terça-feira, 30 de dezembro de 2014

MELHORES FILMES DE 2014
(SEM ORDEM DE PREFERÊNCIA)
por Lucas Wagner

Acaba o ano e chega aquela época em que os ditos cinéfilos adoram compilar suas listas de “melhores do ano”. Vai ter gente que gosta mais de lista do que cinéfilos... e não escapo à regra. Tanto é que estou aqui fazendo.

Mas sem muita regra, ok? Alguns filmes que assisti e escrevi sobre em 2014 mas que na verdade são de outros anos não figuram aqui simplesmente porque na minha cidade eles chegaram com mais de 365 dias de atraso. Dito isso, resisto à tentação de colocar meus queridos A Grande Beleza e O Sonho de Wadja. Mas fora isso, aqui aparecerão filmes que passaram em seus países de origem em 2013 mas que chegaram por aqui (Brasil) em 2014, e outros que aparecerão aqui apenas em 2015 mas que eu já vi e já escrevi sobre. Como eu disse: sem regras chatas.

Como qualquer lista, essa é inerentemente injusta, e na seleção deixei filmes que adorei, como O Expresso do Amanhã, Vidas ao Vento, No Limite do Amanhã, Nebraska, Predestination, entre outros. Uma pena.

MAS (!) o mais importante é o seguinte: NÃO HÁ ORDEM DE PREFERÊNCIA NESSA LISTA! Por quê? O chato de fazer uma lista dessas é a tal da hierarquia. Decidi deixá-la de lado, e principalmente porque a hierarquia é demasiadamente fútil e injusta. Por diversos motivos. O que faz de, digamos, O Passado melhor do que The Babadook? Qual o critério de comparação? Ora, são dois filmes geniais em seus próprios termos, no que se propõem e no que ousam frente aos outros filmes. Sendo assim, acredito que a preferência viria muito mais pelo lado pessoal, este que é tão mutável. Quando estou apaixonado, Her mexe muito mais comigo do que O Lobo Atrás da Porta, assim como o contrário pode ser verdadeiro quando estou mais “excitado” com um tipo de história sombria e misteriosa.

Uma última coisa que deve ser comentada: os filmes aqui selecionados o foram por diversos critérios, sendo um deles o pessoal. Levo em conta fatores técnicos, além daqueles narrativos que enriquecem uma história, mas também como o filme me balançou foi um critério de inclusão. Minha preferência entre filmes que considero excelentes varia com insuspeita constância.

Aproveito e escrevo um micro texto sobre cada um dos filmes. Para quem quer informações mais detalhadas sobre minha opnião, deixo o link para minha crítica, caso tenha escrito.
Vamos à lista:

(LEMBRANDO: SEM ORDEM DE PREFERÊNCIA)



- Ela (Her) dir. Spike Jonze

O que define a realidade ou validade de um sentimento? A covardia da questão é patente. Independente do objeto de amor, a troca de experiências, de carinho, de afeto, de compreensão é uma das peças essenciais na constante construção de nós mesmos. Her compreende isso, se tornando uma linda poesia ao esmiuçar reflexões tão singulares sobre a natureza dos sentimentos, seu caráter cíclico e de eterna reconstrução.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/02/analise-ela-her-2013-eua-dir.html



- Boyhood – Da Infância à Juventude (Boyhood) dir. Richard Linklater

A ousadia de Richard Linklater ao pelo menos ter a ideia de um filme como esse é digna de aplausos. Quem dirá de evidentemente concretizá-la. Mais do que um filme sobre crescimento, Boyhood se torna um tratado de imenso valor sobre as marcas do Tempo e das construções interpessoais na jornada de cada um.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/11/analise-boyhood-da-infancia-ajuventude.html



- X-Men – Dias de Um Futuro Esquecido (X-Men Days of Future Past) dir. Bryan Singer

X-Men sempre foi uma das mais maduras séries de super-heróis, e esse Dias de um Futuro Esquecido é um exemplo perfeito de como fazer um filme de ação narrativa e visualmente complexo de forma intensa, com personagens singulares e, cada um deles, fascinante, além de propor uma reflexão que ainda tem a audácia de galgar degraus diante dos já excelentes diálogos reflexivos dos filmes anteriores, transformando a construção filosófica dessa série em um prazer constante.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/05/analise-x-men-dias-de-umfuturo.html



- O Passado (Le Passé) dir. Asghar Farhadi

Mais uma vez o cineasta Asghar Farhadi demonstra um profundo conhecimento humano, e cria um filme denso, triste, repleto de personagens tentando buscar sentido onde na verdade não existe nenhum. Personagens contraditórios, complexos, trágicos, ambíguos como o inesquecível plano final dessa obra-prima. Em suma: humanos.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/03/analise-o-passado-le-passe-2013-franca.html



