sábado, 31 de maio de 2014


Análise:

O Que Os Homens Falam (Una Pistola En Cada Mano / 2013 / Espanha) dir. Cesc Gay

por Lucas Wagner

O Que Os Homens Falam é uma comédia sincera feita como um diálogo de homens para homens. Não que não possa ser apreciado por mulheres (muito pelo contrário), mas esse longa de Cesc Gay é uma honesta exposição de inseguranças, anseios e neuroses de típicos exemplares de machos heterossexuais de meia idade pertencentes à classe média, contada a partir de uma série de pequenas histórias que, longe de caírem no melodrama, tampouco abraçam uma posição de “machão” e vira a cara para os problemas emocionais de seus personagens.

As fontes dos tormentos desses homens não poderiam ser mais naturais, e partem de angústias envolvendo a decepção/vergonha de ser mais um tipo ordinário e fracassado, da recusa de ver um relacionamento indo pelo ralo, da culpa por ter “trocado o certo pelo duvidoso”, e mesmo da dificuldade de compartilhar intimidades profundas com amigos também homens. Mais interessante é que os personagens nunca se comportam de forma histérica ou excessivamente emocional, mas sim expondo uma história de educação de “como um homem deve agir”, buscando sempre manter-se numa posição de honra, queixo erguido e firmeza de decisões, mesmo que, intimamente, tudo isso se revele uma farsa.

Se já foi dito que “homem que chora calado, por isso deve ser respeitado”, os personagens de O Que Os Homens Falam seguem à risca essa regra e, por mais que revelem profundos “defeitos de caráter” (trair esposas, assumir posições muito machistas e cínicas, etc), é inegável que reconhecem uma espécie de código de honra e muitas vezes revelem simpatia por um companheiro que enfrenta um problema com o qual podem se identificar. Aliás, esses personagens são todos extremamente complexos e frágeis, e justamente por isso podemos adotar um olhar que vá além de suas “falhas de caráter” e perceber as inseguranças e medos presentes em seu cerne. O que, é claro, é muito devido ao invejável talento do elenco, em especial no que diz respeito a Javier Cámara, Eduardo Noriega, Luís Tosar e, obviamente, Ricardo Darín.

Se Cámara diverte e comove ao mesmo tempo ao interpretar um sujeito que, depois de ter cometido adultério, se arrasta pela ex-esposa enquanto aparentemente acha que não está se envergonhando, Noriega tem talento suficiente para impedir que seu personagem se torne um sujeito detestável ao tentar trair sua esposa (com quem tem um filho de um ano de idade), e isso se dá pela capacidade do ator de despertar a simpatia do espectador ao evidenciar sua insegurança quase infantil, para isso investindo em detalhes notáveis em sua composição, como ao tentar arrancar pedaços de um velho adesivo em uma parede enquanto conversa com uma mulher. Luís Tosar cria um homem admirável e maduro, principalmente na atitude de ouvir um companheiro e ajudá-lo, mesmo que isso o prejudique. Agora, Ricardo Darín mais uma vez se mostra um mestre trabalhando, e cria uma das figuras mais complexas e intrigantes da obra, demonstrando uma doçura e inocência juvenis que em nenhum momento abole seu ar de homem maduro, sério, mas um tanto egocêntrico e idealista, que tenta ver o ato de ser chifrado como “algo muito instrutivo”.

Mas o mais interessante da obra é a visão que Gay apresenta das mulheres. Essas são aqui sinal de sabedoria, maturidade e seriedade. Não que sejam criaturas idéias e impecáveis, mas sua maturidade vem justamente pela quantidade de sofrimento que enfrentaram nas mãos das inseguranças de seus companheiros, demonstrando uma capacidade admirável de transformar essa dor em aprendizado e reorganizar-se em suas próprias vidas. Nunca deixam, porém, de servir de guias para os confusos machos, e é curioso como muitas delas, mesmo claramente deixando entrever frestas de remorsos, são essenciais para que os homens aqui possam enxergar-se melhor e se compreender um pouco mais. Além disso, elas não deixam de se divertir com as muitas imaturidades dos companheiros do sexo oposto, seja vendo a dificuldade de um amigo se abrir para o outro ou ainda ao ver (mesmo que com certa pena) o ex-marido se arrastando depois de cometer tantos erros.

E se o elenco dos homens apresenta notável excelência, o das mulheres não fica nada para trás, e somos presenteados com performances maduras de atrizes que parecem compreender bem o que passam suas personagens (em especial no caso de Maria, maravilhosamente interpretada pela linda Leonor Watling). Vale dizer, ainda, que Cesc Gay não é o único cineasta a apresentar essa visão de mulheres sábias em meio a homens confusos, sendo corroborado nesse perspectiva por nomes de peso como Terrence Malick (Amor Pleno) e Edgar Wright (The World’s End).

