sábado, 22 de novembro de 2014


Análise:

Jogos Vorazes – A Esperança Parte 1 (The Hunger Games – Mockinjay Part 1 / 2014 / EUA) dir. Francis Lawrence

por Lucas Wagner

Um filme que delineia com precisão o seu tom narrativo logo nos primeiros cinco minutos de projeção, merece respeito. É como o resumo de um artigo científico, que prepara para o que vem a seguir. Em Jogos Vorazes – A Esperança Parte 1, somos lançados (ou relançados) naquele universo com um plano fechado no rosto de Katniss, que já acostumamos a ver como alguém forte e pragmática, mas aqui entregue ao desespero e choro. Depois de um curto passeio claustrofóbico pela sua nova rotina, ocorre um fade out, e as letras revelando o título surgem devagar, quase cansadas, sob uma trilha triste. E pronto: sabemos perfeitamente que tipo de filme veremos nas duas horas seguintes.

Jogos Vorazes nunca foi um blockbuster comum. Sempre ambicionou mais, mesmo que tropeçasse diversas vezes, especialmente no primeiro filme. Aqui, no entanto, o cineasta Francis Lawrence prova sua pouco reconhecida maturidade enquanto profissional ao evitar entregar uma narrativa explosiva que tantos poderiam desejar, e cria um trabalho que remete ao que David Yates fez nos dois últimos e impecáveis capítulos da franquia Harry Potter, em seu tom triste e contemplativo. E mais: além de evitar explosões e correrias, Lawrence (e sua equipe, é claro) faz da divisão desse último livro em dois não um meio de ganhar dinheiro e encher lingüiça (cof – Crepúsculo – cof), e o ritmo pausado da obra vai muito além de preencher o tempo, mas é o próprio modo como o filme respira, como sua introdução busca explicitar.

O cineasta mergulha seu filme nesse tom contemplativo, apocalíptico que se transforma num profundo estudo daquele universo, dando um rumo novo a uma franquia que já parecia demasiado confortável em seus moldes. Os planos são longos, a câmera geralmente fica na mão, gerando uma espécie de desconforto coadunado pelos planos fechados nos rostos sérios e cansados dos seus tristes personagens, que são trespassados pela melancolicamente eficaz trilha sonora de James Newton Howard. O que não impede que o diretor demonstre competência nos momentos de tensão e, em especial no terceiro ato, revela segurança na condução de uma angustiante sequência que coaduna a ação em dois espaços físicos diferentes porém interdependentes.

Mas Lawrence demonstra a mesma sensibilidade que tinha tornado seu Eu Sou a Lenda uma obra tão marcante, e novamente remete a Yates e Relíquias da Morte (parte 1, em especial) ao demonstrar parcos momentos de alívio para seus personagens, quando conseguem encontrar algum pedacinho de realidade (lúdica, que seja) que não enxote o sorriso, e assim A Esperança Parte 1 ganha trechos de bonita e suave melancolia quando Katniss e Gale, num raro minuto de descanso, observam um lago, dividindo carinho, ou quando um grupo de pessoas brinca com um gato e uma lanterna. Além disso, o roteiro merece pontos pelo respeito aos personagens por permitir que esses compartilhem seus sentimentos, suas dores e seus cuidadosos fiapos de esperança, e não estejam a todo momento turbinados para objetivos racionais e abstratos.

E ver Katniss, outrora tão resiliente, em uma realidade que parece sugar suas forças, talvez seja o elemento mais comovente de A Esperança Parte 1. Não que agora a moça esteja passiva, mas é impossível não perceber seu cansaço, sua fadiga preenchidos por um profundo sentimento de desesperança, medo e indignação, sendo esse último talvez o único aspecto que ainda a mova em suas bases revolucionárias. Se tinha demonstrado louvável pragmatismo em suas atitudes no capítulo anterior, aqui essa postura parece simplesmente inviável, e sua dor pela percepção/medo de estar perdendo Peeta (em todos os sentidos) é palpável, o que não impossibilita que sinta o mesmo pelo personagem de Gale, chegando a um momento de puro desespero que solta uma frase repleta de dor, no terceiro ato (por motivos de spoiler, não a revelo).

O fato de estar sendo pressionada a agir de uma forma que soa manipulativa, forçada, além de passiva, sendo novamente tomada por joguete na mão de terceiros, é uma variável importante para compreender seu comportamento; só que, se anteriormente suas reações ao que lhe impunham vinham tomadas de rebeldia calculada, aqui ela parece apenas uma sombra de si mesma, algo que se torna compreensível se atentarmos para o detalhe de que ela está sendo manipulada, de certa forma, para seus próprios objetivos. Ainda assim, manipulada, presa num jogo midiático fantasmático e confuso. Porém, mesmo diante desses fatos, Katniss demonstra sua força e imponência em diversos momentos, em especial quando se vê frente a frente com berrantes atrocidades cometidas pela Capital ou mesmo por seus colegas.

Mas é justamente no seu aspecto de jogo midiático que A Esperança Parte 1 ganha mais pontos. Se nos dois primeiros capítulos, a franquia tinha demonstrado uma sábia maturidade ao lidar com temas complexos envolvendo uma cruel sociedade hedocapitalista controlada/manipulada pela mídia, aqui a obra compreende um tema um tanto diferente (mas que não exclui o de antes, é claro) e foca-se na guerra política entre os Distritos e a Capital, cuja arena verdadeira é a mídia, e assim, tanto os “mocinhos” como os “bandidos” jogam a partir de imagens, para comprar “seguidores”. E o que é a mais importante variável para uma análise comportamental do estado atual de Katniss, ou seja, de sua despersonalização, é compreender que a protagonista importa para seus “líderes” como um fator imagético, como um símbolo para a revolução, e não como definitivamente uma líder.

Assim, apesar de toda sua força, vemos a protagonista emocionalmente desgastada por uma forçada alienação. E Jennifer Lawrence entrega, em uma carreira já tão fascinante, aquela que é uma de suas melhores performances, numa composição extremamente complexa envolvendo todas essas variáveis que comentei e como a modelam, assim como leva em consideração o histórico de força da personagem para construí-la de modo a variar com maturidade entre os momentos mais passivos, confusos e potentes da moça.