- O Homem Duplicado (Enemy) dir. Denis Villeneuve

Um passeio na construção de novas realidades através de duas contraditórias? Um flerte entre o Cosmos e o Caos? A jornada psicosexual de um homem confuso e solitário? Ou a expressão de medos intensos em um debate consigo mesmo? São várias as interpretações possíveis, e os motivos para assistir esse sublime filme.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/05/analise-o-homem-duplicado-enemy-2014.html


- Temporário 12 (Short Term 12) dir. Destin Daniel Cretton

Este pouco conhecido drama independente trás a prova de que Brie Larson é uma atriz mais fascinante do que geralmente mostra. Mais importante, é uma obra delicada que usa diversos meios, inclusive visuais, para nos colocar ao lado de seus frágeis, porém resilientes, personagens. Inesquecível.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/02/analise-shortterm-12-short-term-12-2013.html



- A Imagem Que Falta (L’Image Manquante) dir. Rithy Panh

Este documentário se transforma em um sincero, e emocionado, relato de um sobrevivente aos anos em que o Camboja foi governado pelo Khmer Vermelho. Um discurso doído, triste, que reconhece a Arte como uma forma de elaboração da dor. Forma insatisfatória, mas ainda assim, perfeitamente válida.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/03/analise-imagem-que-falta-limage.html



- The Babadook (The Babadook) dir. Jennifer Kent

Aterrorizante a ponto de provocar lágrimas, The Babadook mistura clássicos com idiossincrasias, além de um competentíssimo uso de vários recursos cinematográficos e um background literalmente lovecraftiano para contar uma história de horror que te desafia a manter os olhos abertos, ao mesmo tempo em que compele a investigar os meandros mais profundos que sua narrativa oferece.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/11/analise-babadook-babadook-2014.html



- O Abutre (Nightcrawler) dir. Dan Gilroy

O horror constante diante da revelação da verdadeira faceta do personagem interpretado com brilhantismo por Jake Gyllenhaal é um reflexo de um universo aversivo e magnético que este filme de Dan Gilroy lança seu olhar crítico

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/12/analise-o-abutre-nightcrawler-2014-eua.html



-Praia do Futuro (Praia do Futuro) dir. Karim Ainouz

Um filme que reconhece que sentimentos muitas vezes não são traduzidos satisfatoriamente em palavras, e assim aposta na cuidadosa construção de símbolos e quadros estratégicos para ilustrar interações humanas por demais ambivalentes, assim como a complexidade dos sentimentos por trás delas.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/05/analise-praia-do-futuro-praia-do-futuro_17.html



- Inside Llwelyn Davis – Balada de um Homem Comum (Inside Llwelyn Davis) dir. Joel & Ethan Coen

Existências à deriva com uma paixão agridoce por farewells caracteriza os personagens desse lindo filme dos Irmãos Coen, numa narrativa dolorosamente triste e bela, pois há uma poesia quase misógina na imagem do artista que passa fome mas não desiste de sua Arte. Um filme melancólico, mas uma melancolia bonita, poética, ao mesmo tempo em que há espaço suficiente para o inusitado humor dos Irmãos.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/02/analise-inside-llewyn-davis-balada-de.html



- O Lobo de Wall Street (The Wolf Of Wall Street) dir. Martin Scorsese

Qualudes, cocaína, orgias, engravatados se comportando como adolescentes estúpidos, um monte em forma de glúteos, e rios, mares de dinheiro... aos 73 anos Martin Scorsese criou o que é um dos seus mais ousados e surtados filmes, uma comédia de humor negro que se utiliza do seu gênero narrativo para adotar uma visão crítica que deposita no espectador a responsabilidade de ser maduro o suficiente para enxergá-la. Um ato de segurança que talvez só um cineasta do calibre de Scorsese poderia ter.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/01/analise-o-lobo-de-wall-street-wolf-of.html



- Interestelar (Interstellar) dir. Christopher Nolan

Muitos discordarão de mim aqui. Tudo bem. Mas realmente enxergo que Nolan foi bem sucedido na Odisséia na qual se empreitou, usando um louvável embasamento científico e uma maturidade intelectual para discorrer sobre o papel do Homem no Cosmos.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/11/analise-interestelar-interstellar-2014.html