Gay consegue mostrar-se um diretor discreto e talentoso, apresentando alterações no posicionamento de câmera (como ao saltar o eixo) para ilustrar mudanças de rumos nos diálogos. E se poderia fazer um drama existencial, o diretor apresenta a (acertada) preferência pela comédia, acertando na maior parte do tempo. Pois se alguns raros momentos são muito pueris (como a história que termina com um personagem derrubando vários pertences), a maior parte da comicidade da obra apresenta segurança e maturidade notáveis, com o diretor demonstrando talento ao sempre começar suas histórias com certa normalidade para depois ir tomando rumos mais malucos e embaraçosos, embora nunca inverossímeis ou irrealistas. Ainda, muito do humor surge da própria compreensão do espectador de variáveis desconhecidas pelos personagens, como quando dois amigos se encontram lado a lado, um sabendo mais do que deveria sobre o outro, mas sem saber o que o outro sabe, fazendo surgir daí um sentimento mútuo de vergonha.

Enfim, obra leve e agradável, O Que Os Homens Falam pode tocar qualquer homem, ou mulheres vítimas de suas inseguranças. E é justamente por fazer com que o espectador ria de situações pelas quais sabe que poderia muito bem passar, que a comédia é um sucesso.

sábado, 24 de maio de 2014


Análise:

X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (X-Men: Days of Future Past / 2014 / EUA) dir. Bryan Singer

por Lucas Wagner

A franquia X-Men sempre surpreendeu não apenas por entregar irrepreensíveis filmes de “super-heróis”, com personagens marcantes, mas principalmente por apresentar uma admirável preocupação temática ao correlacionar o preconceito sofrido pelos mutantes com aquele que as pessoas que são “diferentes”, de alguma forma, dos padrões impostos pela humanidade sofrem. E quando X-Men Primeira Classe veio como uma obra sublime ao desenvolver com perfeição seus personagens, enriquecer o universo da franquia, ser um longa empolgante e ainda propor questões ideológicas/filosóficas extremamente complexas, os padrões foram erguidos até o céu, tornando o fato desse X-Men: Dias de um Futuro Esquecido ser algo tão fascinante um esforço ainda mais louvável, já que o perigo de ofuscar perante o anterior era enorme. E só o fato de “fascinante” parecer uma palavra insuficiente para descrever o brilhantismo do filme já denota a sua grandiosidade.

Apresentando um Bryan Singer talvez pela primeira vez genuinamente maduro e confiante no comando de uma produção, Dias de um Futuro Esquecido nos insere em um universo triste e apocalíptico dominado pelos temíveis Sentinelas (máquinas que se adaptam a qualquer poder mutante); um mundo escuro, cheio de sombras e, em um lance meio cyberpunk, com algumas luzes de néon roxas, adequadamente remetendo à idéia de morte, reforçada logo em seguida pela pilha de cadáveres sendo despejados de um veículo. Aliás, o longa escapa das habituais frescuras dos blockbusters em relação à violência e grafismo, ao mesmo tempo em que não exagera na dose, permitindo um nível adequado de “peso visual” para que a opressão e perigo do que estamos vendo nos atinja com mais força sem, no entanto, precisar aumentar a censura. E se o tom sombrio é onipresente, Singer se revela sábio ao inserir momentos de humor que nunca chamam a atenção para si, portanto não colapsando a atmosfera geral, ao mesmo tempo em que funcionam principalmente por surgirem de forma orgânica e fluída, e mesmo quando o cineasta dedica um tom leve e cômico a uma cena inteira, esta surge não apenas como uma agradável surpresa, mas como uma das melhores cenas do filme (me refiro, é claro, à cena da cozinha, no Pentágono).

O filme não foge ao comum dos bluckbusters apenas no uso parcimonioso e calculado do humor, ou ao retratar a violência com mais peso, e nem mesmo ao mostrar personagens já queridos pelo espectador se entregando ao vício em drogas injetáveis ou bebidas alcoólicas, mas em especial ao ser tipo uma espécie de “milagre” em questão de ritmo quando diz respeito aos arrasa-quarteirões. Em outros textos meus comentei sobre como, nesse tipo de filme, facilmente se sacrifica a sutiliza da obra por uma velocidade maior para a narrativa, tornando-a afobada e até incômoda. Dias de um Futuro Esquecido surpreende por ter a capacidade de, mesmo contando a história com economia de informações, desenvolvendo seus personagens e todas as suas potencialidades, expandindo o universo da franquia, e ainda adotando um ritmo frenético e intenso, nunca passar a impressão de pressa e, o que é mais interessante, a narrativa alcança um tom de sobriedade, maturidade e centro, algo que nem mesmo em Primeira Classe era plenamente conseguido. E aqui é onde é mais notável o nível de controle alcançado por Singer, cujo domínio de sua obra se revela algo singular e extremamente raro.

