domingo, 27 de abril de 2014


Análise:

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Hoje Eu Quero Voltar Sozinho / 2014 / Brasil) dir. Daniel Ribeiro

por Lucas Wagner

No início desse Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro, a personagem Giovana (Tess Amorin) lamenta a falta de um “grande drama” em sua vida. Porém, a ausência desses grandes dramas é justamente o que enriquece a obra. Não que não existam aqui sentimentos avalassadores, paixões, mágoas, dores e alegrias, mas o filme compreende esses elementos dentro de situações prosaicas do cotidiano, algo que o recente Entre Nós, ao insistir em um drama bem mais fora do comum, não conseguiu. Essa abordagem e esse tipo de olhar ainda permitem que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho tenha uma visão madura e doce sobre a homossexualidade de seu protagonista.   

O roteiro do próprio Daniel Ribeiro conta a história de Leonardo (Guilherme Lobo), um adolescente cego que sempre pode contar com a ajudar de Giovana, sua melhor amiga. No entanto, a amizade que passa a desenvolver com Gabriel (Fabio Audi) começa a despertar em Leonardo sentimentos românticos que até então não tinham um destinatário específico.

Todos os personagens da obra se comportam como pessoas absolutamente normais que enfrentam problemas muito comuns, o que já desperta a simpatia do espectador. O modo como lidam com seus sentimentos, tantas vezes de forma destrambelhada ou causando desconforto a outrem, são perfeitamente naturais e refletem a clara complexidade do comportamento humano, que não raro age de forma desconexa e perturbadora para si mesmo. Os dramas vividos pelos adolescentes aqui se referem às mágoas de se cair numa friendzone, ciúmes, insegurança de expressar seus próprios sentimentos, chacotas de colegas, etc, tudo tratado de uma forma que chega a ser “bonitinha”, e quase não dá para conter um sorriso ao ver um personagem fingir que estava bêbado para evitar uma conversa que deseja e teme. Além disso, o comportamento dos pais de Leonardo, fonte de tanta amargura para o garoto, não deixa de fazer sentido, embora fique evidente a diferença de comportamento do pai e da mãe, mas sempre ficando claro que o que os dois querem é o bem do filho, mesmo que de forma distinta do que este mesmo vê como seu bem.

Pois Leonardo já está cansado de ver sua cegueira como uma justificativa para mantê-lo afastado do que seria a vida normal de um garoto de sua idade. Com a rebeldia comum de um adolescente, ele passa a questionar as ações dos pais, ou mesmo de seus amigos que lhe querem bem. Essa rebeldia não se expressa apenas em ações mais explosivas, mas muitas vezes em gestos sutis como ao insistir em balançar-se na cadeira mesmo quando os pais lhe chamaram a atenção para isso várias vezes em menos de um minuto, ou ainda quando insiste em abrir a fechadura de seu portão, impedindo Giovana de realizar a tarefa para ele. No entanto, o que é o mais bacana é que Leonardo não é nenhum ignorante quanto à sua condição, apesar de às vezes tentar passar a impressão de que é. Assim, em certos momentos é comovente vê-lo demonstrando insegurança, como ao perguntar, com a voz baixa, se alguém como ele pode fazer intercâmbio. E também não é por ser rebelde que ele vai se comportar como um bruto, mas é quase sempre muito amável.

Ser cego não anula o fato de Leonardo ser um adolescente, e assim ele enfrenta várias inseguranças típicas de sua idade, muito, por exemplo, em relação à sexualidade. Ele tenta mascarar seus anseios quanto a isso, além de seus sentimentos quanto a nunca ter beijado na boca, mas, em momentos mais intimistas, percebemos como essas questões lhe permeiam os pensamentos, como no momento em que, no banho, pratica um beijo. O aparecimento de Gabriel e a amizade que criam desenvolve mais esse desejo de estar com alguém, de viver uma paixão. E esses sentimentos surgem de forma bastante gradual, sendo esse um grande ponto para o roteiro.