- 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave) dir. Steve McQueen

O cineasta Steve McQueen prima ao construir narrativas intensas, onde o ambiente exterior dos personagens emula sua agonia interna. Mais do que construir discursos pomposos e provocar lágrimas no espectador, McQueen cria imagens cruas e cruéis, que chocam, angustiam, e verdadeiramente nos fazem refletir sobre a escravidão, além de ousar assumir uma postura crítica mais complexa e cínica do que o habitual nesse tipo de filme para investigar a constituição desse horror.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/02/analise-12-anos-de-escravidao-12-years.html



 - Ida (Ida) dir. Pawel Pawlikowski

A capacidade do cineasta Pawel Pawlikowski de construir quadros cuidadosos em sua composição, de usar a iluminação e a própria razão de aspecto da imagem para construir sua narrativa, destacam Ida como um filme corajoso, capaz de dizer muito sobre seus personagens através das imagens que os ilustram, e não das falas que dizem. Um esforço sinceramente cinematográfico.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/12/analise-ida-ida-2014-polonia-dinamarca.html



- Até o Fim (All is Lost) dir. J.C Chandor

Até o Fim usa a nossa ignorância sobre seu protagonista e a cuidadosa observação de seus comportamentos cotidianos para construir uma história de sobrevivência que, na aparente simplicidade, alcança âmbitos profundos na “alma” daquele sujeito que tanto desconhecemos, se tornando uma narrativa de luta do Homem versus Natureza que não deixa a desejar nem frente à Hemingway. Mais uma prova da força do minimalismo na arte de contar histórias.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/04/analise-ate-o-fim-all-is-lost-2013-eua.html



- O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel) dir. Wes Anderson

Com O Grande Hotel Budapeste, Wes Anderson pôde se entregar ao mais profundo nonsense, usando e abusando de seus estilismos visuais, mas sem se esquecer da melancolia habitual de seus projetos, e acaba criando uma obra sinceramente doce, nostálgica e hilária, divertida ao mesmo tempo em que permite que o cineasta explore suas habituais preocupações temáticas.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/07/analise-o-grande-hotelbudapeste-grand.html



- O Lobo Atrás da Porta (O Lobo Atrás da Porta) dir. Fernando Coimbra

Fernando Coimbra construiu um suspense de intensidade ímpar, brincando com as expectativas do espectador ao ponto de dar diversas voltas no parafuso, indo a âmbitos que, com o domínio que alcança em sua direção, sabe muito bem que surpreenderá/chocará o espectador, que se torna sua marionete nessa fascinante hora e meia em que estamos sob seu domínio.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/12/analise-o-lobo-atras-da-porta-o-lobo.html



- Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive) dir. Jim Jarmush

O cultuado Jarmush se arrasta noite adentro, uma noite que diz mais sobre o silêncio da Humanidade, o silêncio de sua genialidade, de seus grandes feitos, em prol do barulho ensurdecedor dos impulsos primários, relegando aos imortais vampiros o papel de quintessência do pó.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/08/analise-amantes-eternos-only-lovers.html



- Oslo – 31 de Agosto (Oslo, 31, August) dir. Joachim Trier

O sol nasce no horizonte, mas a ele a depressão dá as costas, voltando à segurança angustiante do encarceramento entorpecido, onde se esconde uma insuspeita desesperança.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/07/analise-oslo-31-de-agosto-oslo-31.html



- Instinto Materno (Pozitia Copilului) dir. Calin Peter Netzer

Um suspense angustiante que provoca o espectador nos vestígios deixados pelas entrelinhas dos embates emocionais entre seus personagens, denotando relações perversas e complexas, mas acima de tudo, destruidoras.

Crítica completa: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2014/03/analise-instinto-materno-pozitia.html



Sob a Pele (Under The Skin)

Tenho uma queda vertiginosa por histórias contadas mais visual do que verbalmente, e se a seleção de filmes como Praia do Futuro, Ida e Até o Fim já evidenciam isso, Sob a Pele não poderia deixar de marcar presença, já que aposta 100% na criação de imagens evocativas que buscam emular sentimentos no espectador, que a partir daí, construirá suas próprias interpretações. E ainda hoje sou assombrado pela imagem daquela criatura sombria e triste queimando em meio à neve...



- Locke (Locke) dir. Steven Knight

Há algo demasiado inspirador nessa narrativa visualmente simples sobre um homem que decide, de uma vez por todas, atar as pontas de sua vida, assumindo responsabilidades e conseqüências. O desempenho de Tom Hardy na criação desse personagem é, sem a menos sombra de dúvida, uma das maiores forças deste ano.



