quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014


 Análise:

Nebraska (Nebraska / 2013 / EUA) dir. Alexander Payne

por Lucas Wagner

-Vocês conversavam sobre ter filhos?
-Não.
-Então por que tiveram a gente?
-Porque eu gostava de transar. Sua mãe era católica. Junte as peças.

Esse trecho do diálogo de uma das melhores cenas de Nebraska é emblemático dentro do contexto da filmografia do cineasta Alexander Payne, já que contém em si, mesmo que de forma cômica, um sentimento constante que assombra os personagens do diretor: a insignificância. Todos nesse seu novo trabalho cabem nessa classificação, de uma forma ou de outra, criando assim uma bela reverberância temática na carreira do diretor.

A trama acompanha o triste vendedor de home theaters David Grant (Will Forte) quando leva seu idoso pai, Woody Grant (Bruce Dern), para Lincoln, Nebraska, para coletar o prêmio de 1 milhão de dólares que o velho senhor acredita ter recebido. No caminho, passam pela cidade onde este cresceu, Hawthorn, reencontrando familiares e amigos de antigamente. E aqui podemos ver outro eco temático de Payne, já que como as viagens de Paul Giamatti em Sideways, Jack Nicholson em Confissões de Schimit e George Clooney em Os Descendentes, a estrada que pai e filho seguem aqui é uma forma de eles encontrarem os caminhos certos no labirinto incerto de suas “almas”.

A bela fotografia em preto e branco justifica sua razão de ser por buscar emular a melancolia que cerca a obra, em toda a sua existência no passado, pois todos os personagens (em sua maioria idosos) parecem ter os dois pés firmemente plantados na época em que ainda eram jovens. O belíssimo roteiro de Bob Nelson, no entanto, balanceia essa melancolia com um senso de humor afinadíssimo que encontra comicidade no enfado de um diálogo entre idosos ou mesmo nos discursos senis de Woody.

Woody que é um senhor praticamente demente (em certo momento, seu filho refere-se ao estado do pai como “semi-coerente”), cuja aparente falta de sentido na insistência de sua jornada baseada numa ilusão não é senão uma maneira de encontrar algum sentido em sua velhice, e seus aparentemente tolos objetivos traduzem um desespero tocante do qual o senhor provavelmente nem está consciente, o que torna sua situação ainda mais trágica. E para isso, Bruce Dern acerta ao evocar a confusão praticamente inocente de Woody, mas é sábio ao dedicar mais “energia” nos poucos momentos em que o personagem demonstra alguma lucidez (melancólica, por sinal), como quando visita a casa em que cresceu e comenta sobre ter visto o irmão morrer, ou ainda quando o filho pergunta sobre se um dia teve algum sonho, e ele responde não se lembrar. Pois toda a existência de Woody, agora relegada ao esquecimento eterno por sua senilidade e eminente morte, parece ter sido sempre vivida através do conveniente e de sua incapacidade de dizer “não”, levando-o a se tornar um homem cada vez mais fechado que sempre calava seus maiores anseios.

Todo o universo de Nebraska emana uma atmosfera de nulidade e inação, frente ao tempo, à vida, e Payne mostra domínio sobre o projeto através de uma construção visual que permite que o espectador mergulhe nesse clima. Assim, na estrada em que dirigem David e Woody, no carrinho velho do primeiro, esses são sempre ultrapassados, inclusive por um lento trem de carga, numa representação do próprio estado de suas vidas. O design de produção também acerta na utilização de ambientes sempre antiquados da pequena cidade de Hawthorn, alterando essa lógica apenas em Lincoln, obedecendo a coerência da narrativa. E todo esse trabalho faz com que o filme transmita a impressão de se passar em uma realidade alternativa, presa no tempo, mas não resignada, apenas sustentada por sua própria insignificância. E para isso, Payne ainda investe em planos que estereotipizam seus personagens, reforçando a idéia de que todos fazem parte de um mesmo meio. Assim, na casa do irmão de Woody, os velhos assistem televisão e soltam alguns comentários enfadonhos, as velhas tagarelam e fofocam, e os filhos (primos uns dos outros) ficam sentados sem nada para fazer. E aqui, é notável que David pareça pertencer e não pertencer ao mesmo tempo ao meio de seus primos, e isso pois, se divide o quadro com eles (ressaltando uma semelhança), ele se veste diferente e sua constituição física não poderia ser mais contrastante.

Mas por que isso? David é um elemento à parte, pois pode ser tão (ou mais) insignificante que todo mundo lá, mas está em uma fase de sua vida em que procura se compreender e possivelmente encontrar algum significado. Pois acabou de terminar um relacionamento de dois anos por pura incerteza, já que o que impediu que pedisse a moça em casamento era sua própria insegurança nos seus sentimentos. Ainda, ele trabalha em um emprego pedestre, enquanto, para a sua idade, dentro do contexto em que foi criado, já deveria estar casado e com filhos. E assim não é por acaso que todo mundo pareça lembrar à ele o tanto que era um bebê bonito e delicado, como se ressaltassem a sua ausência de predicados atuais. Seu nome, aliás, veio do irmão de Woody que faleceu com apenas dois anos de vida, e essa é uma ironia soberba trabalhada pelo roteiro pois é como se ilustrasse a própria existência patética do sujeito.

Em uma cena valiosíssima, David encara a lápide do seu tio que faleceu aos dois anos. Esse encarar está repleto de tristeza e identificação, pois como dito, o personagem compreende sua situação, e a própria ajuda e carinho que busca dedicar ao pai se dá não apenas porque é um bom filho, mas como uma forma dele mesmo buscar algum sentido para si. E para isso, o ator Will Forte (uma das melhores figuras de Saturday Night Live) demonstra ter o que é preciso, e conquista a simpatia do espectador a todo momento.

Repleto ainda de outros personagens tocantes e tridimensionais, como a Sra. Kate Grant (June Squibb – fabulosa), que sempre relembra como todo mundo parecia querer levá-la para a cama (nem preciso dizer que isso é um sintoma, não é?), e ainda presenteado com uma narrativa construída com elegância e poesia, Nebraska é uma obra valiosa, sensível e divertida, e em toda a insignificância que martela, constrói o que é um profundamente significante drama humano.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014


Análise:

Inside Llewyn Davis – Balada de um Homem Comum (Inside Llewyn Davis / 2013 / EUA) dir. Joel & Ethan Coen

por Lucas Wagner

Um microfone. De repente um rosto barbado com um cabelo desgrenhado começa a cantar uma canção, acompanhado apenas de seu violão e seus sentimentos, sobre ter visto muito do mundo, ter caminhado bastante e finalmente poder morrer em paz, pois não há nada mais para ser visto. Depois de um bom tempo focado apenas no rosto do cantor e no microfone, começamos a ver os espectadores, todos em silêncio respeitoso, com os rostos encobertos por sombras e fumaça, como se suas identidades não importassem naquele momento. Depois da apresentação, o cantor toma uma surra de um desconhecido cujo rosto não conseguimos distinguir (está muito escuro), e nem sabe o motivo da agressão, mas fica largado no chão de um beco escuro e gelado...

É assim que os maravilhosos irmãos Joel e Ethan Coen iniciam seu novo longa metragem, já estabelecendo o rumo de seu projeto, que acompanha uma semana da vida do cantor folk Llewyn Davis (interpretado por Oscar Isaac), cuja paixão pela sua Arte o tornou resiliente o suficiente para ter chegado no deplorável estado que se encontra: o de um saco de carne inexpressivo e exausto, que constantemente apanha de sua própria vida sem motivo aparente a não ser como uma forma de piada cósmica cruel. Nesse processo, os irmãos não criam uma história torturante mas, como adoram fazer, exploram o humor que existe naquele universo, embora nunca deixando de se banharem na doce, bonita e doída melancolia que envolve toda essa história.

Em primeiro lugar, é notável a sabedoria dos irmãos ao negarem a tentação de realizar seu filme em preto e branco, uma opção que a atmosfera da narrativa justificaria, mas que seria dolorosamente óbvia. Ao invés disso, os irmãos e o diretor de fotografia Bruno Delbonnel (de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain) optam por um trabalho mais singular, onde o último pode empregar tranquilo o aspecto plástico que limpa a imagem de praticamente toda granulação e que caracteriza seus trabalhos anteriores, pois o objetivo aqui é criar um mundo dolorosamente triste (cuja iluminação fria e os ambientes escuros e esfumaçados criam essa sensação), mas também belo, pois há uma poesia quase misógna na imagem do artista que passa fome mas não desiste de sua Arte. Os realizadores ainda são inteligentes ao usar as cores com um sentido narrativo, já que colorem a obra com tons de um azul escuro e triste (blue, em inglês, também significa “tristeza”) e também com um sutil e eficientíssimo uso de um verde amarelado que transmite a idéia de putrefação, estado em que se encontra a vida de muitos dos personagens.

