência de Ward Byrkit ao introduzir, ao longo projeção, diversas pistas para eventos futuros, transformando o projeto num quebra cabeça que o espectador vai montando.

Interessante também observar o esforço do diretor/roteirista em transformar cada um dos personagens em indivíduos tridimensionais. No entanto, não é sempre bem sucedido, e se Mike é um sujeito complexo e fascinante, Lee comove com sua delicada passividade e Laurie se mostra muito mais proativa do que o esperado, outros personagens são consideravelmente desinteressantes, como o galã bocó Kevin ou a própria protagonista, Emily, cujos dilemas amorosos acabam apenas por irritar, apesar de justificar boas cenas.

Porém, a meu ver, o mais interessante de Coherence é o fato de não raro flertar com questões existenciais envolvendo as implicações de um encontro com universos paralelos. Isso faz o longa aprofundar-se mais do que o esperado no seu próprio tema, mas também é algo que Ward Byrkit faz de maneira irregular. Pois existem subtramas como aquela que envolve o temor de Mike despertado pela existência de um outro “eu”, que acaba retroagindo em seu próprio comportamento e assim afetando a trama como um todo. Mas também, há diversas oportunidades tristemente desperdiçadas, e quando Emily cita as possibilidades de autoconhecimento que tal situação implica (ou poderia implicar), só pude lamentar que o filme descarte a ideia com a mesma rapidez que a propôs.

Enriquecido por uma conclusão eletrizante, Coherence é um empreendimento nobre e muito eficaz, mais uma prova de que o mais importante em uma ficção científica (ou em qualquer gênero, diga-se de passagem), são as ideias e o modo como as trabalha. Então, mesmo que não seja tão fascinante quanto alguns “primos” como Triângulo do Medo ou Donnie Darko, é certamente divertido o suficiente para valer a visita.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014


Análise:

Isolados (Isolados / 2014 / Brasil) dir.Tomas Portella

por Lucas Wagner

Não é raro se apontar que o Cinema brasileiro pouco se dedica à exploração de obras cujo objetivo não passa de exercício de gênero, não ambicionando algo deveras profundo ou singular, por assim dizer. Cinema desse tipo é, quando bem feito, refrescante em sua pureza despretensiosa, e o Brasil aos poucos demonstra tendência a se dedicar um pouco mais a isso. Mas, se suas comédias se mostram, em grande parte das vezes, sofríveis, há relativo pouco tempo, 2 Coelhos foi um esforço digno no caminho do Cinema de gênero, e agora esse Isolados revela-se uma tentativa não menos louvável nessa trilha ao conseguir equilibrar-se eficazmente entre o slasher (horror com assassinos psicopatas) e o terror psicológico.

Com roteiro do diretor Tomas Portella e Mariana Vielmond, a história acompanha o psiquiatra Lauro (Bruno Gagliasso) e sua namorada Renata (Regine Alves). Ambos fazem uma viagem de férias a uma casinha isolada sem saber que nas redondezas vem ocorrendo uma série de sangrentos assassinatos de mulheres. Depois que Renata é atacada (por favor, isso não é spoiler, mas sim muito previsível), Lauro se vê pressionado ao ter que lidar com os sádicos e com a depressão da namorada.

Ao nunca mostrar fisicamente os tais sádicos, Isolados consegue transformar esses supostos vilões em seres infinitamente mais assustadores e ameaçadores do que se realmente os víssemos, já que assim ganham matéria de fantasmas, quase sobrenaturais. Além disso, o longa ganha pontos ao conseguir imprimir uma constante atmosfera de claustrofobia pela sombria fotografia de Gustavo Hadba, que transforma aquele universo em algo sem vida e frio. Ainda, a fotografia merece créditos por conseguir fazer com que boa parte da obra se passe em um ambiente iluminado por velas ou por uma lareira, conseguindo nunca deixar o espectador confuso ou cego diante do que ocorre, mas alcança o efeito desejado de imprimir um tom macabro e infernal aos acontecimentos que tomam conta da narrativa a partir de sua metade. O design de produção também se mostra eficaz ao construir uma casa que passa a sensação de mal assombrada sem nunca escancarar esse efeito.