E se falei de ritmo, o diretor e o montador John Ottman acertam em cheio ao, mesmo dentre todas as variáveis com que tem de se ocupar, conseguirem estabelecer um muito eficaz ritmo de tensão crescente, algo alcançado através da coadunância de sequências no passado e no futuro, algo que vai ficando cada vez mais freqüente ao longo da projeção, alcançando um nível de urgência mais e mais intenso, chegando ao ápice quando o diretor e seu montador conseguem, sem nunca deixar o espectador confuso, viajar entre duas complexas e ambiciosas sequências de ação em dois períodos de tempo diferentes (mas interdependentes).

Falando em sequências de ação, Singer aqui mais uma vez demonstra sua maturidade ao habilmente estabelecer a geografia do ambiente e ainda fazer um delicado uso de planos levemente inclinados (sugerindo instabilidade), conseguindo explorar com amplitude toda a sensacional coreografia das lutas, algo para o qual ainda lança mão de um impecável e calculado slow-motion para aumentar o impacto visual e explorar melhor os poderes dos mutantes. Esse último aspecto, aliás, é um dos maiores acertos do filme, assim como era em qualquer outro da franquia (em especial em Primeira Classe), e aqui as possibilidades narrativas e visuais desses poderes são levadas aos limites, tanto quando usados isoladamente ou em conjunto, e para isso a primeira sequência de ação não é sublime apenas por já estabelecer com perfeição os rumos da narrativa, mas ainda por mostrar a intercalação de poderes de forma tão experiente e dinâmica.

Quanto ao ponto que citei sobre os poderes serem explorados até os limites, em Dias de um Futuro Esquecido podemos ver uma trama complexa e intrigante constantemente construída a partir do uso e impacto desses poderes. Logo, os poderes de Xavier, por exemplo, são explorados de modo orgânico até mesmo para desenvolver sua relação com outros personagens e consigo mesmo. As possibilidades físicas de Logan são assunto vital na narrativa, e enquanto a biologia de Raven/Mística é o centro completo da obra, os poderes de Magneto são diferenciados na maturidade e sabedoria do uso que Ian Mckellen (o “velho”) faz, enquanto Michael Fassbender (o “jovem”) os usa de forma inteligente e implacável, embora sem os elementos essenciais do seu “eu velho”, o que, é claro, influencia a narrativa.

Dias de um Futuro Esquecido pode ser impecável em todos seus aspectos, e ainda divertir nas brincadeiras históricas que faz (como com JFK), mas o que faz do filme uma obra-prima é, como de praxe na franquia, sua temática. E aqui os realizadores fogem da habitual discussão entre as visões de Magneto e Xavier sobre a humanidade e seus preconceitos, e centram-se em algo ainda mais poderoso: a responsabilidade dos mutantes (a “raça evoluída”) diante dos arrogantes, ignorantes e mesquinhos Homo Sapiens. Pois, se antes os argumentos e previsões pessimistas de Magneto tendiam a fazer muito mais sentido, agora a Esperança nos discursos de Xavier finalmente parecer ser algo visível. Se aqueles seres, os mutantes, possuem poderes e capacidade de compreensão que vão além do medo e ignorância dos humanos, não seriam eles também responsáveis por adquirir uma visão mais madura que vai além da raiva de ser constantemente reprimido e temido? O ódio a nada leva, e a supremacia buscada por Magneto pode sim alcançar graus de tiranismo, algo que o próprio não parece perceber, mas Singer e o roteirista Simon Kinberg demonstram de forma genial quando correlacionam cenas de um discurso de Magneto sobre o futuro e o papel dos mutantes nesse, com cenas da luta massacrante dos mutantes contra os Sentinelas na distopia futura. Há uma similaridade assustadora e crítica entre os dois momentos.

Mas se as confusões emocionais de Raven/Mística são ilustração ideal da ambiguidade dos sentimentos dos mutantes, é mesmo em Xavier e seu arco dramático que o filme consegue abarcar essa complexa discussão em toda sua amplitude. Xavier sempre foi um personagem admirável justamente pela insistência em ser “bom”, mesmo quando as evidências da humanidade insistiam que essa não merecia compaixão, mas nojo. Passando de um estágio mais ilusório e idealista (em Primeira Classe) para a sabedoria (em X-Men), o Professor aqui empacou no pessimismo, entregando os pontos de qualquer esperança que pudesse dedicar ao mundo, e isso muito porque, por ser bom e justo, viu tudo o que mais acalentava ser destruído. É mais do que natural que se entregue à depressão e ao vício, mas a recuperação de sua visão repleta de compaixão e amor é o que é, a meu ver, o mote mais forte do filme, pois ele sabe que aquela visão vai lhe trazer mais dores do que exatamente alegrias, mas o conforto do pessimismo, da entrega e do ódio é uma fuga muito maior do que se permitir acreditar que exista algum indício de bondade e sabedoria no mundo, e lutar pelo que há de “bom” nesse. E assim, quando olho para esse personagem não consigo deixar de pensar em várias pessoas (inclusive que eu conheço) que tem tudo para desenvolver essas potencialidades, mas preferem se esconder nas sombras.