Ponto maior ainda é o modo como lida com a homossexualidade. Quando escrevi sobre Azul é a Cor Mais Quente comentei sobre como o filme era sobre a experiência de amar e ser amado, que o sexo do nosso objeto de desejo não era o mais importante ali. No entanto, o longa citado focava muito em ser um estudo psicológico de Adéle, uma moça heterossexual quase adulta que então se descobre homossexual. É mais intrincado do que o que ocorre com Leonardo, um garoto que não teve experiência com a sexualidade e, como nasceu cego, a aparência do Outro é o que menos importa. Assim, em nenhum momento surge algum grande dilema quanto ao fato de Gabriel ser homem. Leonardo está apaixonado por quem ele é, pelos sentimentos que surgiram nos momentos prosaicos que passaram juntos, pelos toques delicados em sua mão para guiá-la a um entendimento que seus olhos não lhe permitem, ou toques ainda em seu rosto ou corpo, demonstrando um carinho que é reconfortante mas também aterrorizante para o protagonista. As percepções dos outros quanto ao que está surgindo entre os dois também nunca é ignorante, e enquanto a avó de Leonardo dá um sorrizinho ao perceber algo no ar, a mãe dele também não tenta deixar o filho mais desconfortável ainda quando os pega quase de mão dadas. Os próprios colegas de sala que insistem em bullinar Leonardo pela sua cegueira e necessidade de ajuda não são ignorantes nesse ponto, já que a zoeira está concentrada em falar que alguém é namorado (a) do protagonista, e não se é um garoto ou garota, como a bela e divertida cena final deixa perfeitamente claro.

Na direção, Daniel Ribeiro demonstra equilíbrio ao nunca pesar a mão no melodramático, mas também não evitando momentos mais intimistas. Nesse ponto, a belíssima trilha sonora incidental é usada com parcimônia para ressaltar a delicadeza de certos momentos, mas nunca para criá-los. Com poucos momentos visualmente marcantes, o diretor consegue extrair certa beleza romântica de alguns elementos, como na dança entre Gabriel e Leonardo, momento este em que a luz do sol de fim de tarde entra pela janela e os ilumina. Usando uma profundidade de campo quase sempre reduzida para simular um pouco da dificuldade de Leonardo para perceber o mundo, Ribeiro ainda revela-se um diretor atento a detalhes específicos da atuação de seu elenco que muito revelam sobre os sentimentos em jogo por ali.

Para isso, então, seu elenco faz um ótimo trabalho, e Guilherme Lobo interpreta Leonardo e toda sua postura altiva mas também insegura com delicadeza o suficiente (embora o ator por vezes recite suas falas de forma muito mecânica). Fabio Audi faz de Gabriel um jovem complexo e gentil, cujos sentimentos são para ele mesmo uma fonte de confusão, como fica claro na comovente cena do chuveiro. Tess Amorin interpreta Giovana como uma garota adorável que usa a raiva como forma de esconder todas as inseguranças que carrega. Todo o restante do elenco faz com muito sucesso que o filme nunca caia no maniqueísmo, e até mesmo personagens que facilmente cairiam no desgosto do espectador, como a “piriguete” Karina ou os bullinadores de Leonardo, tem momentos que despertam nossa compaixão.

Eficaz também no bom humor, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é um filme adorável e bastante honesto, apostando na delicadeza dos seus personagens e seus sentimentos para conquistar o espectador, acertando no processo.

sexta-feira, 11 de abril de 2014


Análise:

Até o Fim (All is Lost / 2013 / EUA) dir. JC Chandor

por Lucas Wagner

O mar exerce um efeito fascinante sobre o ser humano ao demonstrar simultaneamente uma beleza de tirar o fôlego e uma selvageria que ignora qualquer ato de bondade de uma vida, já que o mar não segue as regras dos Homens, mas da Natureza, tão bela e furiosa como sempre foi. Não é a toa que o mar tenha influenciado significantemente tantos poetas, pintores, romancistas e cineastas. Ernest Hemingway, Jack London e Joseph Conrad já criaram narrativas profundas que usavam o mar como metáfora para a Existência, e o cineasta Chris Eyre usou-o de forma discreta para filmar a recuperação de um homem depois de uma tragédia no belo Hide Away

