quinta-feira, 31 de julho de 2014


Análise:

Guardiões da Galáxia (Guardians of the Galaxy / 2014 / EUA) dir. James Gunn

por Lucas Wagner

Infelizmente, desde que a Marvel assumiu o papel de produtora de seus projetos o nível de suas adaptações decaiu monstruosamente, conseguindo apenas dois resultados realmente admiráveis (Homem de Ferro e Incrível Hulk) e o resto, incluindo Os Vingadores, podendo, quando muito, ser classificados apenas como “tragáveis”. Aliás, os dois únicos grandes filmes da Marvel desde 2009 (X-Men Primeira Classe e X-Men Dias de Um Futuro Esquecido) nem mesmo pertencem a ela como estúdio, já que não é detentora dos direitos sobre os projetos e, portanto, não puderam meter o bedelho e forçar uma ligação com o universo dos Vingadores.

E é por isso que Guardiões da Galáxia se destaca, já que, apesar dos rumores envolvendo a mistura de seu universo com o dos Vingadores, se revela um filme que se sustenta por si, antes de buscar misturar sua mitologia com os demais, o que talvez, por isso mesmo, torne essa mistura muito mais interessante. E mais: esse longa dirigido por James Gunn ganha pontos por fugir da tendência criada para os filmes de super-heróis pós-Batman de Christopher Nolan, que dita que, para que funcione, essas adaptações devem possuir uma atmosfera sombria e densa. Aqui é justamente o contrário, e o que vemos é uma obra divertida e bem produzida, que jamais se leva demasiado a sério, o que é um grande acerto.

Estabelecendo o humor como alicerce, o longa logo no início esclarece bem qual é a da narrativa, apresentando o seu protagonista quando adulto, Peter Quill (Chris Pratt), em um ambiente assustador e misterioso, em grandes ruínas de um planeta escuro, apenas para “quebrar esse clima” quando o rapaz coloca seus fones de ouvido e, ao som de “Come And Get Your Love”, de Redbone, passa tranquilamente pelos obstáculos, dançando feliz e empolgado. E justamente por momentos como esse, que não se levam a sério, é fácil que o espectador aceite bem e consiga se divertir com a fantasia descompromissada que assiste, já que o humor funciona na maioria das vezes e, como “filme de ação”, o longa também se sustenta competentemente, com sequências que, mesmo não sendo geniais, são divertidas o suficientes para funcionar.

Mas, mesmo se sustentando bem, é inegável que o ponto mais fraco do filme consiste no fato de que o universo mitológico onde acontece é simplesmente desinteressante, ainda mais quando podemos citar exemplos similares, porém geniais nesse aspecto como Mass Efect, Star Trek e Star Wars. Não há nada muito criativo ou minimamente original na mitologia de Guardiões da Galáxia (nunca li os quadrinhos) e, mesmo o design de produção de Charles Wood decepciona pela falta de criatividade nos cenários, que parecem variar sempre em tipos diferentes de lugares bagunçados e desconfortáveis, mudando isso apenas na capital intergalática e na nave do vilão, que também são enfadonhos ao servirem apenas para seus óbvios objetivos. Eventualmente, no entanto, surge algo interessante, como a cabeça de um extinto ser celestial que serve de base para Knowhere.

No entanto, o diretor James Gunn acerta não apenas nas sequências de ação ou em sustentar bem a atmosfera da obra, mas também ao conceber quadros de grande beleza estética, reforçando o caráter de fantasia mitológica da obra, usando sempre imagens de nebulosas de diversas cores, expressando muito bem idéias centrais de cada cena, como na nebulosa vermelha que, em certo momento, fica às costas do vilão, ou ainda numa importante cena envolvendo Gamorra (Zoe Saldana), cuja pele verde é refletida na nebulosa de mesma cor. Cenas como a teia formada por naves, no clímax, ou a conversa entre Peter Quill e Gamorra em uma varanda dando para uma belíssima formação celestial são ainda provas contundentes do talento estético de Gunn, algo ainda mais admirável quando ele se mostra capaz, mesmo raramente, de produzir quadros de uma sutileza de tirar o fôlego, como o que mostra Quill enquanto criança sentado em um lúgubre corredor de hospital.

Acima de qualquer qualidade, no entanto, o que faz de Guardiões da Galáxia um filme realmente muito bom é o quinteto do título. De moralidade dúbia, parecendo extrair uma espécie de divertimento meio psicopata das brigas e matanças, esses cinco são figuras que conseguem atrair o espectador qual um ímã, em especial pelo fato de, mesmo com essas características, conseguirem ser imensamente divertidos e até mesmo tocantes. Peter Quill, por exemplo, na pele do excelente Chris Pratt, se revela um protagonista à lá Indiana Jones já que, charmoso e irreverente, parece nunca ter um plano para seguir, agindo por impulso e improvisando no caminho, chateando-se por nunca ser reconhecido como um “criminoso de respeito”, mas também, mesmo desconfiado do bom coração dos outros, parece ser ele mesmo um excelente ser humano, algo que o choca a ponto de só conseguir expressar isso de forma tão infantil que, na voz de um adulto, parece apenas um sujeito tentando se engrandecer, o que não é verdade. E essa dubiedade entre o heroísmo/companheirismo e a desconfiança tem muito de seus alicerces nos eventos de sua infância envolvendo sua mãe, algo representado, entre outras coisas, pelo seu apego a um antigo walkmen e uma fita gravada por ela, o que promove a bela forma como os realizadores encontraram de fechar o arco dramático do personagem.