E é por ser um choque tão grande que o diálogo entre Xavier “jovem” e “velho” é, singularmente, o momento mais poderoso da obra. As palavras do Xavier envelhecido não são apenas bonitas; são repletas de uma sabedoria profunda que só pode ser alcançada depois de muita dor, sofrimento e reflexões. A calma com que ele discursa sobre “abraçar a dor” e usá-la para amadurecer foi algo que, confesso, me levou às lágrimas. E isso foi tanto por motivos exclusivos do filme quando por processos pessoais. Logo, é verdade, uma das razões para o longa ter me tocado tanto foi por levar-me à auto-reflexão acerca de feridas pessoais ainda muito expostas. Mas, sendo um dos alcances mais louváveis da Arte a sua capacidade de nos levar a olhar para nós mesmos, não temo em citar esse aspecto como fundamental nessa crítica.

Toda essa profundidade não seria alcançada sem a sublime composição de James McAvoy como Xavier “jovem”, expressando toda a dor e bondade desse personagem tão ferido, permitindo que seu arco dramático nunca soe “súbito” demais. Para falar a verdade, todo o elenco merece louvores e glórias, pois, mesmo em um longa tão narrativamente complexo, esses atores e atrizes conseguem dar profunda dimensão a seus personagens. Hugh Jackman consegue alcançar uma notável sensibilidade em Logan; Michael Fassbender surge intenso, trágico e com um ódio mal disfarçado em sua calma voz; Peter Dinklage transforma o vilão Trask em uma figura curiosa por sua ambiguidade de sentimentos em relação aos mutantes (e sua escalação é genial, por se tratar de um anão se impondo à frente da humanidade contra sua “ameaça mutante”); Jennifer Lawrence mais uma vez explora a complexidade de Raven/Mística. E se ainda muitos merecem créditos, abro mão de comentá-los para ressaltar o brilhantismo do trabalho de Evan Peters como “Mercúrio”. Já meio que exalto esse rapaz por seu excepcional trabalho na série American Horror Story, mas aqui é curioso como ele praticamente rouba o filme inteiro com sua presença irônica e leve, e mesmo sua fala agitada é um perfeito elemento de cuidado na composição do personagem.

X-Men: Dias de um Futuro Esquecido é uma obra dramaticamente intensa, mitologicamente fascinante, beneficiada com personagens complexos e uma discussão filosófica de profundo valor, e ainda conseguiu me atingir nas minhas vísceras pessoais. Ou seja, é um puta de um filme que merece cada grama de idolatria que lhe presto.

sábado, 17 de maio de 2014


Análise:

Godzilla (Godzilla / 2014 / EUA) dir. Gareth Edwards

por Lucas Wagner

Quando escrevi sobre Círculo de Fogo e RoboCop comentei que esses filmes, mesmo admiráveis em diversos aspectos, sofriam do problema cada vez mais comum em blockbusters, que insistiam em contar suas histórias com afobação na tentativa de manter seus espectadores interessados, sacrificando assim a elegância e o desenvolvimento dos personagens. Em Godzilla, o diretor Gareth Edwards apresenta o admirável esforço de ir contra essa tendência, fazendo de seu trabalho uma obra que conta sua história com calma e que tenta humanizar mais seus personagens. No entanto, é incrível como, mesmo tendo a idéia certa e ótimas intenções, o diretor nunca consiga tornar seu filme realmente interessante, e o que vemos é um longa perfeitamente enquadrado na palavra “enfado”.

Godzilla começa estabelecendo bem as bases de sua trama, e a visão do enorme fóssil e de todo o mistério envolvido em torno da proteção de um segredo conspiratório fazem com que consigamos nos interessar pelo o que está por vir. Além disso, o tempo que o diretor leva para desenvolver os conflitos familiares entre o protagonista e seu pai é admirável justamente por ser um esforço concreto de dar maior estofo psicológico àquelas pessoas.

O problema aqui é que o filme não faz jus à suas ótimas bases, e no processo descobrimos o quanto a história da conspiração é forçada e desinteressante, assim como os personagens, tão unidimensionais que destroem qualquer possibilidade de um elenco tão admirável quanto o visto aqui fazer alguma coisa. Assim, somos obrigados a ver talentos como Elizabeth Olsen (linda demais), Julliete Binoche e Sally Hawkins presas em personagens descartáveis, enquanto o protagonista interpretado pelo geralmente competente Aaron Taylor-Johnson é tão desinteressante quanto à trama em si. E mesmo que Bryan Cranston e Ken Watanabe consigam conferir intensidade e peso aos seus personagens, esse esforço hercúleo cai por terra quando seus conflitos internos se revelam vazios.