Em Até o Fim, novo filme escrito e dirigido por JC Chandor, a trama de um homem velho tentando sobreviver à fúria do oceano em que navega só é simples em teoria, já que carrega em si uma profundidade emocional que o aproxima de obras como Gravidade ou O Velho e o Mar (sim, o livro), quando usa o meio externo para falar sobre o meio interno. Grande parte dessa força emocional fica a cargo da maravilhosa atuação de Robert Redford, num dos melhores desempenhos de uma carreira já tão fascinante.

Pois, apesar de profundo, Até o Fim não conta com arroubos emocionais que forçam o espectador a chorar. Pelo contrário, já que durante boa parte da narrativa, sem praticamente nenhuma fala, o roteiro de Chandor parece dedicar-se a um cuidadoso estudo comportamental do protagonista sem nome ou identidade. Se sentimos que o conhecemos profundamente é a partir da atenção cuidadosa do diretor e do ator aos detalhes das ações realizadas pelo homem.

Ao ser surpreendido pelo container à deriva no início da projeção, o homem não entra em desespero nem começa a xingar, nem mesmo faz cara feia. Apenas encontra maneiras (comuns ou improvisadas) para consertar o estrago, e a calma com que Chandor filma os dois dias em que o protagonista passa investindo nessa atividade é essencial para que compreendamos bastante sobre a personalidade resiliente e serena dele. É curioso, também, como ele é uma figura absolutamente respeitável, digna e um exemplo de pessoa, e se isso é um viés pessoal meu, vocês me perdoem. Mas ele sempre parece lutar pacificamente, nunca desistindo e nem reclamando, o que é uma virtude que vem com anos de trabalho duro e muito sofrimento. Observem, por exemplo, quando parece aceitar que seu rádio pifou de vez. O que ele faz? Senta-se num sofá, pega seus óculos e começa a ler um livro sobre navegação a partir de estrelas. Como não admirar? Ou ainda, quando percebe a tempestade se aproximando, ele começa a guardar seus pertences e armazenar água, e depois faz a barba, talvez por saber que poderá ficar muito tempo sem poder fazer de novo.

E é por ser tão sereno e resiliente que o momento em que finalmente entra em desespero e se entrega a fadiga, à raiva e à melancolia (nunca de forma exagerada, no entanto) se torna tão trágico e atinja tanto o espectador. Pois, diferente do que vemos em muitos filmes, Até o Fim tem a grande virtude de permitir que nós sintamos a fadiga do personagem, o tanto que ele lutou e torcer por ele, não por conhecê-lo profundamente, mas por estarmos presenciando seu sofrimento de uma posição insuportavelmente confortável. E nem o conhecemos tanto assim, mas recebemos dicas que apenas insinuam um oceano de dores e frustrações, algo que aproxima o filme de outro maravilhoso exemplo de minimalismo, o lindo Las Acacias.

Observem a aliança do personagem, ou mesmo o sugestivo nome de seu barco (Virginia Jean). Além disso, o filme abre com a narração em off de uma carta repleta de remorso, culpa e desculpas. O que será que aconteceu com ele? Na verdade, não importa. A falta de identidade que lhe é conferida é talvez uma forma de respeito dos realizadores que o torna ainda mais intrigante. Diferente do que ocorreu no citado Hide Away, aqui não foi cometido o erro de justificar o sofrimento do personagem. O por quê de sua possível procura por solidão no meio no mar não é assunto nosso para saber. Só podemos supor maiores detalhes a partir de pequenos gestos de Redford, como ao ignorar (aparentemente com resquícios de raiva) uma carta que encontra dentro de uma caixa. Além disso, é visível que o barco contém alguma significância emocional para o personagem, e isso fica evidente em sua relutância abandoná-lo, criando desculpas para voltar a bordo ou pelo melancólico último olhar que lança a ele.