- Blue Ruin (Blue Ruin) dir. Jeremy Saulnier

Um filme de vingança que busca se concentrar mais nas rachaduras psicológicas de seus personagens do que na violência de suas ações, e em como o egoísmo da vingança pode atingir não apenas seus alvos, mas retroagir naqueles que amamos.



- Frozen – Uma Aventura Congelante (Frozen) dir. Chris Buck e Jennifer Michelle Lee

Frozen é um filme essencial na gradual desconstrução na visão da Mulher enquanto sexo frágil, além de ser uma animação com personagens inesquecíveis, adoráveis e tridimensionais, e mesmo suas canções são criativas. A desconstrução dos clichês dos contos de fada também me encantam. “O conheci essa noite! O amo e vamos nos casar!”, “Você o conheceu essa noite e já vai se casar? Você é louca?”. Genial.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014


Análise:

O Abutre (Nightcrawler / 2014 / EUA) dir. Dan Gilroy

por Lucas Wagner

Com a polícia distraída, Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) entra em uma cena de crime e reorganiza fotos de família para fiquem mais próximas dos buracos de bala na geladeira, conseguindo assim um ângulo mais dramático para a filmagem que está ali para fazer. Foi aí que ele começou a ganhar o respeito da emissora para a qual vende seus vídeos. Não é a toa que o cara falou que aprendia rápido: no ramo do jornalismo moderno, a veracidade dos fatos não é o ponto central, mas sim o quão chamativo, visceral, cinematográfico até, são as imagens que serão transmitidas para os telespectadores.

Escrito e dirigido por Dan Gilroy, este Nightcrawler narra como o aparentemente perdedor Louis Bloom passa de um zé ninguém a um elemento indispensável dentro do ramo de filmagens freelancer, passando noites acordado enquanto dirige pelas sombrias ruas de Los Angeles, buscando, qual um abutre (como explicita o título brasileiro), as mais gráficas imagens em que ele pode pôr as mãos, e vendê-las a suculentos preços para uma faminta emissora de Tv.

Cínico durante toda a projeção, Gilroy diverte-se ao mostrar a torre da emissora com um revelador 66 vermelho brilhante (ter mais um “6” seria entregar o jogo demais), explicitando bem o que acha daquele universo. Não que o pinte de forma unidimensionalmente má, já que podemos vislumbrar evidências de algum comportamento moral na figura do produtor Frank, que claramente se incomoda com algumas das coisas que vê, ou mesmo Rick, o assistente de Louis. Mas mesmo essas pessoas se veem convencidas da “necessidade” de deixar certos preceitos de lado, se adaptando ao meio por reconhecerem a trágica lógica que o guia.  

E se o que vende é entretenimento, e não fatos, esse é ainda um entretenimento sádico, sangrento, que chama atenção do telespectador por atiçar o interesse mórbido que o ser humano parece ter no sofrimento alheio. É o que Louis tão bem compreende, e aos poucos começa, como exemplifiquei no primeiro parágrafo, a manipular as cenas de crime, sendo capaz mesmo de, com a frieza que o caracteriza, chegar antes da polícia, para ter maior liberdade de movimento, de modo a conseguir não apenas ângulos melhores, mas que possuam algum teor dramático mais intenso, criando histórias que se dão ao luxo de ter até mesmo uma escala gradual de suspense. Gilroy, aliás, escancara a desimportância da história real em prol do drama rentável quando Louis, desavergonhamente, pede a uma entrevistada que repita o que disse, só que dessa vez sem uso de palavrão.

Mas o que faz de Louis o homem perfeito para esse trabalho é a sua natureza psicopata, que vai se descortinando aos olhos cada vez mais arregalados do espectador, perplexo ao ver como o looser do início, com seu antiquado penteado no cabelo oleoso (talvez uma patética tentativa de vender uma imagem aprazível, o que na verdade apenas demonstra sua falta de habilidade social) e andar esquisito, passa a ser o “monstro” no final, quando entra numa espiral de frio maquiavelismo, que é, aliás, o ponto chave de seu sucesso profissional: a sua inabilidade emocional e, logo, a frieza com que controla seus passos e o ambiente ao seu redor, o tornam extremamente competente quando se trata de manter a cabeça fria na hora de organizar as tomadas de forma a alcançar os melhores, mais chocantes resultados.