Quanto à trama, a impressão que fica é que o roteiro de Max Borenstein passava a impressão de uma re-imaginação do Godzilla clássico, com uma aparência de inteligência por conter monstros que apresentam riscos ao forçarem uma queda de energia, o que poderia gerar uma metáfora interessante em uma época tão dependente de tecnologias. Mas essa discussão nunca decola, e em meio a uma estrutura repetitiva e formulaica, Gareth Edwards faz o que pode para construir a tensão, acertando na expectativa que cria em torno do monstro-título que, mesmo quando faz sua primeira aparição, é mostrado com parcimônia pelo diretor, deixando o espectador ainda mais tenso na expectativa do que está por vir. O problema é que toda a ação que decorre do monstro em si não justifica a tensão criada, e a brochada do espectador é inevitável, criando a sensação de que, no fim das contas, nem estávamos assistindo um filme evidentemente sobre o Godzilla.

Ao menos o longa não decepciona no quesito visual, e as criaturas digitais dificilmente traem sua natureza virtual, ao passo em que as sequências de ação funcionam relativamente bem. E embora abuse da trilha sonora de Alexandre Desplat (decepcionante frente outros trabalhos desse mesmo compositor), Edwards comprova seu talento na composição de alguns planos de inegável beleza estética, como quando vários paraquedistas saltam rumo à cidade destruída. Nada aqui, no entanto, se compara a algum plano bonito como o de Monstros (seu filme anterior) em que trás dois alienígenas interagindo fisicamente enquanto os protagonistas se beijam.

No fim das contas, o enorme problema de Godzilla consiste no fato de ser um filme insuportavelmente arrastado, tão arrastado que consegue fazer com que percamos qualquer interesse no que estamos assistindo. Afinal, mesmo a trama sendo ridícula, poderia ter se tornado ao menos divertida se contada com mais agilidade e não fosse tão mesquinha na hora de explorar os potenciais de seu monstro-título. Já o problema dos personagens vazios seria mais difícil de contornar.

No fim, Godzilla é uma obra decepcionante, principalmente frente à excelente campanha de marketing desenvolvida para o longa. E ao lembrar que, ano passado, Gareth Edwards se referiu a esse projeto como o seu “filme de arte” ou “filme de autor”, penso que o diretor tem a pobre visão de que o que classifica um trabalho mais “artístico” é ser chato. Se for assim mesmo, as esperanças para o diretor do ótimo Monstros diminuem drasticamente.   



Análise:

Praia do Futuro (Praia do Futuro / 2014 / Brasil, Alemanha) dir. Karim Aïnouz

por Lucas Wagner

Criar uma forte interação com outra pessoa é algo extremamente complexo, já que passamos muita de nossas inseguranças, frustrações, anseios, sonhos para outro alguém com tantas confusões quanto nós mesmos. Visto que não raro não conseguimos nem descrever nossas angústias com clareza suficiente, exigir que outra pessoa seja capaz de compreender-nos realmente é muito frustrante. Às vezes há muito para ser dito, mas nem sempre esse “muito” cabe em palavras. Essa sensação de confusão intra e inter-pessoal, de sentimentos fortes guiando diversos indivíduos e moldando suas confusas vidas, deixando tudo em suspensão e a possibilidade de conforto parecendo uma fantasia juvenil permeia o tempo inteiro Praia do Futuro, novo filme de Karim Aïnouz.

Escrito por Aïnouz e Felipe Bragança, o longa conta a história do bombeiro Donato (Wagner Moura), que falha na tentativa de salvar um homem que se afoga na praia do futuro, em Fortaleza. Donato acaba criando, depois disso, um envolvimento amoroso com o piloto de motocross alemão Konrad (Clemens Schick), amigo do falecido, e eventualmente se muda para a Alemanha com este, deixando sua família em Fortaleza.

Acertando como Azul é a Cor Mais Quente e Hoje Eu Quero Voltar Sozinho ao não tratar a homossexualidade dos personagens como algo estranho e digno de discussões, mas sim como fruto de sentimentos mais que naturais, Praia do Futuro prefere começar focando em certo estranhamento que surge entre Konrad e Donato depois de sua primeira transa. No dia seguinte a uma noite de sexo intenso, os dois parecem não trocar muitas palavras, e há até um certo desconforto quando estão próximos, ao mesmo tempo em que parecem buscar a companhia um do outro, indo em lugares onde existe a possibilidade de um encontro.