Aliás, sinto que falei muito mas pouco de Redford. O caso é que, desde sua escalação (para aproximar o espectador de um personagem do qual nem teríamos como nos identificar, à primeira vista) até alguns dos microdetalhes por ele usados, são sinais de genialidade. Observem sua primeira fala no filme, quando vai tentar falar no rádio: ele engasga e a voz sai com dificuldade, numa ilustração do comportamento de ficar em silêncio e sozinho durante muito tempo. Ele confere uma dimensão humana essencial para o filme, e suas linhas de expressão e suas mãos calejadas também são histórias dentro de seu personagem. Histórias que nunca ficaremos sabendo, pois o que importa não é o que o levou ao isolamento, mas o fato de estar isolado.

A solidão é a maior constante em Até o Fim, seja numa condição auto-imposta ou imposta pela situação em que o homem se encontra. Chandor ressalta esse sentimento em planos abertos em que vemos Redford isolado em meio à imensidão do oceano, ou ainda pela linda e dolorosa trilha sonora de Alexander Ebert, essencial para evocar um aperto no peito e um estado de tristeza.

Mas o filme não é apenas sobre tragédia, e sim principalmente sobre a luta primordial entre Homem e Natureza. Não é gratuita a comparação que fiz com O Velho e o Mar, ainda mais porque o próprio Chandor a ressalta de maneira bastante direta quando um tubarão “rouba” a pesca do protagonista, cena esta que ecoa passagens literais do livro. Tanto no romance de Hemingway como no filme de Chandor, acompanhamos sofridos homens envelhecidos em combate direto com a Natureza, usando todo o seu reservatório de forças (físicas e psicológicas) para manter-se de pé e digno. E por mais que a Natureza seja bela e grandiosa demais para um ser tão diminuto e insignificante como o Homem (como o diretor reforça nas lindas filmagens submarinas envolvendo peixes e diversos outros seres aquáticos, completamente ignorantes quanto ao sofrimento de seu colega de planeta alguns metros acima), este último ainda merece louvores pela capacidade de resistência que consegue demonstrar, mesmo que muitas vezes seja vencido numa derrota vergonhosa, como Hemingway mostrou.

Eficaz ainda no realismo e inventividade das improvisações do protagonista (como o modo de arrumar água potável) e tocante em seus momentos mais intimistas, Até o Fim é um filme de sobrevivência que diz muito em diversas camadas. A fragilidade e a tenacidade do ser humano se misturam num perfeito exemplo dessa malfadada espécie, onde todos os caminhos traçados por suas profundas rugas levam a oceanos indomados que se chocam com a brutalidade da Natureza, para a qual nada tão pequeno como um homem fica no caminho de sua força. Mas que vai ter uma luta bonita, isso vai. Injusta, mas bela.

quinta-feira, 10 de abril de 2014


Análise:

Expresso do Amanhã (Snowpiercer / 2013 / EUA, França, Coréia do Sul, República Checa) dir. Bong Joon-ho

por Lucas Wagner

Desde 2013, cineastas sul-coreanos de talento já há muito retificado vem ganhando destaque no Cinema mundial. O versátil Kim Jee-woon veio com o competente O Último Desafio, e o mestre Park Chan-Wook trouxe o sombrio, complexo e perverso Segredos de Sangue, obra tão deturpada quanto seus projetos anteriores. Agora chegou a vez do aclamado Bong Joon-ho, responsável pelos excepcionais Memórias de um Assassino, O Hospedeiro e Mother – A Busca Pela Verdade, demonstrando seu talento ao imprimir seu estilismo visual próprio a histórias tão diferentes, trazendo, nesse Expresso do Amanhã, uma obra bem-sucedida tanto como puro entretenimento quanto como discussão filosófica.