Pois não é só Davis que sofre com sua Arte, mas a maioria dos personagens são artistas de alguma forma. E assim, os irmãos demonstram sensibilidade ao prestar atenção na alegria com que esses indivíduos cantam suas músicas, ou, no caso do personagem de Garrett Hedlund, lêem seus poemas. Até mesmo a velocidade dos cortes muda, já que ganham em velocidade quando, por exemplo, vemos um trio gravando uma canção, e a energia da montagem contrasta com o restante da projeção. Aliás, contraste é mesmo a palavra certa para as expressões nos rostos dos personagens, que claramente se iluminam ao cantar (ou ler) para logo depois voltar a cenhos fechados e cansados. E os irmãos são ainda mais geniais ao não enfocarem apenas esse tipo de rosto, mas atentam para o otimismo e bondade existente no soldado/cantor do início da projeção ou no Jim interpretado com sensibilidade por Justin Timberlake, que, diferente do resto do elenco, tem uma indumentária com cores mais alegres e chamativas, embora um tanto desbotadas.

Inteligentemente ambientado no período do inverno (e é importante ressaltar que, com o decorrer da projeção, mais neve seja vista nos cenários), Inside Llewyn Davis pode apresentar certa universalidade na temática do artista sofrido, e isso fica ainda mais evidente quando o protagonista vai empurrar para debaixo de um móvel uma caixa cheia de seus LPs ignorados, mas é impedido por outra caixa cheia também do mesmo conteúdo, mas agora com o nome do rapaz com quem está dividindo o teto naquela noite. Mas o longa é mesmo um estudo de personagem de Llewyn Davis, o que os Coen reforçam o tempo todo ao trazerem imagens prosaicas, mas por vezes até divertidas, do cotidiano do protagonista, como quando deita num sofá e o testa com o seu corpo, como um especialista em sofás (afinal, dorme de favor na casa de amigos toda noite).

Davis tem a expressão constantemente fatigada, e até sua voz, quando não está cantando, não apresenta particular força, numa demonstração de talento do ator Oscar Isaac ao manter a inexpressividade sonolenta o tempo todo e a voz baixa e cansada. Davis muda essa expressão apenas quando canta, pois ai sim seu rosto se contorce em sinal de dor quando seus sentimentos rasgam por sua garganta, e Isaac acerta novamente na maior expressividade do rosto nessas cenas, quando chega até mesmo a fechar os olhos. Mas se sofremos com ele, fica difícil simpatizar com o mesmo, já que o rapaz há muito já perdeu o orgulho próprio, e não hesita nem mesmo ao, descaradamente, pedir um teto à um sujeito que nunca antes viu, e ainda fechar a cara quando perguntam até quando ele vai precisar de abrigo. Seu orgulho só se mostra mesmo quando se trata de pedir teto ao casal de velhinhos ricos que sempre estão dispostos a abrigá-lo, mas que ele sempre evita.

Mesmo a paixão ardente que sente pela música parece vir com certo esforço, como se Davis, em seus discursos idealistas contra carreiristas, estivesse tentando provar para si mesmo que lutar ainda vale a pena. Mas mesmo ele sabe a dureza da realidade, e por isso mesmo um dos momentos mais doídos da projeção é quando, depois de cantar fervorosamente para conseguir um bico num bar, recebe como resposta do dono que “Não vê dinheiro ali”, e responde, sem raiva, ou mesmo alterar a expressão: “Tudo bem”. E é por isso que, quando finalmente parece querer entregar as pontas, sabemos a dor que vem acompanhando essa decisão, por mais que seus músculos faciais pareçam não ter força nem mesmo para se contrair.

Inside Llewyn Davis prova mesmo ser uma verdadeira obra prima são nas nuances da belíssima direção (para variar) dos irmãos Coen. Em certo momento, por exemplo, vemos Davis pedindo carona sozinho em uma estrada noturna, coberta por uma névoa fantasmagórica, numa cena contemplativa que parece sintetizar toda a obra, toda a existência do personagem e mesmo encontrar eco em temas das canções típicas do folk, que sempre tratam de “adeus” (farewell) e soturnas existências à deriva. Em outro belíssimo momento, Davis dirige, com sono, em uma estrada de madrugada, escutando ópera, e toda a sequência tem um caráter transcendental, como se o personagem estivesse atravessando uma outra dimensão (o plano que mostra a estrada e os flocos de neve em movimento iluminados por faróis), até que Davis tenha que desviar o carro para não atingir um gato. Ao ver o pára-choque sujo de sangue, pensa que o bicho morreu, até que o vê (alucinação?) entrando na mata sombria. E há aqui um belo simbolismo de uma visão de entrega do protagonista. Aliás, o gato é um animal recorrente na obra, talvez pelo mito de “ter sete vidas”, como o próprio Davis, que parece constantemente morrer para tentar renascer de novo.

Além de tudo isso, há o detalhe dos corredores dos apartamentos em que Llewyn se hospeda, já que a maioria são tão apertados que causam certa claustrofobia, numa tentativa de ilustrar os sentimentos de Davis, algo que os Coen, geniais, aproveitam até para fazer piada, numa cena em que o corredor apertado causa um desconfortável empecilho. E está aqui outro grande elemento do filme: o humor. Pois Inside Llewyn Davis não é uma obra apenas triste, já que os Coen encontram espaço de sobra para inserir boas doses de seu peculiar senso de humor, investindo em diálogos bizarros como aquele que fala sobre um senhor que gosta de ir a funerais, ou ainda situações mais rasgadas como as desventuras de Davis para encontrar um gato fujão, o passageiro do carro que dorme mesmo diante de pesadas turbulências e, é claro, a fala: “onde está o escroto dele?!”. Qualquer cena com John Goodman também merece destaque nesse sentido.

Por fim, Inside Llewyn Davis é um filme que funciona à altura de obras literárias tematicamente semelhantes, como Factótum, de Charles Bukowski, pois abarca em si os sentimentos profundos de uma existência que não faz sentido fora da Arte mas que também está meio caótica dentro dela. Essa nova obra-prima dos irmãos Coen é, à sua própria maneira, uma canção folk, como aquelas que tão gentilmente nos guiam durante a projeção, com todo o carinho pela palavra "adeus" expresso nas letras, o que não deixa de ser um sintoma de uma vida que é também um longo farewell...

OBS: Genial, para os fãs do folk (como esse que vos fala) vermos Bob Dylan no início de carreira, no fim do filme. Obrigado, irmãos Coen, pelo sorriso que me proporcionaram quando percebi isso.

sábado, 22 de fevereiro de 2014


Análise:

Clube de Compras Dallas (Dallas Buyers Club / 2013 / EUA) dir. Jean-Marc Vallée

por Lucas Wagner

Clube de Compras Dallas é um longa sutil que merece créditos em especial por conseguir transitar entre uma trama com aspectos políticos e sociais e ainda ser um belo estudo de personagem, equilibrando-se numa abordagem sóbria e honesta promovida pelo diretor canadense Jean-Marc Vallée e presenteado com uma performance fascinante de Matthew McConaughey, que prova para cada alma duvidosa porque é um dos melhores atores da atualidade.

O roteiro de Craig Borten e Melisa Wallack conta a história real do cowboy Ronald Woodproof (personagem de McConaughey), que descobriu ser portador do vírus HIV, e aos poucos foi se engajando numa luta para conseguir tratamentos eficazes para sua condição. Percebendo os malefícios da droga que tomava (AZT), Woodproof se dedicou aos medicamentos alternativos de um médico sem licença, e logo depois começou a contrabandear esses medicamentos para os EUA.

A direção discreta de Vallée é eficaz principalmente por fugir de arroubos emocionais, buscando registrar de maneira quase documental (a câmera na mão, a fotografia granulada e a praticamente ausente trilha sonora) os eventos que busca contar, conseguindo assim transitar com tranquilidade e até certa suavidade entre as batalhas emocionais de Woodproof e todo o contexto envolvendo a comercialização de drogas para tratamento da AIDS. Ainda é importante ressaltar como o diretor nunca é mesquinho o suficiente para trabalhar a transformação psicológica de Woodproof de maneira óbvia, e assim o processo emocional que passa durante a projeção se dá de maneira lenta e gradual (sucesso também devido à McConaughey, como comentarei logo em seguida), e mesmo no fim do filme podemos ver traços da personalidade mais ignorante do protagonista, muito embora este tenha sofrido uma enorme mudança e amadurecimento.