Depois de todo esse silêncio, Aïnouz demonstra sua inteligência no belíssimo plano em que os dois estão perto do mar em período de maré alta, sob o som forte de ondas quebrando, e aí, em meio a todo esse barulho, Donato finalmente pergunta: “você vai ir embora amanhã?”. O início de uma paixão sempre trás o medo do outro sumir, um medo que se torna maior pelo anseio de que fazer uma pergunta que demonstre que você se importa com a presença dessa pessoa possa ser, de algum modo, inapropriado.

É notável que, posteriormente, Aïnouz invista em uma cena um tanto similar, mas passada em diferentes condições geográficas e psicológicas. Dessa vez na Alemanha, vemos Konrad e Donato diminutos em um plano aberto que, agora sem o barulho das ondas ou a agitação do mar, se passa em uma área aberta de um parque vazio, cercado por árvores mortas de um inverno que teima em continuar. No silêncio angustiante da cena parece que muito já foi dito entre o casal, mas esse muito na verdade se revela pouco, pois a maioria das angústias e sentimentos de inadequação gritados a plenos pulmões nunca foi externalizado. Donato quer ser compreendido por Konrad e quer que esse lhe dê um rumo, algo injusto ainda mais quando um rumo é apresentado e Donato, reconhecendo isso mas não conseguindo calar seus próprios anseios, não se contenta e tenta ferir os sentimentos do parceiro. Tal cena se torna ainda mais arrepiante quando uma tempestade de neve começa a cair sobre o casal, num belo simbolismo.

Karim Aïnouz, por sinal, continua sendo um colosso na hora de usar o ambiente e os estímulos sensoriais provindos desse como forma de dizer muito de forma econômica, poética e elegante, como eu comentei ao escrever sobre o seu O Abismo Prateado. Em Fortaleza, o mar fica em constante evidência, como uma lembrança de sua importância para Donato e também da tragédia do afogamento que redefiniu os rumos das vidas dos personagens. A segunda cena que se passa em uma boate é também fascinante já que, optando pelo abafamento do som cacofônico do ambiente e usando uma belíssima trilha de cordas, o diretor alcança a proeza de conferir uma atmosfera ao mesmo tempo melancólica e de liberdade, como se ao se entregarem à dança pura e irracional, Konrad e Donato finalmente alcançassem uma espécie de clareza na confusão de sua paixão, e não é a toa que a cor vermelha da boate (cor da paixão e do perigo) divida espaço com flashes de uma luz branca, clara.

Ao mesmo tempo em que alguns simbolismos visuais são mais óbvios (embora nem por isso menos eficazes), como Donato dentro de um aquário gigante em meio a um edifício cinzento, outras vezes os simbolismos são de uma sutileza apaixonante, como a árvore morta cujos galhos se erguem sobre o casal principal como uma enorme mão. Além disso, é interessante o minimalismo com que Aïnouz desenvolve os conflitos centrais de Donato, como o desconforto que passa a sentir na Alemanha, algo que o espectador percebe através de detalhes como o momento em que Donato sai de perto de Konrad e sua amiga e os observa através de uma porta de vidro (demonstrando seus sentimentos de inadequação e alienação), ou ainda através da fotografia do mar em preto e branco que fica pregada em cima da cama do casal, como que representando o passado como uma memória antiga e distante.

Aliás, a direção de arte acerta ao preencher os ambientes de Donato com detalhes que lembram o litoral, como estrelas-do-mar, conchas ou a citada fotografia, demonstrando o apego do protagonista ao passado em meio à nova vida na Alemanha, algo que se torna evidente também no seu trabalho no aquário ou ao estar sempre nadando em uma piscina pública, além de, é claro, os momentos intimistas do personagem ao fechar os olhos e dar um pequeno sorriso ao sentir o sol no rosto, num detalhe impecável da performance de Wagner Moura, que aqui investe numa atuação sutil e extremamente complexa cujo ápice é alcançado no momento em que a frieza da falta de expressão facial quando escuta notícias dolorosas é traída pela dor dos olhos vermelhos e molhados.

Praia do Futuro é, acima de tudo, um filme triste como a vida, onde os sentimentos que tanto nos angustiam em momento algum fazem sentido por completo, e a ambiguidade e força disso fica bem evidente na linda cena em que uma briga física tem, simultaneamente, sinais de um carinho intenso e irreprimível. Tanto Donato como Konrad ou Ayrton (irmão do protagonista) tem suas vidas constantemente moldadas um pelo outro, e a intensidade do que parecem sentir muitas vezes não podem ser expressas de forma satisfatória pela fala, o que torna compreensível o silêncio e dificuldade de expressão que fica evidente em Konrad durante a maior parte do tempo. Algumas poucas falas, no entanto, surgem como construções inacabadas de algo muito mais profundo, e a percepção de Ayrton ao dizer, fascinado, em certo momento, que “então isso aqui é o meio do mar?”, é uma prova de um mundo de idéias e dores, algo que vale também para a fala de Donato ao discutir os prejuízos do salitre infiltrando em edifícios: “não dá para construir nada na praia do futuro”. Os próprios nomes dos capítulos são irresistíveis em sua profundidade poética: “O Abraço do Afogado”, “Um Herói Partido ao Meio” e “Um Fantasma Que Só Fala Alemão”.