Adaptado pelo próprio Joon-ho em parceria com Kelly Masterson a partir da HQ francesa Le Transperceneige, a história tem como base uma tentativa de findar com o aquecimento global, que acabou resultando numa espécie de era do gelo brutal. Os seres humanos sobreviventes, confinados a um trem que circula pelo mundo todo, vivem sob o comando de Wilford, o criador do veículo. Divididos em classes, os moradores dos últimos vagões (a “cauda”) planejam uma revolta para acabar com as atrocidades que as classes superiores (habitantes da “frente” do trem) cometem diariamente contra eles.

Usando a própria estrutura do trem como uma metáfora um tanto óbvia para o posicionamento social de cada classe, Joon-ho é hábil na exploração visual do veículo, que vai se revelando mais e mais versátil e curioso quanto mais os revoltosos caminham em direção ao primeiro vagão. O design de produção de Ondrej Nekvasil consegue estabelecer bem os “diferentes universos” que habitam o trem, variando desde os ambientes escuros, amontoados e sujos da “cauda” para outros tão distintos quanto o límpido aquário. Mais importante, é como esses diferentes ambientes alcançam o grau de caricatura ideal que Joon-ho parece procurar em seu projeto, ou seja, transmitindo a estranheza da bizarrice que vemos, mas sem deixar que o filme pareça afastar-se em demasia do tom mais realista. Desse modo, se os citados alojamentos dos revoltosos parece saído diretamente das ruínas de algum país destruído por uma guerra, a escola e a boate que são vistos posteriormente possuem cores fortes, chamativas e alegres, evidenciando o evidente afastamento dos habitantes desses vagões da crua realidade que os “heróis” enfrentam todo dia.

Trabalhando com a recorrente temática de distopia, o diretor investe em elementos caricaturais tanto para demonstrar o citado afastamento da realidade como para ridicularizar os mais ricos e ignorantes, assim como foi feito nos dois Jogos Vorazes. A personagem de Tilda Swinton, por exemplo, surge como um ser quase alienígena em seu comportamento histriônico, roupas chamativas e, é claro, o toque de gênio de sua dentadura repleta de dentes podres, num detalhe que representa a podridão da própria personagem. O mesmo pode ser dito da professora infantil interpretada por Alison Pill, cuja adoração e paixão com que ensina seus pupilos sobre a bondade divina de Wilford chega à quase um êxtase no momento em que entoa uma canção sobre a grandiosidade do mesmo.

Pois aqui está um elemento importante do cerne de Expresso do Amanhã: seu subtexto religioso. Assim como o deus do Velho Testamento, Wilford é visto quase como uma entidade divina que, sem nunca dar as caras, promove atos de brutalidade e maldade evidentes em prol de alguma espécie de ordem e paz. E seus mais fiéis seguidores aqui parecem cegos de admiração frente à figura do homem, enquanto essa mesma adoração é ensinada desde cedo às criancinhas. Mas o que Wilford é, na verdade, é um potencial psicopata com delírios que no mundo normal seriam absurdos (construir um trem que roda constantemente pelo globo), mas que naquele planeta destruído pelo gelo se aplicam perfeitamente, e permitiram que ele se tornasse uma versão do Grande Irmão de Orwell e do deus do Velho Testamento, ou seja, uma combinação monstruosa.

Assim, quando finalmente aparece, Wilford se revela um sujeito frio e elegante, num ambiente idem, cujas falas claras e educadas quase mascaram as atrocidades que diz. Mas a grande questão é que sua lógica se aplica àquele universo e, o que é pior, parece ser a mesma lógica cruel que guiou diversos governantes da História, cujas atrocidades ainda ecoam pelo tempo. Pois, de sua posição privilegiada, o que ele vê quando olha para o restante da humanidade? Macacos repletos de energia que precisam de um líder e de uma boa dose de caos para conseguirem continuar vivendo. O caos, a selvageria, a necessidade de luta por uma melhora (sempre inalcançável, no fim das contas) das pessoas comuns são usados por ele, um grande estrategista, como uma forma de manter o controle do microcosmo que é o trem e alcançar seus próprios objetivos.