Falar de Woodproof é falar mesmo de Matthew McConaughey. Em uma etapa excelente de sua carreira (vide seus papéis em Killer Joe, Poder e a Lei, Bernie, Mud, O Lobo de Wall Street e, é claro, no seriado True Detective), McConaughey aqui demonstra uma disciplina e dedicação até então desconhecida em sua carreira, ao passa por uma notável transformação física, se tornando uma criatura raquítica que rivaliza com as metamorfoses que Christian Bale tanto gosta de fazer. Mais impressionante, no entanto, é observar a transformação emocional de Woodproof, algo que o ator não apenas explora com entrega como ainda demonstra inteligência e coragem ao investir numa performance que em momento algum ameaça suavizar o protagonista. Pois Woodproof não é uma figura de toda agradável, e no início da obra o sentimento que mais desperta é o de puro nojo, devido às suas atitudes racistas, homofóbicas, sexistas e estupidamente arrogantes.

O descobrimento de sua condição é o estopim para Woodproof mudar, já que, como a AIDS naquela época era algo visto pela população como uma doença exclusiva para homossexuais, o protagonista logo é rechaçado pelo seu grupo de amigos, tão homofóbicos quanto ele mesmo. E é num longo processo em que ele vai percebendo que, gostando ou não, ele mesmo passa a ter muito mais a ver com o travesti Rayon (Jared Leto) do que com seus antigos camaradas, e um claro sinal de amadurecimento fica evidente quando se indigna com o desrespeito demonstrado pelo seu amigo policial (Steve Zahn) frente à Rayon. A metamorfose que Woodproof vive se dá num nível extremamente profundo, e isso fica bem evidente pelo fato de, se continua fazendo piadas homofóbicas, ele passa a demonstrar carinho e cuidado por Rayon, e em certo momento demonstra uma profunda emoção pelo amigo, quando, em um determinado abraço, enche seus olhos de lágrimas. A performance de McConaughey, aliás, está repleta de nuances como esta, e é notável o quanto nos tornamos íntimos de sua figura, e assim compreendemos as complexas e resignadas emoções que surgem no terceiro ato.

O longa ainda é beneficiado pelo belo trabalho de Jared Leto como Rayon, numa complexa composição na qual podemos perceber claramente como toda sua pose um tanto arrogante é na verdade uma intrincada forma de defender uma personalidade delicada e quebradiça. Já Jennifer Garner acerta ao transformar a Dra. Eve numa figura tridimensional em seu claro sofrimento pela impotência de suas ações visando a melhoria de vida de seus pacientes (e assim é curioso que o figurino dela seja basicamente o jaleco branco, e quando não, geralmente é uma roupa que lembra o jaleco, reforçando assim sua dedicação). Já Steve Zahn tem uma performance totalmente ignorada pela crítica onde consegue transformar o policial Tucker numa figura extremamente ambígua em seus sentimentos de amizade e desprezo por Woodproof.

Clube de Compras Dallas ainda se mostra notável ao nunca demonizar ninguém, e se seria fácil para um roteiro mais pueril transformar em vilões os médicos e executivos que regulam a circulação das drogas para tratamento de AIDS, aqui estes são sempre vistos como simplesmente humanos, presos à regras que, se até certo ponto os tornam um tanto quanto podres, em nenhum momento são vistos como psicopatas preocupados apenas com o próprio lucro. Nesse ponto ainda, é admirável como o longa surpreende em detalhes sutis mas que fogem da facilidade emocional, como ao nunca mostrar Woodproof dividindo uma garrafa ou um copo com outra pessoa, ou mesmo ao não negar o humor de certas piadas homofóbicas, embora o filme passe longe dessa classificação.

Sendo assim, Clube de Compras Dallas pode não ser um grande filme que promova discussões e reflexões demasiado profundas sobre seus personagens ou mesmo seu universo. Mas é sim uma obra cuja completa naturalidade com que trata de seus temas e pessoas permite que nos aproximemos de seus dilemas, e assim somos envolvidos nas duas horas de duração e torcemos por aquelas figuras tão reais.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014


Análise:

RoboCop (RoboCop  / 2014 / EUA) dir. José Padilha

por Lucas Wagner

Uma ficção científica de alta qualidade sabe usar das possibilidades futuristas que explora não apenas com um fim em si mesmo, mas também para criar um simulacro investigando as consequências que os elementos imaginados para aquele universo teriam sobre aspectos sociais, econômicos, psicológicos e filosóficos. Grandes autores do gênero, como Arthur C. Clarke, Isaac Asimov e Phillip K. Dick, compreendiam isso como ninguém, e nessa refilmagem do clássico RoboCop, de 1987, o cineasta brasileiro José Padilha acerta ao não enxergar seu projeto apenas como um blockbuster que abre suas portas à Hollywood, mas sim como a possibilidade de desenvolver temas complexos e promover discussões importantes.

Não que não funcione como um exímio arrasa-quarteirão. Com folga no sentido financeiro, Padilha teve o conforto de trazer colaboradores habituais para o projeto, podendo assim trabalhar com mais tranquilidade. Assim, volta a trabalhar com o diretor de fotografia Lula Carvalho, construindo uma estética similar à de seus projetos anteriores, aqui alterando entre uma paleta granulada para filmar sequências em família ou nas ruas, e outras mais “plásticas”, acinzentadas, para filmar o mundo executivo/político/científico. Trazendo também o sempre brilhante montador Daniel Rezende (aqui trabalhando junto com Peter McNulty), Padilha consegue criar sequências de ação notáveis, enérgicas e cruas como de costume, ao mesmo tempo em que nunca as torna confusas. Contribuindo para esses momentos agitados, a trilha sonora do excelente Pedro Bromfman imprime energia e intensidade à obra, ao mesmo tempo em que contrapõe temas mais modernos, beirando o estilo “Hans Zimmer”, com outros que evocam a trilha original do longa de 87. Ainda no quesito técnico, os efeitos visuais se mostram competentes ao quase nunca trair sua natureza virtual e ainda criar designs interessantes e bonitos para os robôs aqui vistos.

Mas como já dito, a visão de Padilha para o filme é muito mais crítica, e assim é curioso observar como o cineasta consegue trabalhar temas que já lhe chamaram a atenção anteriormente. Dessa forma, assim como em Tropa de Elite 1 e 2, a corrupção da polícia e das grandes organizações são evocados sem reservas, enquanto até mesmo questões mais intimistas voltam a ser exploradas pelo diretor, como a tristeza em que vive Clara Murphy (Abbie Cornish) pelo estresse constante de ser mulher de um policial, assim como vivia a esposa de Nascimento nos longas citados. A mídia também é vista com desprezo através do personagem de Samuel L. Jackson, como um apresentador de TV tão exagerado em seu patriotismo, moralismo e falso cinismo como o repugnante Fortunato de Tropa de Elite 2, ambos movidos por interesses menos louváveis do que aparentam. E, como não poderia deixar de ser no caso do diretor do maravilhoso Ônibus 174 (seu melhor filme), RoboCop ainda trás discussões envolvendo indivíduos completamente à mercê de instituições mais poderosas.

Os objetivos mais críticos de Padilha ficam claros desde a sequência inicial, quando mostra que seu maior tópico de discussão é na situação (ainda) imaginária envolvendo o uso de forças armadas guiadas por inteligência artificial em contraponto à boa e velha humana. Se isso já cria uma questão interessante a ser imaginada para um futuro que não parece muito distante, Padilha demonstra ser mais ambicioso (e corajoso) ao logo apresentar os EUA em toda a sua arrogância de buscar passar a impressão de que, com suas constantes invasões a outros países, estão na verdade fazendo um bem e visando a proteção mundial. Na verdade, os EUA são comprovadamente movidos substancialmente pela Indústria Bélica, que movimenta bilhões e bilhões de dólares na produção e comercialização de novos armamentos. O que, é claro, a tornaria sedenta para alcançar um mercado aparentemente infindável ao trocar soldados humanos por androides, e logo voltando seus olhos para as possibilidades de trocar a polícia do próprio país por robôs. O que cria um conflito mais intenso, pois o que faria o policial tomar decisões mais moralmente ambíguas no contexto diário? Onde estaria o elemento “humano” que faria com que sentisse que fosse errado atirar numa criança? O que é uma questão válida ainda mais se observarmos os níveis crescentes que a violência policial vem alcançando todos os dias.