É uma pena então que o diretor Tomas Portella acabe tropeçando tanto no processo de arrepiar o espectador, em especial na primeira metade da produção, apesar da ótima introdução pré-título. A boa trilha sonora acaba sendo abusivamente utilizada, e ainda de maneira errônea com o objetivo de fazer saltar o espectador, algo ainda mais lamentável se contarmos as vezes em que o diretor causa ingratos sustos com animais ou objetos inanimados... coisa de amador. Ainda assim vale dizer que os esforços do cineasta acabam sendo muito mais bem sucedidos a partir do momento da produção em que Renata é atacada, pois então o diretor consegue imprimir uma atmosfera de angústia palpável, coadunada pela sensação constante de alucinação e delírio, essenciais para que a obra funcione, e efeitos aqui conseguidos a partir do ótimo uso de câmeras inclinadas e lentes grande angulares que distorcem o campo em que a ação acontece, além dos fechados planos nos rostos atormentados dos personagens. Além disso, o diretor é hábil e inteligente na criação de pistas orgânicas sobre o clímax ao longo da obra.

Ainda para que o filme funcione por completo, o trabalho psicológico envolvendo seu protagonista, Lauro, é vital. E assim, é notável como o roteiro é eficiente ao oferecer detalhes ao longo da projeção que transformam Lauro num indivíduo muito mais complexo e multifacetado do que se esperaria do almofadinha que aparece no início do filme. Assim, certas falas suas são importantes para se fazer uma leitura psicológica mais acurada do sujeito, e oportunidades de ouro surgem em falas chaves como a que, acusado de uma necessidade de controle por Renata, ele pergunta, mais chocado do que deveria: “O que você quer dizer com isso?”. Ainda, em certo momento diz para Renata, quase como em tom de ordem: “Agora você quer viver e permanecer ao meu lado”. Essas falas, em especial a primeira, revelam uma insegurança palpável em um indivíduo aparentemente seguro e louco por controle.

Para isso, Gagliasso revela-se um profissional formidável no processo de compor Lauro e toda sua complexidade, trabalhando tiques precisos e falhas adequadas nos tons de voz amedrontados do personagem, além de olhares escancarados em momentos em que parece mais fragilizado. Mais importante ainda é a intensidade com que o sujeito vai representando o arco dramático do protagonista. Além dele, Regiane Alves acerta em cheio ao conseguir viajar por todas as complexas nuances exigidas pela figura de Renata.

Apesar de todos acertos em meio a alguns erros na construção do terror, Isolados ainda apresenta uma série de lamentáveis equívocos que (espero) se extinguirão com o amadurecimento do diretor. Esses pecados se encontram muito concentrados nas desnecessárias quebras no fluxo narrativo, em especial na primeira metade do filme, que, mais do que uma necessidade do roteiro, evidencia uma insegurança por parte dos realizadores. Os flashbacks são absolutamente dispensáveis, assim como basicamente todas as cenas envolvendo os policiais. Ainda, a montagem que explica a revelação final é sinal inequívoco de intragável amadorismo.

Ainda assim, Isolados é um esforço digno dentro dos gêneros que explora, tanto como matéria de Cinema nacional quanto mundial, já que o longa não faz feio frente a recentes e competentes colegas internacionais dentro do mesmo quadro temático, como o norte americano You’re Next e o britânico A Lonely Place to Die.

sábado, 6 de setembro de 2014


Análise:

Se Eu Ficar (If I Stay / 2014 / EUA) dir. R.J. Cutler

por Lucas Wagner

Não li o romance de Gayle Forman no qual se baseia essa adaptação, mas a natureza da narrativa me faz imaginar que deve funcionar muito melhor na Literatura do que no Cinema. Digo isso pois imagino que o livro descreva pensamentos e desenvolva os conflitos psicológicos envolvendo a personagem Mia Hall (Chloë Grace Moretz) sobre se decide se entregar à morte ou continuar vivendo mesmo diante de uma terrível tragédia. A natureza da arte literária permite isso. Como filme, o que seria o mais adequado, por assim dizer, que o diretor R.J. Cutler fizesse, seria imaginar formas visuais de tratar desses conflitos. Mas o resultado é uma obra inconsistente e ineficaz em qualquer âmbito.

Cutler desperdiça a oportunidade de criar uma narrativa mais complexa onde o espírito de Mia interage com os ambientes de sua história de vida enquanto investiga o que poderia justificar sua decisão de continuar viva ou morrer. Acaba que a história se divide em partes que mostram o espírito de Mia zanzando pelo hospital e outras, em forma de flashbacks, onde acompanhamos o desenrolar do romance da garota com o “roqueiro” Adam (Jamie Blackley). Se existe uma relação entre esses dois âmbitos narrativos é puramente suposta pelo espectador com boa vontade através da fraca narração em off (incompreensivelmente esquecida durante boa parte da projeção), porque em nenhum momento Cutler deixa claro que esses flashbacks tem origem de avaliações ontológicas por parte da protagonista, e então a impressão que fica é a de que acompanhamos duas narrativas não-relacionadas, o que perde completamente o propósito da obra de funcionar como possível estudo de personagem ou mesmo como possuindo um arco dramático consistente para Mia. Quais são os questionamentos existenciais que ela faz, afinal?