Apesar de ainda não ser uma obra perfeita (por motivos um tanto ínfimos, devo dizer), A Esperança Parte 1 é o mais perto que a franquia chegou da excelência, explorando toda a ambição e complexidade possíveis do que, além de uma obra de entretenimento, é um baço espelho metafórico da realidade.

P.S: Como dói ver Philip Seymour Hoffman...

- Meus textos dos outros filmes da franquia:
  









quinta-feira, 20 de novembro de 2014


Análise:

The Babadook (The Babadook / 2014 / Austrália) dir. Jennifer Kent

por Lucas Wagner

Sou amante confesso do Cinema de horror, desde obras lapidadas como O Iluminado, passando pelo grotesco de um O Massacre da Serra Elétrica e até algo deliciosamente porco como Fome Animal. Mas são tempos difíceis para pessoas como eu, e por mais que obras como Invocação do Mal e O Espelho representem ótimos esforços, ainda estão longe de serem filmes grandiosos. O que nos trás a esse The Babadook, onde encontro a oportunidade de dizer, depois de tantos anos, que me deparei com uma obra-prima do terror, onde fiquei não apenas intelectualmente fascinado, mas tão aterrorizado que cheguei a um estado de pura Graça.

Baseado no excelente curta de 2005 também escrito e dirigido por Jennifer Kent, o filme conta a dolorosa história envolvendo Amelia (Essie Davis), para quem sete anos de distância da morte do marido não foram minimamente eficazes para aplacar sua dor. Vive com seu filho, Samuel (Noah Wiseman), cuja fixação por destruir “monstros” em sua casa apresenta um potencial de vida problemática, até que se depara, junto com sua mãe, com a tal figura do título que parece não querer ficar limitado pelo livro infantil que leva seu nome...

Sendo seu filme de estréia como diretora de longa metragens, é fascinante perceber a segurança que Jennifer Kent apresenta no comando da narrativa, criando uma estrutura que prima pelo aspecto enxuto, com uma hora e meia perfeitamente aproveitada com informações importantes transmitidas de forma sutil. Assim, os dez minutos iniciais são usados apenas para o estabelecimento da atmosfera que permeia a vida daquelas tão frágeis figuras, e a fotografia pautada no cinza azulado de Radek Ladczuk não falha em transmitir a constante sensação de melancolia, assim como os ambientes externos predominantemente vazios e ricos em terrenos baldios dizem muito com pouco, algo que não muda muito, por exemplo, na casa de Amelia, grande demais para duas pessoas, com móveis demasiado afastados um do outro. A própria arquitetura da casa parece ganhar um sentido simbólico, e não demora para que o porão, enterrado no subsolo, adquira uma função narrativa demasiado freudiana.

Kent demonstra domínio na construção do horror, e não se desespera para amedrontar o espectador, fazendo um uso parcimonioso da excelente trilha sonora de Jed Kurzel, e preenchendo os espaços vazios com um silêncio angustiante, além de jamais recorrer a sustos fáceis com animais de estimação ou algo do tipo. O próprio modo como organiza as tomadas também é devidamente pensado, e em certo momento é quase impossível evitar um leve ataque cardíaco apenas com o posicionamento de um cabide no quarto, colocado em tal ponto do quadro que o espectador logo lhe dirige a atenção sem que a diretora lance mão de algum recurso como close ou trilha. Interessante também como usa regras básicas, mas geralmente muito mal utilizadas, quanto a contar visualmente uma história, e aproveita o simples uso de uma porta aberta como possibilidade de criar tensão, pelo fato de que o espectador, como dita a própria Psicologia, ficar esperando que algo apareça através daquela abertura.

O que causa maior horror, no entanto, é o desconhecido, e Kent compreende isso também. A figura do monstro, o Babadook, é mostrada apenas o suficiente para despertar a imaginação, e os momentos em que a amplitude de sua estrutura demoníaca se faz ver são cuidadosos ao mais sugerir o mal do que evidenciá-lo. Aqui, Kent obedece ao mestre do terror H.P Lovecraft, e remete a ele explicitamente quando, num momento de contato direto entre Babadook e os personagens, opta pela câmera subjetiva no monstro, nos forçando a ver no rosto de Amelia o horror por algo que, se víssemos por nós mesmos, seria com certeza menos interessante do que as imagens que a ignorância pode, inefavelmente, formar.

Para além disso, Kent prima na sua capacidade de nos colocar na perspectiva psicológica de Amelia. O design de som se torna, então, uma ferramenta importante para a diretora, que o altera em graus significativos para sugerir momentos em que a protagonista se encontra mais ou menos introspectiva, o que, a partir de certo momento da projeção, coaduna com a imersão na loucura que a cineasta busca. Para esse mergulho, ela ainda faz um excepcional uso de lentes que distorcem o campo, nos forçando a uma visão na perspectiva de Amelia, desfocada e dilacerada, típica do campo visual de uma pessoa com distúrbios psicológicos, ainda alterada quimicamente pelo uso de tranquilizantes, num sinal de tato de Kent que reverbera no fato de que as alucinações (visuais e auditivas) e aparições vem sempre em cenas quebradas por cortes secos, como se aquele evento tivesse acontecido apenas por um breve e dúbio segundo, e mal tivéssemos tido tempo de perceber que percebemos algo. A atmosfera delirante/alucinatória é, de todo, digna de aplausos pela sua inteligência, e a narrativa parece até mesmo se estender no tempo, como num estado de sonho (ou pesadelo), que ganha conotações surrealistas com os filmes de Georges Meliés que passam na Tv de Amelia, com um background contendo... bem, vejam o filme.

The Babadook não se acanha ao abraçar ambições ainda mais elevadas do que “apenas” assustar, e ganha contornos de uma intensa jornada existencial. Desde a primeira cena somos jogados no mundo particular da protagonista, quando revive, em sonho, o momento da morte do marido, chamada de volta à realidade pelos gritos do filho. Amelia é uma mulher obviamente deprimida, basta olhar para seu rosto, seus cabelos desgrenhados e olhos vazios, compostos de sentimentos complexos quanto a si e ao filho. Devastada pela morte do marido, ocorrida no momento em que a levava ao hospital para dar a luz a Samuel, Amelia é movida pela culpa, e não uma do tipo simples, mas que engloba a morte do amado e as dificuldades psicológicas do filho, assim como uma falsa noção de incompetência enquanto mãe.