Se mostrando ainda mais ambicioso, Padilha desmascara a hipocrisia da população norte-americana aqui analisada. A priori, a maioria é contra o uso de robôs nas forças policiais, o que obriga a organização OmniCorp à buscar trabalhar na possibilidade de um robô-humano. No momento em que RoboCop vai ser apresentado à população, no entanto, um erro de funcionamento lhe apaga as emoções e ele age simplesmente como uma máquina que combate o crime, e, ironicamente, é com isso que a população se fascina, demonstrando que a insistência no “elemento humano” nada mais era do que uma fachada para encobrir o verdadeiro fascínio das pessoas com a violência. Outra complexa mudança de perspectiva é trabalhada no terceiro ato, quando uma organização muda suas atitudes frente à uma ação de RoboCop/Alex Murphy de acordo com o termômetro da opnião pública.

O longa ainda se dedica à explorações mais filosóficas ao questionar sobre a verdadeira natureza de RoboCop. Ao mesmo tempo em que é um humano, é também uma máquina, e onde é que entram os sentimentos, as emoções, aquilo que caracteriza o ser humano? Algo que fica bem claro é o modo como Alex Murphy é manipulado como um objeto pela OmniCorp, com sua fisiologia sendo constantemente mudada, alterando, assim, determinados comportamentos controlados por processos internos, o que até gera uma discussão sobre ética científica. Mas em certos momentos, apesar de controlado, Murphy é arrebatado por sentimentos que incomodam seus supervisores, fugindo do protocolo ao agir de acordo com seus próprios anseios. Assim, Padilha parece indagar sobre a verdadeira natureza humana e até onde a própria biologia pode controlar o indivíduo.

Nesse contexto, Padilha aproveita muito bem a oportunidade para explorar o que a temática tem a oferecer. Imaginando o futuro dos estudos das neurociências nos implantes para amputados, agora acoplando partes mecânicas para membros ausentes, é interessante ver como o diretor é eficiente ao mostrar um paciente, agora com mãos eletrônicas, reaprendendo a tocar violão e, no processo, sentindo uma emoção profunda, que atrapalha o funcionamento de suas mãos, sendo então advertido pelo médico que “não deve sentir tão profundamente”, ao que o paciente retruca, sabiamente, que “para tocar, precisa sentir”. A dialética relação entre a razão e a emoção é aqui evocada (sutilmente) por Padilha, demonstrando inteligência ao trabalhar um tema tão caro às mais clássicas ficções científicas. E se tal temática é bem sucedida, muito se deve também à performance admirável de Gary Oldman como o Dr. Norton, numa atuação complexa que consegue evidenciar o fascínio que o cientista sente frente ao que estuda e à como pode manipular diversas variáveis através da neurologia, ao mesmo tempo em que se mostra encantado (e até incomodado) pela gama de sentimentos humanos que surge no tratamento de seus pacientes.

Aliás, RoboCop tem a sorte de contar com um excelente elenco secundário, desde ao trabalho um tanto histriônico de Samuel L. Jackson, até o charme comprado (evidente também no figurino colorido) que Jay Baruchel imprime ao seu diretor de marketing Tom Pope, passando ainda pelo pragmático e rígido militar interpretado por Jackie Earle Haley. Em contraponto à performance de Oldman, Michael Keatton cria Raymond Sellars, presidente da OmniCorp, através de um trabalho igualmente complexo que vai evidenciando a profunda psicopatia do personagem, sempre bom e frio estrategista para avaliar os impactos de suas considerações. E se a linda Abbie Cornish fica presa à uma personagem que só chora, pelo menos a atriz consegue despertar certa pena no espectador. Já no caso do protagonista, Joel Kinnaman faz o que pode para transformar Alex Murphy numa figura mais complexa, conseguindo sucesso apenas relativo, e esse "apenas" não é por culpa sua, mas mais pelo roteiro que, em toda sua ambição, nem sempre consegue balancear tão bem todos os seus elementos.

E assim, RoboCop não é uma obra perfeita, e parte disso se refere ao ritmo sempre exageradamente desenfreado que parece estar se tornando regra para blockbusters, algo que comentei em meu texto sobre Círculo de Fogo. Assim como no filme de Guillermo Del Toro, RoboCop parece pedir por mais calma para poder desenvolver alguns de seus temas, mas acaba que no fim isso incomoda muito pouco. O que incomoda um tanto mais é quando Padilha se empolga além da conta e investe em close-ups dolorosamente mal feitos, ou ainda quando cria, num flashback no início do filme, uma longa sequência de tiroteio com nenhum objetivo a mais a não ser mostrar ação.

Mas, no fim das contas, RoboCop de José Padilha é um longa exemplar que não busca apenas repetir os sucessos do filme original, mas trabalha para produzir suas próprias temáticas e desenvolver-se por si só, o que já é admirável, ainda mais quando os esforços são tão bem sucedidos como aqui.

domingo, 16 de fevereiro de 2014


Análise:

12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave / 2013 / EUA, Reino Unido) dir. Steve McQueen

por Lucas Wagner

Com três filmes no currículo, o britânico Steve McQueen vem criando obras complexas com olhar aprofundado sobre seus personagens, sendo ainda mais hábil ao explorar o universo infernal que os engloba. Em Hunger era a greve de fome do presídio Maze Prison, na Irlanda do Norte, e toda a miséria que o caracterizava, enquanto Shame é um perturbador estudo de personagem de um homem viciado em sexo, vivendo numa Londres impessoal e fria. Então, a óbvia preocupação que tive ao ver o Oscar homenageando com tantas indicações esse seu 12 Anos de Escravidão, era a de que o cineasta tivesse rejeitado sua abordagem visceral e se rendido ao melodrama fácil e simplista que tanto agrada a Academia. Felizmente, o resultado não poderia ser mais distante do temido.

Escrito por John Ridley a partir da história real de Solomon Northup, o longa enxerga a escravidão a partir de um ponto pouco explorado no Cinema: o dos negros livres do Norte dos EUA que eram sequestrados, suas identidades roubadas, para se tornar escravos no Sul. Assim, logo no início a obra explora as crueldades cometidas contra Solomon ao ser enganado e passar por um tremendo processo de despersonalização, que inclui um homem branco o agredindo e forçando-o a repetir a sua falsa nova identidade, incluindo novo nome e lugar de nascimento. Dessa forma, a violência gráfica que McQueen se utiliza ao longo do filme é essencial por permitir que o grau de desumanização seja sentido na íntegra pelo espectador, e que os absurdos dos abusos físicos que os brancos cometiam contra os negros sejam explícitos, devidamente notados.

Adotando um tom contemplativo, McQueen cria em 12 Anos de Escravidão uma obra que não tem pressa em contar sua história, preferindo descrever o funcionamento e a experiência daquele universo ao invés de investir em uma trama fechada específica. McQueen então não apenas se dedica a cenas de fortes punições físicas, como ainda investe em momentos reflexivos nos quais filma a natureza ao redor, cujas belas imagens contrastam com o horror vivenciado pelos escravos (trabalho fenomenal do diretor de fotografia Sean Bobbit, tanto nas filmagens externas como ainda ao envolver em sombras muitos ambientes internos), sendo mais curioso ainda a frequência com que o cineasta investe em planos que filmam o céu encoberto por árvores, numa representação de uma prisão ao ar livre, algo ainda notado pela mata fechada que circunda os limites da propriedade de Edwin Epps (Michael Fassbender). Com menos diálogos do que o comum nos dias de hoje, o diretor se dedica mais a filmar o dia-a-dia dos escravos, que pareciam encontrar muito raramente pequenos prazeres como ao cantar enquanto trabalham ou em criar pequenos objetos artísticos, e é sintomático que numa cena uma escrava faça bonecos com sabugos de milho enquanto, não muito longe, alguns de seus companheiros são açoitados, mal percebidos pela moça sorridente envolvida em seu passatempo e já tão acostumada à horrível visão ao seu lado. Mais cruel de tudo é enxergar como no filme qualquer resposta que um negro dê que contenha pelo menos um pouco de sua fome pela vida e desejo de não mais ser feito de animal venha seguida de uma punição tão violenta e absurda (filmada em suas dimensões) que permite que o próprio espectador compreenda a mudez daqueles indivíduos.

Investindo em longos planos estáticos para filmar a violência que os negros sofriam, McQueen é extremamente bem sucedido ao levar o espectador a um estado de angústia extrema, muito maior do que pelo mero sangue. O cineasta ainda se permite planos-sequências e planos longos que passeiam pelo ambiente, não apenas com objetivos estilísticos mas ainda de criar uma sensação de continuidade nas sequências que podem deixar o espectador aflito por uma noção de que tais momentos estão se estendendo demais, algo principalmente observável numa sequência particularmente pesada envolvendo os personagens de Chiwetel Ejiofor, Fassbender, Sarah Paulson e Lupita Nyong’o. Sempre fugindo do melodrama, o diretor busca sons diegéticos (do ambiente) da natureza durante boa parte do tempo, mas nunca ignorando a maravilhosa trilha sonora composta por Hans Zimmer, com seus tons fortes que trazem algo de selvagem para a obra, mas também com os tons melancólicos tão sabiamente usados por McQueen em momentos-chave para acentuar o drama, nunca criá-lo.  