Um passado traumático não é apenas característica formadora de Quill, mas faz parte de seus colegas, afetando Gamorra numa dimensão trágica e sombria, enquanto Drax (Dave Bautista) é um brutamontes que usa a raiva para consolar sua tristeza, mas que nunca deixa de ser imensamente divertido na sua psicopatia de sempre achar o máximo matar um monte de gente, e ainda consegue arrancar sinceras gargalhadas de sua incapacidade de entender metáforas. Já Groot (Vin Diesel) comove pela doçura, seus enormes e lacrimosos olhos, e mesmo sendo implacável numa briga, nunca, nunca mesmo, falha em deixar o espectador absolutamente encantado com sua existência (e as pequenas esferas luminosas que solta em certos momentos promove outro belo exemplo do talento estético de Gunn).

Mas é mesmo o guaxinim Rocket que rouba o filme inteiro: dublado com imenso talento por Bradley Cooper, o bicho é fascinante no seu tom sarcástico e irônico, atitudes que escondem um claro complexo de inferioridade, que só dá as caras quando ele se encontra bêbado. Esse seu complexo, aliás, nunca o amolece ao ponto de ser melodramático, e é mesmo seu materialismo extremo e egoísmo constante que se fazem valer o tempo todo, chegando no ápice ao sugerir ideias extremamente maldosas apenas porque são engraçadas. Além disso, os efeitos visuais que o criam são irrepreensíveis, tanto pelo nível de detalhes naturalistas (com destaque para as cicatrizes de experimentos nas suas costas), quanto por detalhes mais psicológicos, como a boca sempre com dentes arreganhados, expressando seu lado monstruoso, e também por comoventes e singelos momentos como aquele em que, imerso em pensamentos, logo se torna fisicamente arisco ao sentir o toque de uma mão, num comportamento reflexo que reforça o quão aversivo lhe é o contato interpessoal, algo que tem a ver com sua natureza deformada que sucinta constante gozação, tanto reais quanto delirantes (o bicho é claramente paranóico).

Conseguindo passar de forma competente uma mensagem piegas, porém bonita, reforçando o valor do companheirismo, Guardiões da Galáxia é mais um exemplo de blockbuster de qualidade lançado em um ano que, em sete meses, surpreendeu mais do que o comum com esse tipo de filme, se juntando assim a uma bela lista que inclui O Planeta dos Macacos: O Confronto, Robocop, No Limite do Amanhã e, é claro, X-Men Dias de Um Futuro Esquecido, que nos fazem esquecer de bobagens como Transformers: A Era da Extinção, Godzilla e O Espetacular Homem Aranha 2.


quarta-feira, 16 de julho de 2014


Análise:

Oslo, 31 de Agosto (Oslo, 31, August / 2011 / Noruega) dir. Joachim Trier

por Lucas Wagner

Ambientado num universo cinzento, frio e melancólico, Oslo, 31 de Agosto é um filme com uma atmosfera que muito diz sobre o estado psicológico de seu protagonista, cuja personalidade se dedica a estudar durante os 95 minutos de duração. O mais curioso, no entanto, é como se instala a sensação de que talvez a angústia pintada pelo diretor Joachim Trier e sua equipe não se “reduza” a um personagem só, mas a toda uma gama de figuras que parecem percorrer a tela como fantasmas, muito embora apresentem fachadas de vitalidade e tranquilidade.

Baseado no livro Le Feu Follet, de Pierre Drieu La Rochelle, e roteirizado por Eskil Vigt e Trier, o longa acompanha as 24 horas que são permitidas para que Anders (Anders Danielsen Lie), um interno de uma clínica de reabilitação de uso de drogas, vá à cidade de Oslo, onde morava, para uma entrevista de emprego, além de já se permitir um período de teste para quando for definitivamente liberado da clínica, algo que ocorrerá em pouco tempo. Nesse dia, o homem reencontra diversas figuras envelhecidas de sua adolescência, enquanto é colocado contra a parede ao enfrentar questões existenciais.

Interpretado com brilhantismo por Anders Danielsen Lie com sua expressão sempre cerrada e olhos que transmitem dolorosas informações, Anders é um homem de 34 anos de idade que parece evitar se alienar. Diferente de muitos que passaram por reabilitação depois de intenso e variado uso de drogas, não procura uma espécie de salvação religiosa ou mesmo dentro de uma filosofia de vida otimista. Apesar de reconhecer os efeitos destrutivos que o uso de substâncias teve em sua vida, ele permanece com um pensamento crítico e cínico, algo que provavelmente o ajudou na promissora carreira como escritor jornalista que um dia teve. Assim, encara a vida e as aparente possibilidades que se abrem com suspeita. Será que vale a pena lutar por algo? Será que existe alguma coisa capaz de dar sentido a uma existência? Será que existe algo como felicidade?