Tal psicopatia tem seus primeiros sinais logo na primeira cena, quando Louis consegue roubar um relógio depois de enganar seu dono com demasiada tranquilidade; mas o seu meio não permitia que ela aflorasse com todo o potencial. É no jornalismo que ele encontra solo perfeito para “crescer”, apesar de ficar claro a todo momento que o que move Louis não é o interesse por aquele ou por qualquer trabalho específico, mas sim se tornar mais poderoso, influente, manipulador, o que entra em conflito, mais uma vez, com a sua falha comunicação interpessoal, já que toma esse empoderamento como passe livre para tudo o que denomina como poder, incluindo o sexo com pessoas específicas. Mas apesar de suas habilidades sociais serem desprezíveis, o homem é capaz de apertar pontos de pressão eficazes em terceiros, justamente porque estuda a tudo e a todos, pavimentando seu caminho com uma preparação calculista extremamente coordenada. E é divertido, embora assustador, o modo como Gilroy filma suas etapas dentro da emissora, sendo emblemático, talvez até engraçado, o momento em que o sujeito senta-se, sozinho, à mesa dos âncoras, parecendo sentir uma emoção profunda, enquanto na verdade as cócegas de excitação que sente vem do poder que gradualmente ganha.

E seguindo o mesmo grau de perfeição de seus recentes trabalhos em Marcados Para Morrer, Os Suspeitos e O Homem Duplicado, Jake Gyllenhaal demonstra uma entrega furiosa ao papel ao mesmo tempo em que se mostra atento aos mais diversos detalhes de sua performance, como no gradual conforto e habilidade com que se move com uma câmera. Fazendo questão de evidenciar a instabilidade do sujeito logo nos primeiros momentos de projeção, com sua cara meio pateta e voz esganiçada, riso frouxo e andar esquisito, o ator faz com que desprezemos Louis de cara, tomando-o como um homenzinho miserável e solitário, sendo justamente por isso que, quando se mostra perigoso, inteligente, calculista, tomemos um choque que cresce de acordo com a gravidade das atitudes das quais que se mostra capaz no decorrer do filme, que vão assumindo proporções catastróficas, absurdas, mas que surpreendentemente são aceitas pelas pessoas ao seu redor, desde que se pague adequadamente, é claro. O nível de frieza de Louis chega a ponto de que ele despreze, mesmo que simbolicamente, um “colega” de profissão de quem recentemente se vingou, ao simplesmente dar o vídeo que fez de seu infortúnio, abrindo mão do pagamento ao incorporar o desprezo – num grau máximo de calculismo – às suas necessidades negociais mais urgentes.

É pelo fato dessa figura tão vilanesca ser demasiadamente eficaz e até importante no meio jornalístico em que entre, que Nightcrawler alcança sua mais feroz crítica e cinismo, nunca precisando nem mesmo de adotar um tom cartunesco ou excessivamente chamativo (como David Cronenberg fez em Mapa Para as Estrelas) para alcançar seus objetivos narrativos. Para isso, é preciso apenas observarmos elementos como a diretora interpretada por Rene Russo, que sente-se preocupada mas também fascinada por Louis, e é extremamente sintomático que uma cena sugira uma tensão sexual entre ambos depois que ela assiste à uma filmagem particularmente imoral e visceral, mesmo quando, cenas antes, ela tenha negado com tanta veemência qualquer possibilidade de interação além da profissional com o rapaz.

Assim sendo, Nightcrawler é uma obra soberba que funciona em diversos níveis, todos se complementando de forma a construir uma estrutura complexa e inteligente: é uma feroz crítica à mídia, um fascinante estudo de personagem e um suspense aterrador. É um longa extremamente violento e magnético, atraente como as reportagens sádicas que os telespectadores consomem. Logo, a euforia com que o filme nos deixa ao acabar pode ser um sinal perfeito de que caímos na armadilha criada por seu diretor.

Touché, Gilroy, touché.


Análise:

Ida (Ida / 2014 / Polônia, Dinamarca) dir. Pawel Pawlikowski

por Lucas Wagner

Neve, lama, estradas apertadas, sombras, esqueletos de árvores sem folhas suportando ventos gelados... essas são as notas que compõe a sinfonia de Ida, forte candidato ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para 2015, e que representa, em sua hora e vinte de duração, uma experiência cuja força e profundidade encontra-se na forma como as imagens exploram o universo interior de suas personagens principais, o que acaba por tornar o longa uma viagem mais íntima do que se fosse recheado de falas expositivas.

Escrito por Rebecca Lenkiewcz e Pawel Pawlikowski, e dirigido por este último, o filme conta sobre a noviça Anna (Agata Trzebuchowska) que, antes de fazer seus votos para se tornar freira depois de ter vivido todos os seus anos num convento para orfãs, precisa visitar a tia Wanda (Agata Kulezsa), sua única parente viva, que envia uma carta em resposta a tantos anos de tentativas de contato realizadas pelas madres do convento onde Anna cresceu. Descobrindo ter origem judia e se chamar Ida, na verdade, Anna inicia uma viagem com a tia para ver onde sua verdadeira família foi enterrada.