12 Anos de Escravidão apresenta um interessantíssimo trabalho de escalação do elenco pela diretora de casting Francine Maisler e por McQueen, pois não hesitam em escalar atores brancos de enorme sucesso para interpretar homens violentos e implacáveis, decisão corajosa ao invés de se decidirem por desconhecidos que facilitariam a experiência do espectador ao assistir ao filme. Aliás, o longa se torna ainda mais complexo na sua análise do homem branco. Longe de cair na ignorância de tratá-los homogeneamente como monstros (ainda mais porque a escravidão, nessa época, se restringia ao Sul), o filme acerta ao criar diversos tipos de homens brancos, mesmo entre os sulistas, desde aqueles que concordavam vigorosamente com a escravidão até aqueles que eram contra. Mais sintomático, no entanto, é notar que mesmo aqueles tão mais humanos e contrários à escravidão, como os personagens de Brad Pitt e Benedict Cumberbatch (este que, mesmo contrário, mantinha escravos), se viam receosos e com medo quando chegava a hora de ajudar um negro, sendo que seus esforços iam apenas até certo ponto, e para ir além era preciso uma grande coragem, além de uma declaração verbal do perigo que corriam ao realizar tal ajuda, deixando o negro ajudado ciente do sacrifício que era feito por eles.

É claro que há todos esses tipos e há aquele de Edwin Epps, numa terceira parceria do ator Michael Fassbender com McQueen. Interpretado por Fassbender com uma fúria maníaca que deixa claro todas as evidências psicopatológicas do personagem, Epps apresenta um comportamento de verdadeira opressão em relação aos seus escravos (simples animais, segundo ele), não hesitando em puni-los de forma brutal, justificando suas ações (como se ele precisasse disso) com uma Bíblia na mão. Porém, Epps possui uma complexa paixão pela escrava Patsey (Nyong’o), que ultrapassa em muito a comum relação de prazer carnal entre amo e serva, pois Epps está sempre favorecendo-a e parece buscá-la com fúria apaixonada, ao mesmo tempo em que, como fica demonstrado quando a agride quando faz sexo com ela, se vê em claro conflito emocional, já que seus profundos sentimentos são depositados em “algo” que para ele não é humano, e o ódio que pode demonstrar em relação a ela não é mais que uma máscara para o ódio em relação a si mesmo. Aqui, o belo roteiro de John Ridley é genial ao explorar as contradições do “espírito” humano em relação a suas vontades e ao que realmente lhe é socialmente permitido, e como isso se evidencia em ambíguos comportamentos, principalmente no contexto da relação entre patrão e escrava.

Falando em “espírito” humano, 12 Anos de Escravidão é, acima de tudo que foi escrito nesse texto, um retrato da destruição de tudo o que compunha a “alma” do negro livre feito de escravo, Solomon. Sujeito alegre e realizado em sua família (apesar de certas dificuldades financeiras), Solomon se completa na sua Arte: tocar violino. Dono de uma personalidade forte que luta pelos seus direitos, o protagonista se choca com uma realidade diferente ao ser sequestrado, pois a partir desse momento não pode dar voz a sua própria existência, pois deve manter sua identidade em segredo, por motivos de segurança. Assim, quando lhe atentam para isso, ele, com voz forte, afirma que não se calará, que “prefere viver, não sobreviver”. Essa noção vai mudando, e Solomon é obrigado a ir abdicando cada vez mais de si, de tudo o que o tornava uma pessoa única e valiosa, para poder apenas sobreviver, lutando sempre para não cair no desespero. E se vai encontrando dificuldades em aceitar esse caminho, a ponto de, a princípio, ser capaz de agredir um de seus senhores brancos que estava sendo excessivamente abusivo contra ele, aos poucos o protagonista vai perdendo sua voz, perdendo totalmente sua identidade, e por isso cenas como o interminável plano que mostra Solomon com uma corda no pescoço e a ponta dos pés no chão tem tanta importância, pois assim McQueen força no próprio espectador o sentimento de vergonha, humilhação e dor que o personagem está sentindo como consequência de sua revolta. Todo esse processo culmina num sentimento de angustiante vazio, a ponto de Solomon enxergar o seu amado violino como não sendo mais uma parte de sua personalidade e, num momento de abissal desamparo, o destrói, como se só soubesse responder à sua situação com o ódio.

E assim, Solomon vai chocando mais e mais contra paredes e, se ousa tentar escapar, é surpreendido por mais uma cena de violência traumatizante. A desumanização do personagem chega a tanto que ele se rebaixa, em certo momento, a trair a confiança de um “colega” simplesmente para salvar seu próprio pescoço, algo que, convenhamos, seu “colega” faria do mesmo jeito. E são apenas em minúsculos momentos que o protagonista permite-se certo alívio, e por isso mesmo é que é tão comovente o longo plano que McQueen se utiliza para mostrar Solomon em meio de um grupo de negros cantando, enquanto o protagonista começa calado e aos poucos começa a cantar desesperado, como que num grito de ajuda, algo que o ator Chiwetel Ejiofor é genial ao retratar na gradual entrega do personagem ao canto alto e sofrido. Aliás, Ejiofor é um ator sempre brilhante (vide seus papéis em Coisas Belas e Sujas, Melinda e Melinda, O Gângster, etc) que só agora está sendo devidamente reconhecido, e sua composição de Solomon é linda, repleto de um sofrimento palpável através do grito sempre entalado na garganta de um personagem forte, mas que quando muito se expressa, depois de tanta repressão, é mais através de lágrimas do que de algo mais alto e potente.

Pois é profundamente triste ver Solomon se entregando à raiva por não ter nem como escrever, não encontrando via nenhuma para canalização de seu desamparo, algo que o asfixia, o tortura e, muito mais do que seus impiedosos senhores brancos são capazes, o transforma em um mero fantasma. E é assim que, ao final desse maravilhoso filme, percebemos não ter acompanhado uma visão simplista da escravidão, onde toda a repugnância se resume à dor física, mas que fomos obrigados a encarar algo muito pior, que certamente machucava muito mais aqueles seres humanos submetidos à selvageria de sua própria espécie: a dor existencial.

--Outras análises minhas de filmes dirigidos por Steve McQueen:
   
   -- Shame


  

sábado, 15 de fevereiro de 2014


Análise:

Philomena (Philomena / 2013 / Reino Unido, EUA, França) dir. Stephen Freas

por Lucas Wagner

A religião é uma das maiores expressões de hipocrisia da face mais sombria do ser humano. Se por um lado é uma forma de conforto para o desconhecido da vida após a morte, também é um controle aversivo que pode acabar com alguns dos mais deliciosos sabores da vida, forçando uma existência inferior e focada no medo e na culpa. Pior ainda é quando os sacerdotes e líderes dessas religiões se utilizam do desespero ontológico de seus fiéis para ganhar dinheiro, e isso vai muito além daqueles pastores que afirmam o “poder curativo” do dízimo.

O versátil diretor das obras-primas Alta Fidelidade, Coisas Belas e Sujas e O Segredo de Mary Reilly, Stephen Freas, consegue fazer desse seu novo filme, Philomena, uma obra capaz de alfinetadas desconfortáveis na religião e nos seus efeitos, ao mesmo tempo em que cria um doce drama de personagens, ao contar a história real de uma senhora que há 50 anos vem querendo saber sobre o paradeiro de seu filho, vendido pelas freiras de seu antigo convento.

O roteiro de Jeff Pope e Steve Coogan (que também protagoniza e produz o longa) é inteligente ao equilibrar o desenvolvimento dos personagens, o drama e as críticas que busca fazer. Assim, o jornalista em crise Martin Sixmith (Coogan) e Philomena (Judi Dench) são apresentados separadamente e com calma, e também sua aproximação é gradual, algo para o qual a eficiência de seus intérpretes é essencial. Coogan cria Sixmith como um sujeito cínico e arrogante, cuja tristeza que sente por ter perdido o seu emprego é expressa da forma que mais consegue demonstrar, ou seja, a raiva com pontadas de ironia. Dessa forma, é interessante notar seu comportamento na sequência da festa onde conhece a filha de Philomena, e como ele agride (com um falso pedido anestésico de desculpas) os sentimentos da moça ao classificar a história da mãe dela como “interesse humano”, o que para ele são histórias de pessoas estúpidas e alienadas; mais interessante é que, quando na intimidade de seu lar, quando não precisa mais vestir sua máscara para esconder sua fragilidade, ele finalmente considere a proposta de trabalhar um assunto de “interesse humano”. E Coogan é hábil ao retratá-lo em seu cinismo, fome pela verdade (que caracteriza um bom jornalista) e também os toques de melancolia que existem em seu olhar, ainda mostrando-se competente ao conseguir fazer com que as mudanças de comportamento de Martin soem naturais, quando ele passa das tentativas de agressão às crenças de Philomena para a compreensão mais respeitosa de como essas crenças são valiosas para a doce senhora.