As possíveis respostas para essa pergunta também apontam para pontos negativos do filme. Afinal, tudo parece girar em volta do romance da garota com Adam, o que faz com que a família de Mia ganhe bem menos atenção e, consequentemente, os eventos a envolvendo ganham menos impacto, o que quem viu o filme sabe se tratar de um gravíssimo problema narrativo. O roteiro de Shauna Cross dedica pouca atenção para o desenvolvimento de qualquer personagem exceto o casal principal, e se isso se torna problemático para fins dramáticos, também impede maior envolvimento do próprio espectador com o que está assistindo, impossibilitando que cenas como a da reunião de amigos em torno da fogueira sejam devidamente emocionantes ou mesmo sensibilizantes.

Tudo é referente ao romance entre Mia e Adam, e não surpreende nem mesmo que este seja nem relativamente eficiente. Apesar das boas atuações de Moretz e Blackley, os conflitos amorosos dos personagens são dramaticamente muito juvenis para terem qualquer impacto, e acabam assim por comporem uma novelinha enfadonha. Além disso, é inegável que, não raro, os próprios personagens parecem se comportar de forma inconsistente, o que, ao invés de trazer maior complexidade para suas figuras, acaba apenas as tornando incompreensíveis. A guisa de exemplo, percebam a inexplicável segurança de Mia em sua primeira transa, logo depois de observar, insegura, que era virgem. Pior ainda é como Adam muitas vezes seja um babaca egoísta que tenta justificar sua imaturidade com a desculpa de um histórico de abandono afetivo. Para completar, soam vazias as reclamações sobre como seus destinos são contrários, como se já não fosse admirável que ambos os elementos do casal tenham uma relação tão íntima com a música. Aliás, é incompreensível como a obra tenta constantemente ressaltar uma diferença essencial entre rock e música clássica, sendo que, na verdade, são estilos musicais diferentes mas que possuem uma declarada relação.

Mas incompreensão musical é também uma regra básica desta adaptação, já que, mesmo em um filme que fale tanto sobre punk rock e que sempre se refira a bandas como Ramones e figuras como Iggy Pop, os realizadores demonstram uma pavorosa e injustificável seleção musical, usando apenas baladinhas pop melosas para colorir a história ao invés de dar uma injeção de classe com músicas clássicas ou o infinito acervo de belas canções românticas de rock. Aliás, a própria banda supostamente punk rock de Adam passa anos luz de qualquer coisa que poderia ser punk.

Mas se é tão incompetente, porque tanta gente chora assistindo esse filme? A resposta muito provavelmente reside na própria divulgação do longa, que insistia que era uma obra emocionante que exigia o choro. Tanto é que as lágrimas nunca vinham muito sinceramente, mas eram alardeadas aos gritos pelas espectadoras. Diferente, por exemplo, do que ocorreu esse ano na sessão em que assisti ao belo A Culpa é das Estrelas, onde na sala se fazia um pesado e triste silêncio, quebrado apenas por doloridas fungadas. Enquanto em Se Eu Ficar as pessoas parecem chorar por ser “um filme em que se chora”, em obras como A Culpa é das Estrelas se chora por sincero envolvimento com o que se está assistindo.

Aliás, se recorro a essa comparação é simplesmente por ter visto exaustivamente outras pessoas e reportagens fazendo isso. Pois, no fundo, não tem nada a ver uma coisa com a outra. Ser um melodrama adolescente não significa ser necessariamente um filme ruim. Em 2014, o citado A Culpa é das Estrelas e The Spectacular Now provam isso. Já Se Eu Ficar apenas reforça qualquer preconceito que um espectador mais cínico poderia ter com um filme desses.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014


Análise:

Anjos da Lei 2 (22 Jump Street / 2014 / EUA) dir. Christopher Miller & Phil Lord

por Lucas Wagner

Ao mesmo tempo zoando e se apropriando de estereótipos, e servindo como um excelente bromance, Anjos da Lei ainda alcançou a proeza de ser o filme mais hilário lançado em 2012, utilizando de um humor nonsense e sem a menor noção de ridículo para arrancar gargalhadas do público seja a partir do absurdo do que se passa na tela ou da abissal estupidez de seus carismáticos personagens principais. Assim, era mais do que natural não esperar grande coisa de sua continuação, que, ao que tudo indicava, cairia no comum erro de repetir a fórmula que funcionou no original, criando apenas uma obra enfadonha. Realmente, Anjos da Lei 2 faz exatamente isso. O que é mais curioso, no entanto, é que em grande parte por isso filme funciona extraordinariamente bem.