É interessante que os momentos mais intimistas e bonitos do filme venham no silêncio do toque, nos mistérios do contato físico e da percepção sensorial, uma espécie de comunicação mais pura em sua falta de palavras. Nesse sentido, as citadas cenas da boate e da briga colam perfeitamente com outras como a dança do casal protagonista no apartamento da Alemanha ou mesmo o costume de Donato de, quando está transando com o namorado, passar a mão no rosto do parceiro, buscando senti-lo e explorá-lo, algo que se torna hábito de Konrad também.

Assim, ao finalizar o filme sob o som da maravilhosa canção Heroes, de David Bowie, percebemos a amplitude da sabedoria de Karim Aïnouz. Bowie canta sobre amantes que, pelo menos em um mísero trechinho de sua existência fatalmente solitária, conseguem encontrar conforto um no outro, combatendo inimigos que insistem em separá-los e sendo assim heróis, por apenas um dia. Já Aïnouz mostra seus personagens desaparecendo sob uma densa névoa, numa representação de um destino incerto; mas naquele momento, naquele dia, eles estão bem...estão amparados um pelo outro.

-Outros textos que escrevi de filmes dirigidos por Karim Aïnouz:
 


 

sábado, 3 de maio de 2014



Análise:

O Homem Duplicado (Enemy / 2014 / Canadá, Espanha) dir. Denis Villeneuve

por Lucas Wagner

O Homem Duplicado é um dos livros psicologicamente mais complexos de José Saramago. Versando sobre a temática da perda e procura de identidade em um personagem existencialmente amórfico, o grande escritor adentrava numa trama estranha e complicada, mas que mantinha o mesmo e irônico bom humor habitual, encontrando ainda espaço para seus típicos devaneios. Se, no entanto, o tom do livro é relativamente leve, essa adaptação dirigida por Denis Villeneuve e roteirizada por Javier Gullón opta por uma atmosfera opressiva e sombria, conseguindo manter-se essencialmente fiel ao romance, ao mesmo tempo em que tem a ousadia de explorar possibilidades criativas próprias e complexas.

A trama conta a história de Adam (Jake Gyllenhaal), um professor de História que, numa quebra de sua monótona rotina, resolve assistir um filme. Para sua surpresa, um ator figurante na película é sósia seu, e a partir de então, o pacato professor vai tentar encontrar o tal ator e descobrir mais sobre essa estranha situação.

Aproveitando a velocidade das novas tecnologias para evitar que a trama se torne arrastada como no romance (o que era um inegável problema), Villeneuve e Gullón fogem das fitas cassetes e complicadas pesquisas feitas pelo protagonista e usam DvDs e o Google, enxugando a trama e permitindo assim que a narrativa se mova de forma mais rápida e eficiente. Como já dito, todo o bom humor e a leveza do livro de Saramago aqui é trocada por uma atmosfera densa, desde o primeiro plano, quando vemos diversos prédios parcialmente cobertos por uma névoa. O tom sépia é o básico na paleta de cores do diretor de fotografia Nicolas Bolduc, que, juntamente com o constante uso de sombras, consegue uma perspectiva expressionista à obra, explorando formas de causar um estado de constante desconforto no espectador, ao mesmo tempo em que revela muito sobre a natureza distorcida de seu protagonista.

Villeneuve mantém um olhar atento para as possibilidades de simbolismos visuais, e não raro filma edifícios parecidos em formas e tamanhos, em particular no caso de duas torres pretas que lembram a estrutura de DNA. Em certo momento, o diretor ainda filma fios elétricos que se entrecruzam, e as aulas de Adam sobre a repetição de situações na História não é gratuitamente filmada duas vezes, mas ressalta a monotonia de sua rotina e, é claro, elementos essenciais ao significado do filme. Acima de qualquer simbolismo, no entanto, está a Aranha, motivo de estimulante dor de cabeça para o espectador.

Em diversas mitologias, em especial de origem africana, a aranha é vista como criadora do Mundo, tecedora de realidades, enquanto em algumas culturas é responsável por tecer realidades ilusórias com aparência de real. Com essas características, a aranha é responsável pela construção do destino do Homem, e sua teia é vista como símbolo para o Cosmos, o universo ordenado e acessível pela Razão. Quando, no fim do terceiro ato, Villeneuve dá um close em um vidro rachado de um carro, e percebemos como a estrutura do estrago se assemelha a uma teia, e isso numa cena que parece ser o melhor exemplo de Caos, podemos perceber a inteligência e confiança do diretor na condução de sua obra, quando parece viajar por mundos mitológicos (reais e/ou imaginários) aparentemente caóticos para encontrar o Cosmos.