Essie Davis (atriz até agora muito fraca) revela-se à altura de tão complexa personagem, e representa com maestria e intensidade assustadoras todas as camadas de Amelia. Optando, a princípio, por uma voz que quase não deixa a boca, Davis já estabelece a claustrofobia inerente à vida da protagonista, sempre presa a si mesma, parecendo encontrar um estranho prazer apenas no seu trabalho, que muito diz sobre ela: é enfermeira em um asilo para idosos, em particular na ala de demência. Parece identificar-se com a figura de senhoras solitárias e entregues ao oblívio, algo que Kent busca reforçar no plano onde a protagonista observa, sorrindo, sua vizinha idosa. É como se Amelia enxergasse algo de seu futuro, que acalenta com carinho, talvez por um desespero próprio de sua depressão, já que mesmo a visão de um jovem casal apaixonado lhe causa visível aflição.

De uma mulher com todas essas características não se espera um amor incondicional ao filho. Aliás, Kent atenta para como a criança é um fator perturbador, logo no início do filme, quando observa o incômodo que esta causa enquanto Amelia tenta dormir. Mais uma vez o desempenho de Davis é fundamental, já que a atriz permite que, ao mesmo tempo que notemos o desconforto provindo da existência de Samuel, possamos perceber que a mãe o ama de verdade. Sem isso o filme afundaria, pois seu ponto central é arco dramático vivido por Amelia, e se a víssemos apenas como uma pessoa problemática, qualquer ligação emocional com a obra enfrentaria problemas.

E assim, o resto desse texto, temo eu, talvez deva ser lido apenas por quem já assistiu ao filme... e aqui começo minha análise mais aprofundada:

What’s Underneath?

O que acontece em The Babadook é real? Ou é fruto de uma severa psicopatologia de Amelia? Kent permite as duas leituras com igual competência, pois, de qualquer forma, sua perspectiva subjetiva de Amelia casa com a manipulação que o suposto monstro realiza na protagonista. Mas, se buscarmos uma análise racional, o que o Babadook representaria, psicologicamente, para Amelia, a ponto de servir como veículo para sua alucinação assassina?

Ora, os elementos se esbanjam em riqueza simbólica: notem primeiramente a natureza do monstro, uma figura que vive em um livro infantil mas que é dotada de malignidade. É uma condição ideal, que já desperta um medo primitivo em qualquer ser humano, dada a ligação perversa entre o puro e o demoníaco, ligação esta que desperta em igual medida pânico e fascínio. A partir daí, Kent tem o cuidado de estabelecer os primeiros sinais de aparecimento do Babadook com momentos de excitação sexual de Amelia, sendo que o sexo, com sua função de prazer e de reprodução, trás consigo um enorme elemento de culpa, já que foi essa segunda função do sexo que, no fim das contas, levou à morte de Oskar (o marido), pelo menos dentro da culpa da protagonista, e não é por mero acaso que os insetos apareçam aos montes através de uma fenda na parede, já que essas criaturas estão simbolicamente ligadas à sensação de excitação sexual (o formigamento do desejo, como dizem). Essa condição que liga o Babadook a Oskar não é em nenhum momento mistério para o espectador, já que o homem aparece como encarnação da manifestação mais de uma vez durante o filme, e, a princípio, são suas roupas que servem como os sinais primordiais da presença de Babadook. E é no porão que essa ligação primeiramente é feita.

O porão... o lugar onde Amelia guarda as dolorosas lembranças do falecido, e onde Samuel, garoto carente de pai, realiza muitas de suas brincadeiras, para o desgosto da mãe. O menino, por sinal, é um personagem extremamente complexo, desde sua patológica busca de uma figura paterna através de monstros fantasiosos, dos quais procura proteger a mãe, com medo de que lhe causem mal. É um caso de edípico peculiar em sua estrutura fragmentada e óbvio atraso de desenvolvimento psicossexual. O garoto não é cego para perceber, mesmo não conscientemente, a dor que a ausência do pai causa na mãe, e por mais que ele mesmo sinta essa dor, não quer ver Amelia triste, e em seu aparente mundo de fantasia, procura concertar a realidade. E é esse aparente mundo de fantasia que acaba se chocando com o real, no momento em que sua mãe é levada por essas mesmas fantasias, construindo seu próprio sobrenatural a partir do que lhe é apresentado pelo filho, que, se a priori nunca tivesse existido, permitiria que Amelia ainda estivesse com o marido.

The Babadook é, então, uma história profundamente emocional envolvendo um complexo relacionamento entre uma mãe e seu filho, traumatizados por eventos passados que lhes despertam culpa, mesmo que essa, objetivamente falando, não deva existir. A batalha interna de Amelia que a leva a se tornar uma espécie de Jack Torrance contra Samuel permite que, de alguma forma, entre em contato com essa entidade assustadora que a leva a assumir desejos demoníacos de destruição do filho e de si. Seria impossível que ela assumisse-os por si mesma, por isso Babadook é um veículo perfeito para ela se encontrar, e também para que o próprio Samuel possa assumir o tão desejado papel de herói e salvar a mãe, salvando, talvez, a si mesmo.

E é por isso que quando o sobrenatural toma conta e a explicação racional se complica, no fundo não importa se conseguimos decifrar ou não. Afinal, o que começou como uma narrativa de horror termina como uma metáfora psicológica: realidade ou alucinação, o Babadook, assim como no curta de 2005, assume um significado como o lado mal, podre, sujo, doente de Amelia (e de Samuel também), os impulsos agressivos e perversos que devem ser tratados com carinho. Carinho? Sim, claro! Em primeiro lugar por medidas de segurança contra sua revolta; e em segundo, e mais importante, porque ele é uma parte daqueles personagens, uma parte que ficará trancafiada no porão (o inconsciente), sendo cuidada para de lá não sair. Deve ser acalentada em sua existência, reconhecida e cuidada, desde que fique no porão. O mesmo porão onde fica o fantasma (literal e/ou metafórico) de Oskar...