Falando nela, o trabalho da sempre talentosa Judi Dench é de uma beleza descrita com uma palavra que raramente uso: fofura. Pois ela faz de Philomena uma velhinha muito fofa, a partir do fato de que cresceu em grande ignorância dos assuntos do mundo, a ponto de se maravilhar com pequenas coisas do cotidiano. Philomena pode ter sofrido nas mãos de freiras em seu convento, pois ficou grávida (“caiu em pecado”) e para isso foi forçada a trabalhar quase como uma escrava como sua penitência, mas ainda assim, demonstra firmeza em suas crenças, uma espécie de porto seguro para ela, que ainda permite a notável bondade com que trata as pessoas ao seu redor, como quando ela diz para estranhos randômicos que esses são “um em um milhão”. Mas a doce senhora é muito mais complexa, e Dench é genial ao retratar as dúvidas abafadas que mantém em relação às suas crenças, em especial no revelador e doloroso momento em que não consegue se confessar a um padre.

Vivendo um arco dramático sutil e tocante (e é curioso vê-la, a partir de certo ponto, conseguindo bater o pé contra os as agressões ideológicas de Martin), Philomena é uma personagem mais interessante ainda por representar alguns dos efeitos nocivos que a religião trás à vida de seus crentes. Ao falar de seu namorado de adolescência (que a engravidou quando ainda estava no convento), é possível notar certo sentimento de culpa na senhora, apesar de uma sensação de frescor e nostalgia que fica clara na suave entonação de Dench, como se estivesse se deliciando com essas “perigosas” lembranças. Mas porque ela deveria se sentir culpada? Como qualquer jovem, Philomena se sentiu atraída por outra pessoa, se sentiu bem em seus braços, ao ser beijada e adorada por alguém. Mas há algo claramente errado em sua fala: “Senti que algo tão bom não poderia ser certo”. Ora, então seria mais certo viver uma vida reprimida para se tornar uma velha rabugenta como a Irmã Hildegard de seu convento, que suprime sua angústia num orgulho construído de sempre ter mantido sua castidade? Além do mais, Philomena é uma velhinha claramente ignorante quanto a muito da vida, pois o mundo, sendo um lugar de pecado, também é um ambiente do qual pessoas “de boa índole” deveriam se afastar.

Mas onde o longa mais perfura com seu olhar crítico é o absurdo da atitude das irmãs. Enquanto Philomena é um exemplo de pessoa religiosa que enfrenta certos dilemas como não manter uma verdade escondida para si pois isso seria mentir, ou seja, um pecado, a grande maioria das irmãs do convento se utilizam de seus poderes e influência para lucrar, vendendo os filhos das noviças que “sucumbiram ao pecado” para pessoas ricas dispostas a pagar uma fortuna. O pior não é nem isso, mas o claro ódio que existe nessas freiras, em suas atitudes rígidas, pois elas realmente acreditam que as noviças que engravidaram fizeram algo tão ruim como matar outra pessoa, e que a dor que sentem ao ver seus filhos irem embora é uma forma justa (!) de penitência para o “mortal” pecado das jovens. Assim, elas torturam essas moças não apenas de maneira ideológica, mas ao permitir um tempo diminuto para que possam passar ao lado de seus bebês, tornando o inevitável momento da separação ainda mais doloroso. E elas ainda tem a audácia de mentir para os filhos ou as mães que surgem no futuro querendo saber um do outro, numa demonstração de maldade muito pior do que as que tanto condenam.

Talvez (e isso pode ser uma reflexão mais pessoal minha, mas o filme a despertou em mim) isso seja uma maneira que essas mulheres, tão machucadas pela culpa auto imposta, encontraram de lidar com essa realidade da vida religiosa que decidiram servir. E o mais triste é que esse tipo de gente é encontrada o tempo inteiro no dia-a-dia, como vermes do tipo Marcos Feliciano, que, ao invés de pregar a boa convivência entre as pessoas, exaltar a beleza que existe no amor entre dois seres humanos, preferem esmagar esses sentimentos com base em crenças que, ironicamente, afirmam pregar a bondade. Pois não há bondade no ódio tirânico desses religiosos extremistas, mas apenas escuridão, do tipo que pode ter surgido e sido cultivado tanto a ponto de fazer com que os naturais sentimentos que tendem a surgir na vida de uma pessoa (mas vistos como malignos pelas crenças religiosas) se tornem repulsivos, como uma forma desesperada e cruel que esses indivíduos encontram para “se purificarem”. E assim Philomena se torna mais uma vez um raro exemplo de ser humano que vive com crenças religiosas mas enxergam nelas os elementos de amor genuíno, e isso fica claro quando ela não se importa com o fato de que seu filho era homossexual, não mudando em nada seu amor pelo rapaz por conta disso.

Beneficiado pela sensível direção de Freas (atentem para a beleza do primeiro flashback de Philomena, quando a distorção de sua imagem provocada pelo reflexo de um espelho se torna uma maneira de demonstrar a liquidez incompreensível das memórias e ainda garante um belíssimo tom nostálgico), Philomena é um filme complexo e humano em suas propostas, corajoso ao encarar de maneira inteligente formas de comportamentos ambíguos, e mais ainda por nunca se definir totalmente por um lado, explorando aspectos válidos e outros nem tanto da religião e do ateísmo, criando assim uma obra de força e doçura incomensuráveis.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014


Análise:

Ela (Her / 2013 / EUA) dir. Spike Jonze

por Lucas Wagner

Ela se parece com um roteiro de Charlie Kaufman mas sem ser do mesmo. O que não é surpresa, já que o diretor/roteirista Spike Jonze iniciou sua carreira como cineasta dirigindo dois roteiros de Kaufman (Quero Ser John Malkovich e Adaptação), e mais importante, parece ter incorporado o que há de melhor em seu mentor, trabalhando temas similares (como o caos dos sentimentos) através de uma trama inventiva e peculiar (o romance entre um homem e um sistema operacional) com um protagonista doce e solitário. E Jonze faz um soberbo trabalho ao esmiuçar diversas outras reflexões, criando, no processo, o que é uma das mais belas histórias de amor contadas nos últimos tempos.

Ela me pegou pela mão e me guiou através de reflexões profundamente pessoais e ainda sobre a tão bela e singular natureza dos sentimentos humanos, tão complexos e delicados, que tem o atrevimento de depositar enorme parcela de sua força em outro ser, sobrecarregando-o com o peso da responsabilidade do que não é mais do que uma ideia que criamos. Se em certo momento da obra uma personagem diz que “O passado são histórias que contamos para nós mesmos”, o mesmo seria verdade se dissesse que o Outro é um personagem que criamos para nós mesmos, e por isso podemos falhar se não tivermos a delicadeza de aceitar que esse Outro é um universo extremamente dinâmico e singular e que não deve ser preso por nossas expectativas.

Se ousássemos a covardia de tentar explicar a “razão” dos sentimentos de Theodore (Joaquin Phoenix) por Samantha, o sistema operacional (com voz de Scarlett Johansson), talvez encontrássemos que ela lhe preenche um vazio justamente por ter acesso à diversos dados pessoais dele, permitindo assim uma aprendizagem sobre ele que o conforta em sua solidão, aumentada no seu conturbado divórcio. Samantha é uma forma de mulher dos sonhos, pois compreende e conforta Theodore. Não sendo uma mulher de carne e osso, pode-se afirmar que esse é um relacionamento “real”?