Contando com dois diretores de fotografia (Ryszard Lenczewski e Lukasz Zal), Ida possui um primoroso tratamento visual que é por onde o diretor Pawlikowski vai extrair significados para contar sua história. Optando pelo preto e branco como forma de evidenciar ainda mais a falta de vida daquele universo, os realizadores são inteligentes/criativos ao adotar uma razão de aspecto reduzida (1.33:1) que força o olhar do espectador a experimentar um pouco da estreiteza de visão de mundo das personagens, confinadas em experiências de vida que transformaram suas existências em prisão (e não é a toa que o longa apresente várias imagens de grades, ou azulejos que lembrem grades), e esse “inverno da alma” em que vivem pode ser também ilustrado pelos elementos do cenário citados no primeiro parágrafo, se tornando triste e sintomático que possamos prever precisamente a atitude de uma personagem no terceiro ato quando abre uma única janela em seu apartamento, dando de cara com um dos esqueletos desfolhados de árvore, uma representação de tudo o que o mundo exterior tem a oferecer a ela.

Pawlikowski também faz uso de uma cuidadosa construção de quadros para explorar a interação daquelas pessoas com seus meios. Anna/Ida, por exemplo, constantemente aparece focada em planos abertos e descentralizados, onde a protagonista se torna um pequeno elemento do cenário, numa ilustração da vida daquela moça que sempre se viu subordinada às exigências do meio, e assim, o fato de tais quadros não raro virem desequilibrados pela presença de uma outra pessoa, se torna revelador da falta de domínio que a personagem pode exercer sobre si e o que pode realmente querer. Interessante ainda que sua tia, Wanda, comece sendo filmada em planos mais fechados e gradualmente passe a ser vista da mesma forma que Anna/Ida: apenas um elemento de seu cenário, apesar da aparência de mulher independente, forte. É como se ambas as mulheres estivessem flutuando sem apoio em seus ambientes, sendo relegadas ao vazio da falta de identidade ou sentido.

Pois é justamente na relação entre esses dois pólos opostos (a castidade e a atitude sexualmente mais moderna) representados pelas duas mulheres que o longa se concentra. Mas, mais do que assumir posturas absolutas, Pawlikowski parece preferir um tratamento mais complexo e adulto ao projeto, algo que pode ser percebido pelos primeiros momentos de interação entre tia e sobrinha: o mundo da primeira onde a segunda vai entrando é coberto de música (algo refrescantemente alienígena para o mundo silencioso de Anna/Ida) mas é recheado de garrafas de bebida e inúmeros cigarros, além de ser sintomático que, na primeira cena juntas, percebamos a presença de um homem na casa de Wanda, embora não possamos enxergar seu rosto, já que não importa, sendo ele apenas um representante de mais um anestésico para essa mulher (o sexo).

Anna/Ida pode se sentir completamente sem chão ao descobrir novos elementos de sua identidade, e percebe a ruína que na verdade é sua tia, mas há algo de excitante nesse universo novo trazido pela parente, tão distinto da sacralidade do convento. O modo como Pawlikowski desenvolve a protagonista é sutil na representação da calada tentação, e podemos perceber esse seu movimento “psicológico” em planos representativos como aquele que trás Anna/Ida por trás das grades de uma escada em espiral que desce para as sombras, de onde brota um sedutor som de saxofone. É como se a personagem estivesse sendo tentada pelo inferno, ou pelo menos é como ela percebe essa tentação, extremamente sedutora em especial pelo seu caráter de proibido. A evolução de pensamento da protagonista, aliás, é visualmente assegurada em dois momentos específicos em que observa uma banda tocando: se na primeira vez o ponto de luz é a banda enquanto a protagonista se encontra engolfada em sombras e escondida por uma pilastra, na segunda ela observa a banda (ainda o ponto de luz do quadro) através de um arco que se assemelha à entrada/saída de uma toca. A sua toca, que, diferente das sombras em que insistia se envolver, representa uma abertura.