Portanto, The Babadook funciona como um horror aterrorizante, um complexo estudo de personagens e um doloroso drama familiar, além de deliciar com diversas homenagens a clássicos. Um filme que pode muito bem se destinar ao hall dos mais fascinantes exemplos do gênero.

domingo, 16 de novembro de 2014


Análise:

Debi e Loide 2 (Dumb and Dumber To / 2014 / EUA) dir. Peter e Bobby Farrelly

por Lucas Wagner

Não é da boca pra fora que afirmo ser Debi e Loide um marco cinematográfico importante na década de 90. Em uma época cada vez mais consumida pelo câncer do “politicamente correto”, Peter e Bobby Farrelly tiveram a ousadia de fazer um filme que abraçava com “amor” o mais profundo do humor negro, criando no processo o que é uma aula de uso competente desse tipo de comédia. Fazendo piada com duas pessoas com óbvios problemas cognitivos, passando por diversas situações que fazem qualquer espectador questionar seu próprio bom senso por estar rindo daquilo tudo, Debi e Loide ladrilhou o caminho para reviver o humor negro, permitindo a existência de diversas comédias marcantes. O que, obviamente, fez com que essa continuação fosse tão aguardada.

O resultado, felizmente, é de qualidade, e Debi e Loide 2 em nada se acovarda frente aos absurdos do original, e tampouco ultrapassa a tênue linha do hilário para o ofensivo, mantendo-se assim no mesmo equilíbrio que, em 1994, tinha dado o tempero essencial para criar um filme tão badalado.

A chave do sucesso consiste basicamente em como os personagens principais são construídos. Harry (Jeff Daniels) e Lloyd (Jim Carrey) são pessoas marcadas predominantemente pela inconveniência, vivendo em uma espécie de mundinho particular colorido. Os Farrelly, aliás, tem a inteligente decisão de não buscar ancorar esses personagens em um mundo que evoluiu desde o longa anterior, já que, para todos os sentidos, o tempo não passou para eles, e assim continuam vestindo as mesmas indumentárias um tanto patéticas de antes, e até mesmo seu visual (o cabelo de cuia juvenil de Lloyd e a descuidada juba de Harry) só alteraram no sentido de que agora fazem parte de um rosto enrugado. Por sinal, ver os rostos envelhecidos de Daniels e Carrey em personagens marcadamente infantis tem o duplo efeito de soar cômico e deprimente (e esse último aspecto é o mais engraçado de tudo).

Aproveitando que citei sua infantilidade, vale ressaltar que esse é um aspecto essencial para que o filme funcione, especialmente nas bases do humor negro. Assim como no primeiro filme, a ausência dessa característica muito provavelmente acarretaria em que as piadas que os dois fazem ao longo da projeção soassem apenas desrespeitosas. No entanto, os Farrelly conseguem que em nenhum momento estejamos rindo com eles, mas deles. Assim, quando tentam roubar um aparelho auditivo de um idoso, tiram sarro de um cego, ou mesmo riem do fato de encontrarem uma mulher doutora, o espectador inevitavelmente cai na gargalhada, mas por reconhecer que os idiotas em questão são os próprios protagonistas, que eles mesmos são as piadas. Além disso, essa infantilidade lhes dá um ar de inegável inocência, que nos leva até a perdoar essas gafes de bom senso. É interessante, por sinal, que os realizadores façam mais esforço em infantilizar Lloyd (o cabelo de cuia e o pijama azul com desenhos), dado ser este o responsável pelas mais grotescas piadas.

Com figuras que poderiam ser marcadas apenas pelo seu déficit intelectual, é admirável que tanto os atores quanto os diretores busquem diferenciá-los em particularidades. Assim, como já citado, Lloyd é mais agressivo, se acha esperto, ou melhor, ultra inteligente em suas pegadinhas e em todas as oportunidades que encontra para tirar vantagem sobre o seu amigo, se achando o máximo por seus feitos. Nesse sentido, Jim Carrey é extremamente feliz em suas caretas e boca estupidamente entreaberta, como se ressaltasse a hilária mediocridade da crença de superioridade de Lloyd. Já Harry é um sujeito inegavelmente mais tímido, ou talvez apenas esteja mais desligado do mundo real, e mantém um olhar cabisbaixo que pode se passar por tristeza, mas é apenas desconexão mesmo.

Vale ressaltar que os irmãos Farrelly continuam sendo exemplos de humor negro, e apresentam a mesma energia insana e a queda pelo que pode assustar os espectadores mais recatados que já tinham explorado em obras como Quem Vai Ficar Com Mary, Passe Livre e o citado Debi e Loide de 94. Logo, nem idosos são perdoados, piadinhas envolvendo testículos e fezes rolam soltas, e se uma cena pode soar trágica ou melancólica por envolverem pais que perderam seus filhos, logo os cineastas quebram o bom senso com uma piadinha inconveniente dos protagonistas ou mesmo com a imagem do falecido fumando maconha.

Debi e Loide 2, no entanto, é um esforço demasiado inferior ao anterior, em diversos sentidos. A começar pela própria trama, que repete a situação de conspiração que já permeava o filme de 94, além de apostar no esquema de um road movie basicamente por motivos de preguiça, já que essa parece ser a estrutura ideal para a ausência de estrutura. Além disso, se quando escrevi sobre Anjos da Lei 2 elogiei o fato do longa reconhecer que está repetindo o original e assim mesmo o fazer, como um estúpido (e hilário) ato de revolta, aqui os realizadores repetem diversos eventos do filme anterior, mas se às vezes é por homenagem, na maioria o que se vê é a notável falta de criatividade tão comum em continuações.

Em alguns aspectos, há que se reconhecer uma tentativa de inovação por parte dos Farrelly. A maior delas talvez seja o de não mais colocar Harry e Lloyd em um universo de pessoas “normais”, para assim contrastar as naturezas ainda mais com fins cômicos, mas agora colocá-los lado a lado de criaturas que parecem tão nonsense quanto eles. Se os potenciais cômicos de tal estratégia são imensos, infelizmente acabam funcionando apenas pontualmente, como na cena da velhinha excitada ou da conferência sobre matéria escura. Ainda, é bacana notar as parcas tentativas dos Farrelly de enriquecer um pouco o visual da narrativa, pelo menos em teoria, como a casa vazia dos protagonistas ou o ambiente lúgubre da residência dos pais de um falecido amigo de Harry e Lloyd, onde o único elemento colorido é uma colagem de fotos em homenagem ao filho.