Apresentando uma visão adequadamente ambígua da natureza humana, Expresso do Amanhã apóia nos ombros de seu protagonista, Curtis (Chris Evans), os motores da mudança e de sua complexa perspectiva moral. Personagem trágico e psicologicamente ambíguo, Curtis é um sujeito que parece estar constantemente se policiando, guiado por um sentimento de culpa que, em sua visão de mundo, parece fazer com que qualquer atitude sua, por mais nobre que seja, não valha grande coisa no fim das contas. Para isso, mais do que essencial é a performance de Chris Evans, um ator excelente sempre que tem a oportunidade de demonstrar seu verdadeiro talento, que aqui confere grande peso dramático à Curtis, numa expressão sempre fechada e cansada, mas que nunca deixa de demonstrar humildade e medo, muitas vezes de si mesmo e do que se acha capaz. Aliás, ao longo da projeção, ele sofre testes morais e éticos que o tornam ainda mais complexo.

Com um elenco que apresenta grande diversidade étnica (perfeitamente adequada para mostrar uma parcela da humanidade num mundo pós-apocalíptico), Expresso do Amanhã se cerca de talentos que conseguem extrair o necessário para desenvolver, pelo menos um pouco, cada um dos personagens. Mas, enquanto Ed Harris assusta com a frieza de sua composição e Alison Pill frita no fanatismo da professora que interpreta, quem merece mais destaque é Tilda Swinton, cuja composição de Mason não é só divertida, mas extremamente complexa ao evidenciar camadas de profunda psicopatologia em sua personagem.

Enfraquecido com cenas de ação que fariam mais sentido se estivessem em um filme de Edgar Wright, Expresso do Amanhã consegue destacar-se na beleza de suas imagens, principalmente aquelas que mostram o mundo congelado, mas também cai quando Joon-ho acaba pesando um pouco a mão no elemento caricatural e cria uma espécie de antagonista quase indestrutível, mas completamente desnescessário. No entanto, é ótimo que Bong Joon-ho, sem estar ligado a um grande estúdio, tenha liberdade para trabalhar com sua habitual violência estética, não economizando em sanguinolência, mutilações e nem mesmo numa quantidade suficiente de palavrões que afasta o longa da mesquinharia. Além disso, a coragem do cineasta fica ainda evidente quando mata personagens importantes sem frescura ou aviso prévio.

Apesar de seus problemas, Expresso do Amanhã é mais um trabalho de grande competência de Bong Joon-ho, e também uma ficção científica exemplar ao aproveitar a trama ficcional para abarcar reflexões mais complexas e desafiadoras, assim como os melhores exemplos do gênero fazem.

quinta-feira, 3 de abril de 2014



Análise:

Noé (Noah / 2014 / EUA) dir. Darren Aronofsky

por Lucas Wagner

Aviso: aconselho que o texto a seguir seja lido apenas por quem viu o filme, já que dessa vez os spoilers foram inevitáveis, até mesmo para discutir a obra com propriedade.

O que filmes tão diferentes em suas premissas como π, Réquiem Para Um Sonho, Fonte da Vida, O Lutador e Cisne Negro tem em comum não é apenas o mesmo diretor, Darren Aronofsky, mas no cerne uma temática que aparentemente fascina tal realizador: o de seres humanos levados ao extremo de seus limites físicos e psicológicos. Assim, não é surpresa que Noé, seu novo filme, volte a abordar esse tipo de personagem, usando o brutal arco dramático pelo qual o protagonista tem que passar para transformar esse longa não apenas uma leitura moderna de uma fábula bastante conhecida, mas sim em uma exploração das complexas implicações morais que tal fábula tem a oferecer.