E assim, por mais que nunca veja a tia como um exemplo de perfeição, ter o gostinho daquele outro mundo representado por ela é o suficiente para que Anna/Ida queira assumir (literalmente) o papel dela, o que o figurino se encarrega de ilustrar de forma clara quando veste as roupas da parente, bebe sua bebida, fuma seu cigarro e usa sua maquiagem, sendo que Pawlikowski tem o toque de gênio de usar um sutil plano inclinado em um espelho nesse momento: o reflexo que Anna/Ida enxerga é um que se encontra desequilibrado do modo como ela equilibrou seu mundo. E é ao chocar-se de frente com o vazio da vida da tia que a protagonista percebe não encontrar um sentido profundo para sua própria existência, uma chave para a felicidade que acabaria com as dúvidas ou pelo sentimento tão bem expresso pela palavra em francês spleen (que pode ser traduzida – insatisfatoriamente - como tédio existencial), algo que é revelado de forma - mais uma vez - sutil no diálogo que a moça trava com o rapaz da banda, quando todo o vácuo de significados daquela existência aparentemente mais intensa se descortina à sua frente.

E Wanda não é uma personagem menos complexa. Optando pelo secularismo ao invés da religiosidade, a personagem se revela cada vez mais desgastada, seja pelo passado ou por perceber que, mesmo tendo atingido uma respeitabilidade profissional (é uma juíza), o caráter efêmero de suas experiências não perdeu seu peso de vazio. Muito pelo contrário, e a personagem afirma sinais de se sentir como se desmanchada pelo vento. É sintomático, aliás, que ela diga que a sobrinha insiste em esconder sua beleza com as vestes de freira. É verdade: Anna/Ida está o tempo todo escondendo, não apenas sua beleza, mas sua própria existência. Mas esconder-se é também parte do repertório comportamental de Wanda, que usa o álcool, tabaco e sexo, além de sua própria imagem (sexual/profissional) como máscara ou obstáculos para si mesma, sendo que Pawlikowski mais uma vez demonstra sua inteligência ao, uma cena após a fala de Wanda sobre a sobrinha se esconder, mostrar a mulher sendo deixada por um amante fortuito e, num gesto absolutamente significativo, virar-se de costas para a câmera.

Assim como outro triste filme de 2014, o brasileiro Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa, Ida é uma obra adulta o suficiente para perceber o spleen que caracteriza a vida, qualquer vida, e que às vezes isso pode ser absolutamente insuportável, vazio como o propósito da viagem de Anna/Ida e Wanda: ver ossos em decomposição de pessoas a muito mortas.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014


Análise:

A Lancheira (Dabba / 2014 / Índia, França, Alemanha) dir. Ritesh Batra

por Lucas Wagner

Andando pelas movimentadas ruas de Mumbai, Saajan Fernandes (Irrfan Khan) esbarra em uma banca onde um homem pinta a imagem da mesma praça todos os dias, mas alterando-a de leve de acordo com o que mais chamou sua atenção naquele ambiente naquele dia. Em um desses dias, o que capturou seu olhar foi o próprio Fernandes. Quem diria...

E por toda a trama de A Lancheira o sentimento que se mantém é um que corresponde com “Quem diria”, assim como dizemos sempre, ao olhar para nossa própria história. E quem diria que o quase infalível sistema de entrega de almoços de Mumbai um dia iria cometer um erro estúpido e entregar a comida errada para o cara errado, iniciando assim uma doce história de amor. Pois ao tentar chamar a atenção de seu distraído marido, a jovem Ila (Nimrat Kaur) capricha na cozinha, mas quem acaba recebendo o almoço é Fernandes, um homem viúvo prestes a se aposentar depois de trabalhar 35 anos na mesma empresa, e se encanta com a comida de Ila. Por educação, a solitária mulher envia uma carta de agradecimento com o próximo almoço, e recebe uma resposta de Fernandes. Assim começa, por acaso, a bonita interação dos dois.

Parte do que faz A Lancheira uma experiência emocionalmente tão eficiente refere-se à empatia que sentimos com os dois personagens, já que tem suas personalidades apresentadas e desenvolvidas de um modo sutil e nada melodramático para que possamos compreender como a interação dos dois vai enriquecer suas vidas.

Ila desde o início é apresentada como uma mulher carente de atenção do marido, e seus esforços na cozinha (ajudada pela divertida vizinha do andar de cima) representam uma tentativa de conseguir algum reconhecimento de sua própria existência. Com olhar sempre distante e sonhador, a bela atriz Nimrat Kaur permite que possamos enxergar Ila em sua tridimensionalidade, tornando seu comportamento de ser firme com a filha, por exemplo, um reflexo de um esforço excessivo para cumprir sua função como mãe, mas que se desmancha por completo na crescente tristeza de descobrir estar se tornando um fantasma.