E mesmo que o filme ainda perca diversos pontos pelas inchadas quase duas horas de duração, com um número notável de cenas que poderiam ter sido excluídas em prol de maior fluidez narrativa, Debi e Loide 2 é um ponto alto na carreira de cineastas que já provaram serem capazes de mais pontos altos do que parecem entregar.

sábado, 8 de novembro de 2014


Análise:

Boyhood – Da Infância à Juventude (Boyhood / 2014 / EUA) dir. Richard Linklater

por Lucas Wagner

Richard Linklater é um artista fascinante que constantemente surpreende com ousadas empreitadas. A trilogia iniciada por Antes do Amanhecer fornecia profundas reflexões sobre relacionamentos a partir do uso do próprio tempo entre as produções como fator basal, ao passo que Waking Life (assim como O Homem Duplo) se utilizava de uma animação deveras peculiar para traduzir os mais complexos conceitos filosóficos. E enquanto Jovens, Loucos e Rebeldes divertia pela contra-cultura e mesmo pelas “contra-convenções nostálgicas”, Tape era um angustiante drama psicológico cujo cenário se “limitava” a um quarto de hotel barato. E a lista poderia seguir solta, podendo citar as peculiaridades de obras-primas como Bernie, Escola de Rock ou Slacker.

Mas o caso é que esse seu novo filme, Boyhood – Da Infância à Juventude, revela-se uma jornada surpreendente até para os termos de seu realizador. Filmado durante 12 anos, o projeto acompanha o personagem Mason Junior (Ellar Coltrane) desde sua infância, passando pela adolescência até chegar à sua vida adulta, quando deixa a casa da mãe e ruma à faculdade. Mais do que um filme com uma trama específica, no entanto, estamos tratando de uma obra que é feita de momentos. Momentos estes que, aos poucos, constroem Mason e modificam o ambiente a sua volta.

Construído com sensibilidade, Boyhood permite a identificação de qualquer espectador por mostrar momentos que são facilmente compartilhados por qualquer ser humano, justamente pela naturalidade de seu conteúdo. Seja presenciar uma tenebrosa briga entre os pais e sonhar que tudo ficará bem, e até mesmo momentos repletos de gostosos frios na barriga, como tomar uma cerveja sendo menor de idade (e a hesitação pontuada por Coltrane é tocante) ou dividir um cigarro de maconha entre amigos. Para além disso, o filme investe em momentos com essa mesma naturalidade mas marcados de um lirismo fascinante, facilmente esquecido diante do caos do cotidiano, como uma descontraída caminhada com uma garota especial durante toda uma noite até onde a escuridão se choca com a luz diferencial de uma manhã. E é interessante ainda como o longa foge do maniqueísmo barato e opte pelo realismo ao mostrar Mason, mesmo apaixonado pela namorada, flertando distraidamente com uma colega de trabalho.

Mas ainda que possua essa naturalidade que permita certa universalidade, Boyhood evita ser um filme coming of age comum e nega ao espectador momentos primordiais na vida de qualquer jovem (como seu primeiro beijo ou primeira transa) e prefere aproveitar o tempo para desenvolver melhor o que é peculiar à Mason. Pois, mais do que falar sobre crescer, amadurecer, Linklater se preocupa em criar um estudo de personagem na melhor definição no termo, já que presta atenção, com admirável cuidado, a como a interação de Mason com seu mutável ambiente (o que inclui as pessoas com quem convive) vai modelando seu comportamento ao longo dos anos.

O modo como Mason passa do garotinho com o pragmatismo típico de uma criança (“Por que não entregou ser dever de casa?” “Porque a professora não pediu”) para o adulto barbado e poético, com incontáveis idéias atoladas na garganta, não surge a partir de sua própria “força de vontade”, mas de diversas variáveis que incluem: o fato de ter assistido aulas de sua mãe (uma professora de Psicologia) e aprendido sobre figuras como B.F Skinner e John Bowlby; ter tido enorme influencia pelas ideias humanistas de um pai romântico e repleto de carinho; ter sido ensinado a escutar rock e música country, com toda a poesia que acompanha as letras dessas canções. Ainda, para compreender como, de um menino tagarela, passa a ser um jovem progressivamente introspectivo até conseguir, aos poucos, expressar mais sua opnião, é necessário levar em conta fatores como a constante mudança de lares, ver sua mãe se entregando a homens violentos e desrespeitosos ou mesmo seu pai, outrora tão cheio de ideais e sonhos, se entregar a uma existência familiar que a princípio lhe pareceria alienante, eventos esses que deixariam qualquer um confuso quanto a como se comportar, ou mesmo se expressar, adequadamente.

Mason Junior é um ser humano extremamente complexo, justamente devido a todas essas contingências. E é pelo embasamento intelectual e afetivo que recebe de seu rico ambiente que o protagonista acabe por se tornar um sujeito demasiado cônscio, o suficiente para lhe causar certa aflição ontológica por reconhecer que tudo aquilo que os outros fazem e que lhe chega como eventos aversivos, não são feitos por maldade, mas que o próprio comportamento humano é severamente ambíguo. É notável que, depois de tanto tempo calado com essas angústias, ele as despeje para uma garota cujos principais predicados residem no fato de ser bonita, e não inteligente ou compreensiva. Uma tentativa, observada sabiamente por Linklater, demasiadamente comum de um jovem do sexo masculino de buscar em um rostinho bonito uma rota de salvação.

O que é tão fascinante nesse ponto da história, em que Mason namora com essa garota, Sheena, é que os dois são pólos opostos: ele um intelectual romântico e ela uma moça ligada em Facebook. E o próprio interesse dele por ela partiu do ponto de vista físico. Mas aqui entra a sensibilidade de Linklater: isso não importa para que o relacionamento dos dois constitua uma interação tão bonita de mútua construção, e diálogos ricos que evidenciam maturidade e bom humor por ambos, mesmo que de perspectivas tão absolutamente distintas. Mais do que isso: o relacionamento acaba, com toda a parcela de dor e amadurecimento que isso acarreta, e toda a poesia retratada no lirismo de fotos artísticas com a moça como musa, é findada pelos mais estúpidos dos acontecimentos. Como é a vida em si: espúria até os limites do aceitável.