E se uso a palavra “fábula” não é apenas para pirraçar fundamentalistas religiosos, mas porque Aronofsky (que é ateu) e o co-roteirista Ari Hendel abordam a história não com fidelidade absoluta à bíblia, mas dão asas a suas imaginações e criam um universo mais nos moldes de épicos como Game of Thrones ou O Senhor dos Anéis. E isso a introdução do filme já deixa bem claro, ao repassar a história da Criação chegando até o momento em que Caim matou Abel dividindo a humanidade em duas partes: os descendentes de Caim (uma espécie de Sauron), sempre maus, violentos e perversos; e os descendentes de Set, mais escassos, mas bons e humildes servos do Criador.

O Noé interpretado por Russell Crowe é um dos últimos da linhagem de Set, e recebeu a difícil missão de construir uma arca para salvar os animais da grande inundação que o Criador lançará para limpar o mundo da imundice dos homens. Assim, os sonhos premonitores do personagem-título são oportunidades bem aproveitadas para Aronofsky brincar com simbolismos que, mesmo fáceis de se decifrar, não deixam de ser conceitualmente interessantes, como a terra da qual brota sangue, ou os dois momentos em que vemos Noé debaixo de uma grande massa d’água e, na primeira vez, percebemos o personagem rodeado de cadáveres, enquanto da segunda vemos a mesma imagem mas, de onde supúnhamos ver corpos em decomposição, agora percebemos vários animais nadando para se salvar das profundezas aquáticas.

É também a partir de um desses reveladores sonhos do protagonista que Aronofsky introduz a temática da ambiguidade moral que vai guiar Noé da metade do filme até o fim, e que compõe o seu núcleo narrativo. Nessa sequência, quando vemos Noé chocado com a crueldade dos homens ao trocarem mulheres por carne, matarem alegremente animais e ainda se verem envoltos em perversão e sadismo, é interessante notar como a fotografia de Matthew Libatique é eficiente ao criar uma lógica visual que será valiosa para que o filme funcione. Percebam como a cena é iluminada pelo fogo, e as cores reforçam uma visão de verdadeiro Inferno. E depois, percebam como Libatique e Aronofsky utilizam a mesma cor amarelo-fogo para filmar os ambientes dentro da arca, não apenas para simular um lugar iluminado por velas, mas para introduzir a ideia que os eventos ali passados não se distanciam muito do que vimos no acampamento do sonho. Além disso, o fato dos rostos dos personagens na arca virem constantemente cobertos por sombras não é apenas para mostrar como é difícil enxergar naquele lugar parcamente iluminado, mas para ilustrar o lado sombrio daqueles indivíduos. A grande fornalha dentro da arca também é interessante nessa interpretação, sendo mais emblemática no plano que aparece logo atrás de Noé.

Pois aqui entra a tal temática sobre “limites”, constante nos trabalhos de Aronofsky. Seguindo a crença de estar cumprindo a “vontade do Criador”, segundo sua própria interpretação, Noé é confrontado com questões que todo o seu ser moral repudia e, como ser humano, sente-se devastado por ter que realizar ações abomináveis em nome de um “Bem maior”. Mas a imagem que viu de si mesmo em seu sonho (num momento tipicamente aronofskiano) o assustou o suficiente, e a mera possibilidade de se tornar o tipo de homem que tanto lhe enoja, o choca de modo que, dialeticamente, acabe ele mesmo se tornando um. Aronofsky, aliás, deixa isso mais do que claro no momento em que, depois de um ato particularmente cruel, Noé é acidentalmente misturado à multidão que tenta invadir a arca. Não que ele seja um sujeito realmente mal, afinal, ele acredita piamente que faz o que faz por motivos importantes e incontestáveis. Mas essa mesma característica que pode redimi-lo não poderia ser aplicada a centenas de fanáticos religiosos que, baseando-se em suas crenças, cometeram/cometem crueldades imperdoáveis contra a humanidade ao longo da História?