O Homem Duplicado tem no Caos seu principal elemento, e se isso já não tinha sido suficientemente clarificado na frase que abre o filme (“O Caos é ordem ainda por decifrar”), o diretor repete a informação num plano em que Adam tem às costas um quadro negro onde várias palavras “Caos” convergem para uma “Ordem” no centro. Pois o universo do filme não faz o mínimo sentido, e não só em sua superfície, quando dois homens idênticos se encontram, mas em diversos elementos calculadamente posicionados pelo diretor e roteirista para implantar dúvidas e questionamentos na cabeça do espectador, inserindo elementos caóticos em detalhes sutis. Adam tem uma foto sua rasgada pela metade, excluindo assim a pessoa com quem divide a imagem; por que essa foto é a mesma que vemos de Anthony (Gyllenhaal também) e sua mulher em sua casa, em um momento posterior? Se Adam e Anthony são perfeitamente idênticos, por que um gosta tanto de bluebarries e o outro não? Qual é a da relação esquisita que ambos parecem ter com suas mães, quem buscam evitar?

O cotidiano vem repleto de diversos elementos caóticos que constantemente ignoramos, e a vida real vem sempre carregada e guiada pelo absurdo, e não é a toa que o filme lembre tanto a perspectiva filosófica do Absurdismo, que dita que a natureza contraditória entre o Universo e a “mente” humana causa o absurdo que é a vida em si. No entanto, vivemos à mercê das coincidências e constantemente nossa vida encontra sentido a partir do acaso. O Homem Duplicado leva essa questão ao âmbito do mitológico e quando vemos a Aranha aparecendo em sonhos, alucinações, ou mesmo no mundo real, vemos uma brecha da realidade onde o deus está tecendo sua teia e construindo contingências, criando ordem, Cosmos, sendo que antes desse estágio o que existe é o Caos, o incompreensível (lembrem-se: "Caos é ordem ainda por decifrar"). O Caos em si é um estágio para ser alcançado o Cosmos. O que talvez tenha acontecido com Adam e os outros personagens é que eles tiveram um vislumbre da engenharia da construção do Universo, e não sabem bem como lidar com isso. Logo, o filme rapidamente encara de forma literal uma perspectiva fantasiosa incrivelmente complexa e intrigante, que faz o ato de assisti-lo um exercício fascinante de busca de significados e links temáticos.

Voltando ao mundo dos meros mortais (e com a cabeça ainda girando um pouco devido à alucinação dos parágrafos anteriores), ainda vale ressaltar a competência da performance de Jake Gyllenhaal, cuja melhor atuação foi também sob comando de Villeneuve, no excelente Os Suspeitos. Aqui, o ator consegue compor Anthony e Adam com características distintas que os tornam criaturas complexas e individuais, e isso fica bem claro na própria postura altiva e confiante do primeiro, e nos ombros caídos e o andar trôpego do segundo. O trabalho de voz do ator também é notável, e se Anthony fala de forma grossa e imponente, sempre escondendo qualquer sinal de dúvida ou confusão, Adam já tropeça nas palavras e gagueja, numa representação de sua insegurança.

Apesar do uso constante da trilha sonora, Villeneuve acerta no controle que mantém sobre todos os elementos do filme, e consegue olhares atentos e intimistas que muito revelam sobre os personagens, como quando, depois de afirmar para a esposa que “está tudo bem”, Anthony entra no banheiro e, apoiado na pia, sussurra: “Fuck”. Além disso, o design de produção acerta na construção de ambientes reveladores sobre as personalidades dos moradores, como o apartamento quase sem móveis de Adam, a limpeza e organização que tem uma certa falsidade na casa de Anthony, ou até mesmo a bagunça artística da casa da mãe de Adam.

Esse texto não buscou responder perguntas acerca do significado do filme, até porque isso tiraria boa parte da graça de assistí-lo. Mas mostrou um possível caminho para sua compreensão. No entanto, há muito o que se pensar e que não foi abordado aqui: seria a “reunião pornográfica” do sonho no início e relembrada no terceiro ato mais um esbarrão com o mundo do mitológico? Qual é o sentido exato da bizarra cena final (que consegue a proeza de ser ainda mais esquisita do que era no livro)? Qual é o significado exato da enigmática chave? Buscar respostas a essas perguntas é o que faz de O Homem Duplicado uma obra tão intrigante, que merece várias visitas para cavar um pouquinho mais de seus tesouros.

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