Com essa atenção dedicada à construção do ambiente de Mason, Linklater consegue a proeza de criar uma lista de personagens tridimensionais, cujas características influenciam completamente uns aos outros. Assim, além de contar uma história de juventude, o diretor fala sobre o processo de envelhecer, sobre a angústia de ver os filhos crescendo e se dizer, com enorme dor, que pensava que “haveria mais” na vida. A sabedoria do diretor é tanta que novamente foge das facilidades da ficção e, mesmo com personagens que aparentemente se fixam em estereótipos, escapar de seus mais comuns limites. Exemplo disso fica claro no pai do protagonista, que mesmo sendo evidentemente um adulto sonhador demais para seu próprio bem, é um pai excessivamente carinhoso, presente, o que se torna essencial para Mason se destravar com ele, como geralmente faz. Aliás, mesmo quando “careta” (caindo em outro estereótipo), é capaz de lindas e sábias reflexões. Ou seja: Linklater o tempo todo nos fala sobre a mutabilidade do comportamento humano e a impossibilidade de fechá-lo em simples clichês. Para mais exemplos basta olhar Samantha (irmã de Mason) ou a citada Sheena.

Essa narrativa atenta aos detalhes do Tempo ainda prima pela sutileza, apostando no figurino ou em objetos de cena (como os diferentes carros do pai) para representar as mudanças psicológicas sofridas por aquelas pessoas. Ainda é lindo o modo como o desenvolvimento de um comportamento problemático é aqui narrado, quando um sujeito alcoólatra é filmado primeiro bebendo escondido e depois fazendo isso na mesa de jantar. Para completar, Linklater se revela um gênio ao conseguir impedir que a narrativa se torne esquemática e a transforme num processo fluído de desenvolvimento, selecionando cenas na montagem não por um processo simplesmente lógico, mas a partir de instantes que se mostram precisos para o desenvolvimento dos personagens ao longo dos anos.

Para finalizar, se em Antes da Meia-Noite o cineasta já havia demonstrado como usa sua própria experiência e amadurecimento enquanto ser humano para enriquecer o conteúdo de sua Arte, adotando uma filosofia mais empírica do que as (maravilhosas) discussões intelectualizadas de seu Waking Life, aqui, mais do que nunca, podemos perceber a influência desse processo de crescimento. Desde que começou a filmar o longa, em 2002, passou por muita coisa em sua vida, e seria impossível que tudo isso não marcasse o desenvolvimento do projeto. Então, enquanto Mason vai se entregando a filosofias marcadas por sua experiência e pelo que enxerga daqueles com quem convive, podemos entrever o próprio Linklater mais uma vez usando a Arte para explorar suas angústias existenciais.

Indubitavelmente um dos melhores filmes do ano, Boyhood é um enorme marco mesmo na carreira de um cineasta já tão fascinante, com um olhar maduro como poucos para perceber todos os rasgos que fazem uma vida da tapeçaria humana, e como são justamente eles que nos fazem crescer. Em suma: uma obra-prima para todos os méritos.

- Textos meus de outros filmes de Richard Linklater:



quinta-feira, 6 de novembro de 2014


Análise:

Interestelar (Interstellar / 2014 / EUA) dir. Christopher Nolan

por Lucas Wagner

2001 – Uma Odisséia no Espaço, Contato e Gravidade iniciam com uma visão do planeta Terra visto do espaço. Já Interestelar abre com a melancólica imagem de uma estante empoeirada repleta de livros sendo gradualmente soterrados por poeira...

A comparação é inevitável. Todos são filmes que não apenas apresentam um louvável embasamento científico, mas que se utilizam de sua trama de ficção científica para promover profundas reflexões acerca do Homem, sua finitude, complexidade, fraquezas e também sua tenacidade. Mas enquanto os três primeiros começam diminuindo o ser humano ao mostrar seu cárcere em um pálido ponto azul no Universo, o último mistura melancolia e esperança quando mostra a chave para o futuro da humanidade, que reside no conhecimento, sendo gradualmente consumida pelo fruto da ignorância que tanto marca sua passagem por aqui. E é essencialmente sobre isso que Christopher Nolan aqui tanto fala: esperança por uma espécie fadada à autodestruição mas que tem na Ciência sua mais poderosa ferramenta para conseguir sobressair-se.

O citado embasamento científico da obra consegue alicerçá-la em um universo temático perfeitamente realista, onde até os mais absurdos dos eventos recebe uma explicação científica palpável. É bacana ainda que esse embasamento se estenda, como os citados filmes no primeiro parágrafo, à ausência de som no vácuo do espaço, com Nolan, assim como Cuarón em Gravidade, extraindo efeitos dramáticos desse recurso, dando mais impacto e angústia a uma sequência de perseguição ou a uma explosão do que se as filmassem pelas vias mais comuns, ou mesmo ao apenas permitir que sejamos engolfados pela imensidão do Universo.

No entanto, o mais gratificante é observar como Nolan não apenas apresenta conceitos científicos tão fascinantes como wormwholes, singularidade, relatividade, buracos negros, etc, como ainda explora a fundo cada um, movendo a narrativa de modo que possa envolvê-los ao todo da trama, intrincando-a gradualmente quanto mais esses conceitos se manifestam fisicamente aos personagens. Aliás, é curioso como o filme nunca parece almejar ser um espetáculo visual, mas apresente efeitos especiais perfeitamente funcionais quanto aos objetivos de servir como veículos para as teorias que explicitam visualmente.