Roteirizado por Michael Bacall, Oren Uziel e Rodney Rothman, e novamente dirigido por Christopher Miller e Phil Lord, o longa trás de volta os policiais Schmit (Jonah Hill) e Jenko (Channing Tatum) mais uma vez em uma missão à paisana para revelar uma rede de distribuição de drogas, só que agora não mais no ensino médio, e sim na faculdade.

A trama é basicamente a mesma do original, o que já revelaria o problema que comentei no primeiro parágrafo. No entanto, como o original fazia com os constantes estereótipos, Anjos da Lei 2 se apropria justamente desse seu aspecto para fins de auto-paródia, de propósito repetindo situações do filme anterior, comentando o ridículo dessa repetição e, por vezes, levando o espectador por caminhos enganosamente já conhecidos. Nesse último aspecto, os realizadores evidenciam inteligência ao subverter as expectativas mais de uma vez em uma mesma sequência, algo que fica claro naquela que envolve uma viagem alucinógena: de cara já esperamos algo exatamente igual à fritante viagem do filme anterior (reação induzida pelo próprio roteiro), mas o que vemos é algo bem mais banal, até que, quando menos esperamos, os realizadores nos presenteiam com algo mais absurdo do que jamais poderíamos esperar.

Como essa sequência bem evidencia, Anjos da Lei 2 volta a trazer as mesmas doses cavalares do humor perigosamente maníaco do anterior, e novamente mergulha na profunda babaquice que é sua essência básica, constantemente fazendo auto-referências, hora inocentes (como o escritório de Ice Cube sobre o qual um personagem comenta a semelhança com um cubo de gelo) e hora de auto-crítica (como os geniais créditos finais), mas sempre muito eficazes. A apropriação dos estereótipos básicos do ambiente adotado novamente é motivo para boas piadas, como o “show de talentos” dos universitários, a aula de psicologia e ainda a cena da chegada da dupla principal em seu quarto. Nesse contexto, Lord e Miller voltam a apresentar a direção amalucada do seu trabalho anterior, com travellings que surgem propositalmente imbecis para lembrar os clichês de filmes policiais, além dos filtros piegasmente “estilosos”, se dando ainda o direito de brincar com as possibilidades cartunescas oferecidas pela proposta da obra, como na sequência de perseguição automobilística. E ainda é admirável que, mesmo sendo um filme de humor de excessos, o longa consiga acertar em piadas mais sutis, como a que trás vários universitários andando no campus durante o amanhecer, carregando seus calçados e vindos de quartos alheios.

Mas Anjos da Lei 2 consegue funcionar bem também no quesito de bromance, e aqui vai além do original ao, mesmo mantendo clara a relação fraternal de Schmit e Jenko, ainda assim flertar com um contexto homoafetivo, conseguindo resultados admiráveis e bem humorados como a cena da “terapia de casal”. A eficácia e tridimensionalidade da dupla vem muito da excelente química entre Jonah Hill e Channing Tatum, atores que se mostram confortáveis tanto um com o outro quanto com seus próprios personagens, especialmente Tatum, que transforma Jenko em uma figura tão docemente estúpida que fica difícil para o espectador ao menos sentir raiva do cara. O “drama” do bromance se revela mais denso aqui do que era no anterior, mas nunca deixa de aparentar sinceridade, se dando o direito ainda de brincar com uma divertida homenagem ao clássico Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen.

A continuação ainda se beneficia de um elenco homogeneamente eficaz, com a maioria conseguindo extrair o máximo que seus personagens podem oferecer. A linda Amber Stevens cria uma Maya doce e apaixonante, enquanto Jillian Bell faz de Mercedes uma figura sempre interessante, ambígua e estranhamente perversa. É uma beleza também que Ice         Cube ganhe mais espaço e possa explorar mais à vontade a brutalidade do estereótipo de policial negro e durão, enquanto a sequência que trás de volta Dave Franco e Rob Riggle soa gratuita, mas engraçada. Infelizmente, o talentoso Peter Stormare fica apagado, assim como Wyatt Russell, que nunca consegue fazer seu Zook uma figura mais interessante.

E, mesmo tendo diversos pontos positivos, e usando seus próprios problemas como virtudes, o filme por vezes erra de verdade, como na mal trabalhada conclusão para a relação entre Schmit e Maya ou Jenko e Zook, que são simplesmente esquecidas quando conveniente para o roteiro. Ainda assim, Anjos da Lei 2 funciona como o anterior, e por vezes até melhor, apresentando o mesmo humor deliciosamente imaturo, incorreto, estúpido e irresistível.


-Meu texto do filme anterior: Anjos da Lei