Simultaneamente, o sempre competente Irrfan Khan (que também produz o filme) compõe Fernandes como um indivíduo apático, com um olhar duro que esconde uma característica similar com o de Ila: é distante. Só que aqui essa característica não evidencia uma tristeza “óbvia” como a de Ila, que está vendo a vida escorregar de si sem poder fazer muita coisa, mas é sim uma evidência de um homem que parou de procurar respostas, já que a vida já escorregou por entre seus dedos. A característica pétrea das rugas de seu rosto serve como elemento a mais desse quadro, e o apego que Fernandes parece ter com aspectos pragmáticos de seu cotidiano representa bem a psicologia de um sujeito desligado.

A troca de cartas injeta vida nos dois sujeitos. São solitários que acabam encontrando, por uma estranha coincidência, um conforto em outro ser humano quando parecia que isso já não era tão possível. Aliás, se não fossem tão solitários, é bem possível que não se apegassem tanto a essa chance do acaso. O que, no fundo, não importa, pois o que realmente merece atenção é a capacidade do filme de permitir que os momentos lúdicos promovidos nessa troca de sentimentos alcancem um aspecto notavelmente dinâmico, tranquilo, confortável. Elementos do cotidiano que geralmente passam despercebidos a olhos dormentes começam a se destacar, e desde detalhes fortuitos do dia-a-dia até sentimentos profundos e um tanto calados, começam a fluir entre os dois, e é bacana como o diretor e roteirista Ritesh Batra explora esse frescor de forma visual, iniciando seu filme com um plano aberto com prédios escondidos por névoas, passando por chuvas e tempo frio, até chegar a dias ensolarados e mais quentes quanto mais Ila e Fernandes interagem.

Em seu primeiro trabalho enquanto cineasta, Batra consegue um equilíbrio delicado em seu projeto, permitindo que este flua com naturalidade. Alguns dos elementos de sua direção, no entanto, revelam algum amadorismo, e seus raccords visuais e sonoros, se evidenciam uma acertada tentativa de conferir maior fluidez ao projeto, acabam não funcionando por virem de forma pouco natural, forçada. Assim também é um tanto quanto incompreensível que o diretor faça uso recorrente da melancólica trilha sonora de Max Ritcher mesmo nos momentos mais claramente doces/alegres do projeto.

Em contrapartida, o cineasta é competente no uso da trilha incidental (ou seja, não original do filme) para colorir sentimentos de determinados momentos, quando sons diegéticos (com origem no ambiente) perdem essa característica e se tornam parte do filme, ultrapassando ambientes para representar o sentimento dos personagens naquele momento, e é interessante que este som seja quebrado de forma brusca diante da chegada de uma pessoa interrompendo os pensamentos de algum personagem. É sutil também, e convenhamos, bonitinho, o momento em que Ila “força” uma coincidência musical em seu ambiente para que possa colocar esse elemento na carta para Fernandes, por saber que deixaria o homem deliciado. E falando em Fernandes, o diretor tem no design de produção da casa deste uma ferramenta que eficientemente reforça a ideia de sua solidão.

E se enquanto roteirista ele acabe por pecar quando força uma subtrama desnecessária no trabalho de Fernandes para criar alguma tensão a mais no projeto, ou mesmo acabe errando em alguns óbvios simbolismos, como a da pequena vizinha de Fernandes, que no início fechava a janela ao vê-lo olhar para sua família, e depois o recebe com um aceno de mão alegre, ainda o cineasta/roteirista consegue primar pela maturidade no desenrolar da projeção, transformando A Lancheira não apenas em um “feel good movie” mas sim em um complexo estudo de personagens e situações, não descartando variáveis complicadoras no contexto, e como as histórias de vida dos personagens, sua bagagem, não poderia deixar de interferir no relacionamento dos dois. Ainda, tal maturidade se encontra no sutil humor do projeto, como a coincidência envolvendo couve flores ou o colega de Fernandes que fica curioso pelo modo estranho que este se apega tanto ao almoço (me refiro ao colega que senta-se ao seu lado durante o serviço sem dizer palavra nenhuma).

Durante a projeção escutamos mais de uma vez a frase “Às vezes o trem errado pode nos levar à estação certa”. E, sim, A Lancheira é um doce filme que explora com maturidade e maestria um tema tão fascinante como o Acaso, e como este pode construir as mais belas e complexas situações, mas também como a vida é composta de encontros e desencontros. Se os encontros aparecem por acaso, os desencontros muitas vezes acabam por ser culpa de nós mesmos, e assim, o filme ganha em uma conclusão aberta, com pontas que podem ou não se unir.

Pode ser que Ila e Fernandes agiram certo sem querer, e foi só o tempo que errou. Mas é por acaso que essa fala de Renato Russo caiba tão bem aqui.