Mais importante do que esse embasamento, no entanto, é o claro respeito que Nolan tem pela Ciência e o método científico, algo ressaltado pela educação que o protagonista, Cooper (Matthew McGonaughey), procura dar a seus filhos, sempre buscando fazer com que não aceitem as explicações mais óbvias para os eventos que lhes chamam a atenção, mas investigá-los a fundo a partir de uma minuciosa coleta e análise de dados. Nesse sentido, é notável como a Terra onde vivem os personagens é uma com particular desprezo pela Ciência (como fica claro na cena no colégio), como se ela fosse uma entidade maldosa separada de seus pesquisadores, e não uma rica ferramenta que muitas vezes foi mal utilizada pelo Homem. O que Cooper, claramente mais instruído, busca ressaltar, são as possibilidades que são abertas pelo método científico, inclusive para o futuro da espécie, e não o que esta, tão dotada de estupidez, já fez de errado usando a Ciência. O filme, basicamente guiado pelo sentimento de esperança no conhecimento, respeitando seus alcances, por isso só já merece aplausos.

Termos esses que acabam por calcar Interestelar em uma narrativa fundamentalmente racional, o que não significa que o filme não funcione como drama humano. Aliás, é essencial que ele assim funcione. Dessa forma, é importante como Nolan dedica um bom tempo para estabelecer as relações afetivas e o companheirismo de Cooper com os filhos, algo vital para que seu arco dramático, assim como o de seus filhos, surta os devidos efeitos. Mas o mais rico nesse ponto da obra é quando o roteiro dos Nolan (Jonathan também trabalha aqui) entrelaça os aspectos emocionais dos personagens com o comportamento predominantemente racional que lhes é exigido enquanto cientistas. O choque ganha perspectivas até mesmo de cunhos éticos e morais, e discussões envolvendo a necessidade de uma postura objetiva mesmo quando profundos relacionamentos afetivos estão em jogo nunca soam gratuitas, mas são desenvolvidas com adequada sutileza, evitando qualquer tipo de resposta fácil.

A visão de Homem apresentada por Interestelar, então, é sempre justa, no sentido em que sabe dar-lhe devido valor sem exaltá-lo ao ponto da ignorância. O que seria denominado “fraqueza” humana não é mais do que sua necessidade de contato interpessoal, ou mesmo o Amor, algo que engrandece a espécie ao mesmo tempo em que a leva a se dar um significado que, no “grande esquema do Universo”, não existe. Um dos grandes trunfos do filme reside justamente em sua capacidade de explorar como o ser humano, submetido a algumas das mais fascinantes e indomáveis leis da Física, se comporta. E aqui entra novamente o seu mérito na exploração dos conceitos que propõe: como seria a reação de uma pessoa ao ver um rosto humano depois de anos de isolamento nos confins do Cosmo? Como seria saber que uma hora de sua vida, em determinado ponto do Universo, representa sete anos na vida de uma pessoa que você tanto ama? Não é a toa que o personagem Romilly se torne uma espécie de sombra de si mesmo enquanto espera, por 23 anos, que seus companheiros retornem de uma viagem que não chega a durar uma hora.

O caso é que o ser humano é uma criatura infinitamente minúscula que tem a arrogância de achar-se importante no Universo. E não é importante. Evidência disso é que, por mais que tenha sorrido, amado, chorado, o que quer que seja, por uma pessoa amada, esse amor não passará pelo crivo de uma lei científica. Pelo contrário: abrir mão da objetividade em prol dos sentimentos pode ser sua ruína, turvando seus horizontes de um modo que possa se convencer da validade de um argumento irracional, vide a discussão entre Cooper e Amelia (Anne Hathaway) em certo ponto. A Razão pode ser facilmente obliterada pela mera necessidade de contato com outra ou (em caso extremos) qualquer pessoa, sendo apenas um dos elementos dos quais, vendo-se privado, faz o ser humano perder a sanidade.

Mas nem sempre é assim. Na verdade, pode ser diferente. Interestelar é, afinal, uma obra de esperança. Como salienta o personagem de Dr. Mann (Matt Damon), é justamente a intensidade emocional que trás a figura de um rosto amado que pode servir de estimulação necessária a feitos incríveis. Pois podemos ser egoístas e mesquinhos, além de arrogantes, mas também somos capazes de sobrepor-nos a nós mesmos e encaramos as tais leis da Física, submetermo-nos a excruciantes provas em prol de atos que nem sempre se referem a nós mesmos ou mesmo àqueles mais próximos de nós. As possibilidades de alcançarmos um status de “seres de cinco dimensões” residem justamente na Ciência e em seu uso adequado, o que não vem sem sacrifícios, e talvez não exista outra espécie com alguma tenacidade capaz disso, além do Homem.

Chega a ser sintomático que Interestelar adquira uma perspectiva de Odisséia em seu cerne, no sentido de ser uma jornada exterior que, a partir de certo ponto, se torna interior, intimista. Assim como o astronauta Bowman em 2001 alcança o infinito apenas para encontrar a si mesmo, Cooper atravessa buracos negros para, no fim das contas, encontrar um sistema ordenado que o moverá intimamente, pois de outra forma não poderia, jamais, fazer o que deve fazer para salvar a humanidade de seu declínio final. E nesse esquema, Cooper é um protagonista nolaniano por excelência, no sentido em que é marcado por um comportamento obsessivo. Só que dessa vez, diferente de outros trabalhos do cineasta, sua obsessão é pelo conhecimento e pelo afeto que sente, tornando-o uma figura humana, demasiado humana, em suas contradições e complexidades, por mais que nunca deixe de ser racional. McGonaughey entrega, então, uma performance essencial para o sucesso do filme, já que sem a intensidade sutil com que demonstra o amor de Cooper pelos filhos, sua admiração pela Ciência, e seus próprios desesperos ontológicos ao se submeter ao Cosmo, provavelmente seu personagem não seria tão comovente.

Aliás, não só McGonaughey brilha, mas todo o elenco, construindo personagens tão tridimensionais quanto possível. Hathaway faz de Amelie uma figura forte, mas melancólica pelos sentimentos que mal consegue esconder. Jessica Chastain trás intensidade à amargura de Murphy, assim como concretude para seus ambíguos sentimentos em relação ao pai. Matt Damon tem sua melhor performance em anos. Michael Caine cria Dr. Brann como uma figura extremamente trágica nos riscos que assume, onde a implacabilidade da realidade há muito o impediu de sonhar. Já David Gyassi, como o citado Romilly, amassa qualquer um com seu olhar desconsolado.