A resposta: por que não? Theodore pode ter alguns motivos racionais/psicológicos para ter se apaixonado por Samantha, e o fascínio que vai desenvolvendo por ela vai muito além do que o contato físico proporcionaria. Theodore se apaixona pela ideia que cria da mulher, pela ideia que aquele ser desprovido de corpo representa, e eu fico me perguntando se não é isso que realmente desperta as mais honestas e poderosas paixões na realidade. Afinal, o que é dizer que alguém ou alguma coisa é real ou não? Toda essa tal de “realidade” é um tanto quanto superestimada, pois no fundo o que importa é como nós nos sentimos, como pensamos, como cada variável nova que surge em nosso mutável ambiente vai modificar quem somos. Vivemos num diminuto espaço de tempo e o que existe é nossa realidade, e o que podemos fazer dela. Novamente evoco a fala do filme, “O passado são histórias que contamos para nós mesmos”, e reflito como tudo acaba sendo história, como nós somos constituídos de histórias e momentos que reformulamos em nossas memórias, tão passíveis de falhas e vieses que fica difícil se basear em fatos quando o que está em jogo são nossas próprias vidas. Nietzsche disse que “nós desejamos o desejo, não o desejado”, e esse desejo que desenvolvemos usando um desejado como fonte é mais uma história, ou, como disse no segundo parágrafo, um personagem que criamos, com base em nossos próprios anseios, temores e perspectivas.

Viajando mais um pouco (adoro quando posso fazer isso com um filme), somos criaturas capazes de sentir profundamente por diversos fatores, e quem pode dizer que tal sentimento é mais ou menos válido do que outro? Se eu escutar uma música qualquer que fala sobre guerras e políticos, e com ela me lembrar de algo completamente diferente, como de meu pai ou minha mãe? Meu sentimento é inferior? Ao ler, por exemplo, Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquéz, me senti profundamente ligado aos personagens, a ponto de chorar com a morte de alguns deles. Eles não existem e nem nunca existiram, mas eu os conhecia, ou melhor, conhecia a ideia deles, talvez a mera ideia que eu formava deles, e isso era suficiente. O próprio Spike Jonze chega a transmitir diretamente essas reflexões na questão das cartas que o protagonista escreve para terceiros em nome de terceiros. Pode ser que não tenham sido escritas por quem se espera que as escreva, mas isso não deixa que o sentimento que elas despertem em quem lê seja menos real.

Um relacionamento é pautado em ideias, e essas ideias são fragmentos da realidade que moldamos em nós mesmos. Assim, Samantha é muito mais do que a ideia que Theodore forma dela, e isso só é possível pelo tratamento que Jonze dá a ela, além de, é claro, o espetacular trabalho de voz de Scarlett Johansson (notem suas nuances, como quando pela entonação engasgada da constrangida resposta que dá à Theodore quando este fala que ela não sabe como é sentir), conseguindo transformar o sistema operacional em uma personagem extremamente complexa. Se deliciando ao descobrir o fascínio que sente pelo mundo e pelos humanos, Samantha é uma figura fascinante que demonstra ter capacidade de desenvolver sentimentos profundos, e se vê deliciada ao perceber-se capaz disso. E assim, o seu desenvolvimento por si só já proporciona reflexões maravilhosas, bem no esquema do livro O Fim da Infância, de Arthur C. Clarke, que exploram as ótimas oportunidades criativas da trama de ficção científica. Mas o mais da importante nesse desenvolvimento da personagem em relação à discussão que explorei até agora nesse texto é que: Samantha muda, seu “verdadeiro eu” passa a gritar tão alto que esmaga as ideias de Theodore, e ela se sente compelida a dar voz à essa vontade. Apesar de tão complexa, Samantha sempre foi e sempre será um sistema operacional de computador, e quem é o culpado por sentir-se como sente, e sofrer por isso, é o próprio Theodore, exatamente da mesma maneira como nos vemos decepcionados com pessoas que a princípio nos fascinam e depois nos decepcionam. É o choque de nossas ideias com a realidade.

E se todas essas reflexões funcionam tão bem é porque Ela ainda é um filme de romance maravilhoso. Os diálogos que Jonze cria entre Theodore e Samantha são repletos de percepções fascinantes e ainda dotados de uma honestidade tocante em como demonstram seus sentimentos. Assim também, Jonze se mostra sábio na adoção da reduzida profundidade de campo, já que assim isola Theodore do resto do mundo, mantendo-o muito mais em intimidade com Samantha. A direção com toques malickianas, os planos suaves com flares que dão uma sensação de nostalgia e romantismo palpáveis são essenciais também para que possamos ser guiados com delicadeza pela história, trabalho também da belíssima trilha sonora original. Delicadeza essa que Jonze também demonstra em flashbacks que mantém o som do “presente” enquanto vemos imagens do passado, conseguindo assim fazer com que nos sintamos exatamente como o personagem naquele momento.

Também é curioso que o diretor filme diversos indivíduos solitários cada vez mais apegados aos seus aparelhos eletrônicos. Estamos vivendo em uma sociedade em que as pessoas estão criando vínculos profundos com esses aparelhos, e ai chegamos em mais uma bela reflexão: e se esses aparelhos desenvolvessem sentimentos e percepções? Como lidaríamos se esses aparelhos criassem independência? Como toda boa ficção científica, Ela é genial ao explorar possibilidades hipotéticas, que ainda se expandem em conteúdos tão complexos como sobre como seria o sentimento de amor de um sistema operacional.

Mas no fundo mesmo Ela é um longa sobre relacionamentos, e podemos cavar reflexões ainda mais relevantes na observação de como o roteiro de Jonze é sábio ao perceber que os frutos que um relacionamento deixará nunca serão apenas ruins. Muito pelo contrário, pois cada interação que criamos com alguém vai fazer com que aprendamos mais sobre nós mesmos, com que alcancemos alguns degraus a mais na infinita escada que é o amadurecimento humano.

Com atuações maravilhosas não só de Johansson, mas também de Joaquin Phoenix e Amy Adams, Ela é uma obra prima que trata com maestria de situações tão mutáveis como a natureza dos sentimentos, a manipulação da “mente” humana sobre si mesma e a realidade, fazendo dessa não o que a palavra pode significar de fato em um dicionário, mas um conceito volátil e complexo que se adapta a nossas necessidades mais imediatas.

Um adendo (01/11/2014):

É uma experiência interessante revisitar o filme de Spike Jonze e reler, tanto tempo depois, o que escrevi sobre a obra. Lembro-me do turbilhão de emoções que o longa me provocou e da dificuldade que tive em analisá-lo racionalmente, recorrendo mais à linguagem poética do que qualquer outra, simplesmente porque se adequava mais ao modo como, bem, fui tocado pelo filme.

Revisitá-lo me fez ver que, se hoje fosse escrever o texto, seu conteúdo seria o mesmo, já que todos os elementos que tanto admiro continuam lá, mas a forma seria completamente diferente. Rever um filme, ainda mais um que nos toca tão intensamente, nunca é uma experiência idêntica à vez anterior que o assistimos. Dado que boa parte do que sentimos ao apreciar uma obra de arte parte de nós mesmos, de nossas vidas, e como constantemente mudamos (evoluímos?) é bem provável que sejamos pessoas diferentes.

Assim, 10 meses depois que assisti "Ela" no cinema, agora o vi em Blu-Ray, e consigo fazer uma análise perfeitamente racional do filme. Cínica até. Um cinismo que, no entanto, não impede que toda a poesia da obra seja perdida, mas apenas posso perceber melhor como as nuances da construção do roteiro de Jonze são cuidadosas ao propor diversas ideias, muitas das quais acabam se referindo ao comportamento humano frente a sentimentos como o de amor/paixão, e como a existência não é outra coisa se não um ato inerentemente solitário, e nas nossas parcas (e dolorosas) tentativas de acabar com essa solidão só fazem reduzir, sem esgotar, a fonte de carência que sentimos, e que ousamos depositar, em forma de expectativa, nos ombros de outras pessoas que são criaturas singulares por si próprias, elas mesmas um infinito Universo de possibilidades, que não devem se prender a nós ou o que esperamos deles. Ainda assim, o que vemos é como nossas expectativas são algemas nos braços daqueles que dizemos que amamos. E nós amamos, e talvez por isso mesmo seja tão insuportável, intragável até, ver nosso objeto de amor evoluindo, ciente de que é um Universo separado de nós. Se ver livre. Afinal, além de solitários, somos egoístas.

Por breves momentos, no entanto, conseguimos sair de nosso mundo e perceber que o que é tão insuportavelmente belo no ato de se relacionar é a constante dialética de construção/destruição que sofremos ao nos chocar com outras vidas. Isso não é apenas lindo, mas inerentemente doloroso. E talvez daí venha sua beleza.

Enfim, "Ela" é meu filme favorito desse ano até agora (lançado no Brasil) e acho difícil ver algum outro tomar seu lugar. E mesmo conseguindo analisá-lo de modo bem mais racional, ainda me delicio ao perceber como, assim como as cartas que Theodore escreve de terceiros para terceiros, Jonze discorre longamente sobre a minha vida, me fazendo reanalisá-la e perceber coisas que, sem a Arte, dificilmente perceberia. Creio que não estou sozinho nesse pensamento.