A visão do Criador que Aronofsky trás é cruamente a do Velho Testamento: de um tirano impiedoso que obriga suas criaturas a atitudes desumanas para provar seu amor por deus. Aqui, a questão ganha contornos éticos e morais. A provação a qual Noé é submetido (se interpretarmos sob o viés de que deus tinha reais planos para ele no futuro – ou não – da humanidade) pode ser interpretada como um teste do próprio Criador para ver se valia ou não a pena extinguir de vez a raça dos homens. Pois os argumentos usados por Tubal-Cain (Ray Winstone), descendente de Caim, na hora de afirmar seu valor diante do Dilúvio, não deixam de ser menos válidos quando ele afirma que foi criado à imagem e semelhança de deus, logo podendo afirmar sua superioridade naquele mundo. A fragilidade, então, está na própria concepção do Homem: ser ambíguo multifacetado com iguais possibilidades de agir como um demônio ou como um anjo, dependendo do momento. Não é atoa que uma comparação filosófica seja traçada entre Tubal-Cain e Noé, principalmente através do relacionamento paternal do primeiro com Cam (Logan Lerman), que remete até ao protagonista e seu próprio pai. O que muda é apenas a motivação, e nesse sentido, é curioso que em certo momento, mais intimista, vejamos Tubal-Cain clamando pela atenção de deus, como um filho rejeitado. E que espécie de pai rejeita seu filho apenas por ir contra seus planos e expectativas?

A partir desse arco, então, Aronofsky delinea as discussões de seu filme, envolvendo o Bem e o Mal, e como a humanidade se encontra num parco equilíbrio entre um e outro, assim como a noção de livre-arbítrio (como estudante de psicologia, repudio esse conceito, mas tudo bem) e como o Homem se comporta sendo deixado livre para agir de acordo com sua interpretação do mundo. Afinal, em algum momento fica claro para todos que deus queria que Noé matasse as filhas de Ila (Emma Watson)? Ou seria apenas o modo como o personagem interpretou o fim das chuvas? Por que também seria tão errado ajudar algumas pessoas agonizantes no Dilúvio? Realmente é “certo” concordar com o genocídio promovido pelo Criador? Ou ainda: o que deus realmente queria era que Noé, no fim das contas poupasse a humanidade, ou era tudo um teste? Essa última (e particularmente interessante) questão, no entanto, é quase estragada pelo diretor quando investe em um diálogo dolorosamente expositivo no fim do filme.

Beneficiado com dinheiro suficiente para criar um verdadeiro épico, Aronofsky acerta na construção de ambientes digitais que evidenciam o próprio estado emocional naquele mundo decadente. Para todo lugar que olhamos o que vemos é cinza, árvores cortadas e terreno árido e infértil. Até mesmo a floresta surgida a partir da semente do Éden é evidentemente triste, apesar de um pouco mais “feliz” do que o que víamos antes. E essa lógica é seguida pelo diretor para criar planos emblemáticos e trágicos como aquele que mostra uma montanha de homens e mulheres sofrendo com as inundações. Já os efeitos visuais são por vezes fascinantes (as inundações) e por vezes decepcionantes (os animais digitais), mas ganham nos Guardiões, os anjos caídos, um design genial que conta sua trágica história apenas com seus corpos quebradiços e desconfortáveis, suas tristes faces, e a luz amarela que deixa-se ver através das fendas de seu corpo e seu rosto, como dolorosas lembranças de tempos mais felizes. Aliás, ainda é curioso que Adão e Eva, antes do Pecado Original, sejam vistos como brilhantes luzes douradas, assim como os anjos, ou ainda como a derradeira maçã da Árvore do Bem e do Mal parece um coração pulsante, tudo gerando discussões que poderiam durar vários textos.

Com um elenco unânime em competência (em especial Jennifer Connelly), que consegue dar aos personagens a devida tridimensionalidade, Noé pode até ser uma obra mais irregular dentro da genial carreira de Darren Aronofsky, até porque aqui, um blockbuster, ele é obrigado a aliviar na violência (os corpos abatidos e destruídos sem qualquer evidência de sangue são lamentáveis) e desenvolver seu filme com mais afobação do que de costume para caber em seus 138 minutos. Ainda assim, é prova mais do que suficiente de sua ambição e inteligência enquanto realizador.