Também é belo notar como, depois de três filmes bombásticos que lhe proporcionaram uma fama de diretor de ação, Christopher Nolan se embrenhe em uma obra de quase três horas de duração e sem qualquer sobressalto, mas guiada com constante melancolia, algo refletido por uma linda trilha instrumental de Hans Zimmer, que também corta os efusivos temas de suas outras parcerias com o diretor para aqui emular sentimentos de solidão e também de mistério, chegando até mesmo a lembrar John Williams. Ainda assim, o longa não carece de sequências intensas, e Nolan mais uma vez revela-se um primor ao coadunar eventos em espaço-tempos diferentes, formando uma montagem dialética construída com cuidado e melhor analisada com mais visitas ao longa. Além disso, se o diretor ficou conhecido por suas tramas bem amarradas, Interestelar é constituído de pistas que, inteligentemente, são plantadas ainda no início do filme para construir significados complexos com o decorrer da projeção, fazendo um uso excepcional de uma temática que envolve realidades cósmicas tão diversas.

Obra que certamente crescerá com o tempo, Interestelar é uma ficção científica que emula romances de nomes como Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, ambos do século XX, e alguns dos maiores gênios do gênero. Só que, ao invés do medo do século passado onde a Ciência tinha demonstrado capacidades assustadoras de destruição, aqui vemos a esperança colocada nela de único veículo de salvação de uma espécie repleta de possibilidades, mas inerentemente minúscula.

- Outros textos meus sobre filmes de Christopher Nolan:




sábado, 1 de novembro de 2014


Análise:

Era Uma Vez Em Nova York (The Immigrant / 2014 / EUA) dir. James Grey

por Lucas Wagner

James Grey revelou-se competente ao trabalhar histórias melancólicas com personagens trágicos e complexos, vivendo em ambientes degradantes de classe média para baixo que refletem sua existência. Alcançou resultados notáveis nos excelentes Caminhos Sem Volta e Amantes, e se seu Donos Da Noite não alcança a mesma glória, ainda é dono de momentos memoráveis. No entanto, mesmo que possua a mesma gama de características que marcam seus trabalhos, esse seu Era Uma Vez Em Nova York se consagra como uma obra inferior, emocionalmente insossa e demasiado enfadonha.

Com o roteiro do próprio Grey ao lado de Richard Menello, acompanhamos a vida de Ewa (Marion Cotillard) no momento em que chega aos EUA, vindo da Polônia, e logo se vê separada de sua irmã. Encontrando amparo financeiro no dúbio Bruno Weiss (Joaquin Phoenix), a moça acaba sendo obrigada a buscar na prostituição o dinheiro que pode fazer com que se reúna com a irmã.

Para que justiça seja feita, antes de mais nada, o visual de Era Uma Vez Em Nova York faz boa parte do trabalho em situar a história numa atmosfera melancólica. O design de produção de Happy Massee aposta nos opressivos cenários (reais ou virtuais) para transmitir uma sensação de sufocamento a partir de ruas apertadas a atulhadas de pequenos comércios, enquanto os ambientes interiores nunca falham em apresentar papeis de parede rasgados e repletos de móveis antigos com um óbvio cheiro de coisa velha. A bela fotografia de Darius Khondji também prima nos mesmos quesitos, e acerta no constante uso de sombras e de um triste tom sépia, em enquadramentos que surgem muitas vezes angustiantes, como aqueles que mostram o exterior de uma prisão ou uma surra em um túnel.

Mas se brilha no visual, Era Uma Vez Em Nova York possui um roteiro particularmente enfadonho que nunca consegue engatar emocionalmente o espectador, algo que se torna óbvio quando Grey apresenta esforços um tanto desesperados para conseguir algum (qualquer) efeito dramático, despencando no melodrama ao recorrer a um constante uso da melosa trilha sonora de Christopher Spelman ou mesmo no expositivo monólogo de Bruno quase no fim do filme. A situação, na verdade, vai ficando tão feia que os roteiristas acabam criando uma gama de situações forçosamente dramáticas para conseguir colocar a trama em movimento, e se torna sintomático que consigamos perceber que muitos dos principais acontecimentos narrativos não vem em prol de enriquecê-la, mas simplesmente de fazer com que ela se mova.

E grande parte dessa fragilidade emocional recai nos ombros de uma protagonista pálida cujas motivações nunca evoluem para torná-la minimamente complexa, já que giram sempre em torno de recuperar a irmã. Assim, passam-se diversos meses enquanto Ewa é jogada de lá para cá por terceiros sem apresentar qualquer sinal de força ou de amadurecimento psicológico, e a linda atriz Marion Cottilard parece ficar no piloto automático de uma performance baseada em um sofrimento redundante. Já Jeremy Renner é desperdiçado em um personagem cujo único motivo de existir é conferir alguma ação à trama.

No entanto, qualquer cena envolvendo o personagem Bruno merece atenção especial, isso em grande parte pela excelente performance de Joaquin Phoenix, em sua quarta colaboração com James Grey (ele também esteve em todos os outros filmes que citei no primeiro parágrafo). Personagem extremamente complexo e ambíguo, Bruno é um indivíduo inteligente o suficiente para ser um manipulador eficiente, conseguindo o que quer de suas “pombinhas” (leia-se: prostitutas), mas que também é detentor de uma óbvia imaturidade emocional, que o leva a agir de modo despropositalmente agressivo em várias situações, simplesmente porque ele mesmo não consegue compreender corretamente seus próprios sentimentos o suficiente para agir de modo mais de acordo com seus desejos e/ou necessidades, se tornando um enigma para si mesmo. Um papel perfeito para Phoenix, que em toda sua carreira vem trabalhando sujeitos emocionalmente imaturos e ambíguos, e aqui empresta toda a intensa instabilidade que faz de Bruno, em certos momentos, quase uma figura dismórfica e assustadora. E é por causa Phoenix que o citado monólogo acabe não irritando tanto, já que o ator comove com a sinceridade de sua interpretação.

Para além de Phoenix, Era Uma Vez Em Nova York falha em tantos quesitos que faz com que o filme quase afunde. E é uma pena que apenas no seu último plano consiga alcançar um nível de genialidade e força emocional que não deu as caras em qualquer outro momento da projeção.