Análise:

Short Term 12 (Short Term 12 / 2013 / EUA) dir. Destin Daniel Cretton

por Lucas Wagner

Acompanhando o cotidiano de um lar que acolhe crianças e adolescentes considerados como que em estado “de risco”, Short Term 12 é um distinto longa metragem onde o mais profundo e dolorosamente humano fica estampado no rosto de seus jovens e já tão sofridos personagens, conseguindo a proeza de nos aproximar daquelas frágeis criaturas de uma forma tocante e sensível, mas sempre escapando das armadilhas melodramáticas.

Dirigido por Destin Daniel Cretton (com roteiro dele também, baseado no curta que dirigiu em 2008), Short Term 12 busca certa crueza em sua estética, sempre filmado com câmera na mão e numa fotografia granulada, alcançando assim um naturalismo/realismo que são importantes para que o longa funcione e não caia no melodrama. Assim, o lar cujo nome é o título do filme, é retratado desde o início como um ambiente difícil e imprevisível, quando quatro assistentes sociais estão conversando tranquilamente e logo são surpreendidos por um garoto correndo seminu tentando escapar a todo custo (e fora dos limites do estabelecimento, os assistentes sociais não tem direito de tocar nos jovens). Durante todo o longa, situações agradáveis podem ser bruscamente interrompidas por uma emergência (se alguém fugiu, tentou suicídio, etc), mesmo que o “interno” que causou o problema da vez estivesse sorrindo e brincando minutos antes. Quando algum dos jovens se descontrola e se entrega à um desamparo profundo, ficando violento, os seus gritos ecoam por todo o estabelecimento, assustando os outros garotos e garotas, algo que o diretor é hábil em retratar numa sequência específica.

Mas se Short Term 12 prima por essa crueza que não romantiza a realidade que mostra, o roteiro e direção de Cretton em nenhum momento busca criar um longa apenas aversivo, mas apresenta uma sensibilidade impressionante no carinho que demonstra com seus personagens. A estratégia visual de Cretton é, nesse sentido, singular por buscar, muitas vezes, posicionar sua câmera de modo a filmar através de portas abertas, com a ação acontecendo por trás dessas portas, assim prezando pela privacidade de seus personagens, dando-lhes espaço, numa bela demonstração de respeito, ainda mais impressionante quando filma duas personagens num momento lúdico através de uma pequena janela, afastando-nos, nós, intrusos, desse momento tão íntimo. Mesmo assim, Cretton não se acanha ao lançar mão de diversos primeiros planos, fechadíssimos, no rosto de seus personagens, focando principalmente seus olhos (de maneira direta, de vez em quando, através de sutis close-ups) e utilizando uma profundidade de campo reduzidíssima, isolando aquelas pessoas do resto do mundo. O interesse que o diretor tem pelos olhos e rostos de seus personagens se justifica pois esses tem muito a dizer, desde os sempre marejados olhos de Marcus, o olhar cabisbaixo de Sammy, os sempre sérios olhos de Grace ou ainda o lápis nos olhos de Jayden.

Sempre atento, o longa prima por um design de produção sutil e inteligente, que espalha informações a mais sobre os personagens, como as fotos que decoram o quarto de Luis, mostrando imagens suas enquanto criança, sua avó (dedução minha), seus pais, ambientes nostálgicos, etc, conseguindo assim suavizar um personagem que, de outra forma, seria somente aversivo, já que está sempre buscando causar confusão. Ainda no âmbito técnico, a trilha sonora de Joel P. West acerta na criação de tons suaves que em nenhum momento chamam a atenção para si mesmos ou tentam forçar o espectador a chorar.

E Cretton é não apenas um diretor inteligentíssimo, mas ainda é um autor primoroso, já que seu belo roteiro apresenta personagens sempre palpáveis, “reais”, cuja sensibilidade de uma vida destroçada fica evidente em gestos de carinho e consideração que hora ou outra surgem. Criando sequências riquíssimas, o diretor/roteirista explora os profundos sentimentos que podem surgir através de uma canção de hip hop ou de uma triste história infantil, talvez as únicas formas de comunicação sincera que esses jovens criaram. Os assistentes sociais e psicólogos do estabelecimento também são retratados de forma tridimensional, já que Cretton é capaz de demonstrar imenso cuidado ao, por exemplo, observar os erros rudes que um assistente social novato comete, frutos de sua insegurança e despercebida arrogância, mas que vão melhorando com o tempo. Ainda, o diretor investe em planos que mostram esses assistentes interagindo de forma descontraída com os jovens, e por vezes quebrando pequenas regras do estabelecimento num sinal de cumplicidade com seus “internos”. Não que eles não sofram, pelo contrário: vivem em constante tensão, balanceados pelo sorriso que às vezes veem no rosto dos garotos e garotas que ajudam, ou quando veem que estes obtiveram algum sucesso em suas vidas.

O que nos trás à personagem de Grace, a protagonista. Sendo assistente social como uma forma de lidar com seus obscuros tormentos do passado, Grace assume uma postura sempre rígida e disciplinada, talvez como um mecanismo de defesa contra a imprevisibilidade das atitudes dos “internos”, estando sempre pronta para agir com firmeza, mas também como uma forma de erguer uma armadura de si mesma contra si mesma. Ainda assim, a moça demonstra carinho profundo pelas vidas que tem nas mãos, se emocionando ao ver os “internos” alegres, quando podem esquecer um pouco de seus problemas, enquanto ela mesma busca proporcionar esses momentos, como na maneira lúdica que os acorda, maneira esta que, curiosamente, evidencia também um pouco de sua rigidez, afinal, ela nunca pega leve quando é para dar uma bronca, lição ou uma ordem. O que é impressionante se contarmos que é tão nova e, ela mesmo, uma jovem em situação de risco, cujo tratamento atrasado (ela é maior de idade) vem na forma de identificação com outros, buscando ajudá-los.

Pois Grace é uma mulher trágica e extremamente complexa, apresentando uma notável dificuldade e resistência em se comunicar com os outros, até mesmo com o namorado, cuja paciência e compreensão são vitais para a protagonista. Ela teme sair de sua fortaleza, um temor profundo e sincero, ao mesmo tempo em que busca, com certa melancolia, colocar um pé para a fora para explorar as possibilidades de vida que poderiam existir caso se abrisse mais. Assim, por mais ambivalente que se mostre ao longo da obra, nunca se torna uma figura caótica ou incompreensível, mas sempre a vemos como alguém que insiste em abafar seu próprio grito de socorro. E assim, Cretton mostra-se mais uma vez um artista sábio através do simbolismo visto no terceiro ato, quando Grace perfura, a pancadas (e não sem certa dificuldade), o parabrisa de um carro, numa representação de sua luta para perfurar sua própria armadura.

E falar sobre Grace, ou mesmo sobre Short Term 12 em geral, sem exaltar o trabalho da atriz Brie Larson seria um erro imperdoável. Já tendo demonstrado certo talento em obras como Anjos da Lei ou The Spetacular Now, a moça aqui prova que merece mais atenção e que simplesmente é uma das atrizes mais interessantes em atividade, com sua soberba composição de Grace. Retratando a firmeza da personagem através da entonação de voz e do semblante sempre fechado, Larson deixa que momentos de certa fragilidade sejam entrevistos, enquanto deixa ainda evidente a força monstruosa que a personagem está fazendo para não demonstrar fraqueza, como na sua consulta ao médico no início do filme. Em outros momentos, a atriz é hábil ao demonstrar o choque da protagonista quando chega a limites que não conhecia, ou ainda é delicada o suficiente em suas risadinhas marotas que de vez em quando solta, num divertimento que parece não notar. E, é claro, o olhar mais suavizado que a atriz usa em momentos específicos da obra, olhares que transmitem uma noção de fragilidade maior, ou mesmo de identificação e comoção, notado também no sorriso que muitas vezes não contém diante da alegria de ver um dos jovens do lar se sentindo bem. Uma performance digna de prêmios, diga-se de passagem, algo que também poderia ser dito sobre praticamente qualquer membro do elenco.

Short Term 12 é, então, uma obra profundamente humana e delicada, demonstrando um respeito e interesse singulares por tudo o que diz respeito àqueles personagens, figuras que podem ser encontradas em qualquer cidade, em qualquer bairro, talvez. No fim desse maravilhoso filme, então, o que fica é o forte desejo de poder abraçar cada um daqueles seres humanos tão belos e complexos, buscando consolá-los quando o chão some sob seus pés, dizendo pelo menos que: “tudo vai ficar bem, você é especial e estou aqui para o que você precisar”.