Ao se sentar sozinho em uma lanchonete, o homem observa as diversas pessoas naquele ambiente e presta atenção em trechos de suas conversas, escutando fatos cotidianos repletos de vazio, e, por vezes, Anders enxerga uma pessoa na rua e devaneia sobre sua existência, e o triste é perceber que, depois de suas atividades imaginadas, a pessoa sobre a qual pensa chega em casa, e ele a imagina se deparando com uma angustiante falta de sentido, se pondo a chorar. O mais interessante é que essas imagens que figuram na cabeça do protagonista nesse momento são acompanhadas pelo áudio de uma garota no café que tagarela com uma amiga sobre infindáveis planos para o futuro. Não é a toa que, percebendo essa ironia, Anders sorria tristonho. Pois o que essa visão racional, cínica, de realidade trás para ele é algo mais aterrorizante do que uma overdose: a sensação de que, não importa o que faça, tudo será vazio, efêmero, um espaço entre desgraças. Esse claro sinal clínico de depressão evidencia seu interior como um grande abismo, ou um buraco negro, que suga qualquer sinal de vitalidade ou alegria para sua vida.

O pior de tudo é a dificuldade que encontramos para julgar esse comportamento de Anders. Afinal, as pessoas com quem interage parecem justificar essa visão. Um amigo de antigamente aparenta felicidade para olhos mais ingênuos, com sua bela filhinha e esposa, com emprego fixo e boa renda. Mas é só prestar um pouco de atenção e se verá o sarcasmo mordaz que toma conta do sujeito, a castração constante da esposa que impede que ele se entregue a citações literárias que ama, e se isso não tinha evidenciado desgraças, ele mesmo desabafa e reclama de uma vida apática, cujo ápice é jogar Battlefield com a mulher. Uma ex-namorada de Anders percebe-se alienada numa festa em sua própria casa ao não conhecer metade das pessoas que lá estão, muitas dessas garotas jovens cuja beleza expansiva rivalizam com a decadência progressiva da anfitriã. Até mesmo um cara que transou com a namorada do protagonista mostra-se amargo o suficiente para rejeitar qualquer demonstração de educação ou bom senso como sendo arrogância. E assim vai...

Não é bizarro que tais figuras pareçam encontrar conforto nas farras noturnas, quando músicas altas que abafam a comunicação impedem interações profundas, e mesmo quando vem o silêncio, é como uma espécie de abençoado esquecimento de fúrias internas que persistem em gritar. O mundo cinza e frio, com reduzida profundidade de campo que embaça horizontes, criado para a obra vai além de colocar-nos na perspectiva de uma pessoa depressiva, mas ilustra mesmo um universo, uma gama de indivíduos confusos, insatisfeitos com os rumos proporcionados pelas contingências, frustrados ao perceberem que talvez esta vida não será grandiosa como um dia esperaram. 31 de agosto não é uma data qualquer, mas o fim do verão na Noruega, época geralmente associada a alegrias, mas que aqui se parece um inverno; a questão é mais referente a encarar de vez o fim do verão, não do ano, mas da vida em si. Muitos dos personagens apenas esbarram com essa visão, mas não Anders, e talvez por isso seu estado clínico.

Interessante que o diretor, Joachim Trier, seja parente do polêmico cineasta Lars Von Trier. O curioso é porque este último, em 2011, também dedicou-se a investigar a depressão, e chegou a conclusões similares. O problema era que esse seu Melancolia, apesar de possuidor de inegáveis virtudes, era arrogante na perspectiva de apresentar a depressão como um estado quase iluminado que afasta suas vítimas da alienação. Joachim Trier é menos chorão e mais sábio: a depressão não é um estado iluminado, mas sim um que embaça qualquer possibilidade de alívio, mesmo momentâneo. Em certo ponto da obra, Anders encontra uma linda universitária, com ideais e otimismo. Num rendezvouz amoroso, ilumina-se a possibilidade de envolvimento bacana com ela, algo ilustrado de forma mais do que clara a partir da imagem de um sol nascente. Seria amor eterno? Não. Seria um mar de rosas enquanto durasse? Sim, já que por baixo destas existem espinhos. Mas deixar passar essa oportunidade simplesmente por sua inerente efemeridade não é senão demonstração de imaturidade, ou, no caso de Anders, de uma impossibilidade clínica de se permitir esse conforto. Talvez por isso as coisas tem o fim que tem.

Quando, no fim da projeção, somos levados em retrospectiva a mais uma vez encarar os lugares onde se deram as interações durante o filme, é como se fôssemos obrigados a encarar novamente as rasas possibilidades de desconfirmação que foram oferecidas a Anders, que no fim se mostraram completamente vazias, talvez porque nunca possuíram significado algum, para começo de conversa. Voltamos à segurança angustiante do encarceramento entorpecido.

sábado, 12 de julho de 2014


Análise:

O Espelho (Oculus / 2014 / EUA) dir. Mike Flanagan

por Lucas Wagner

Se Invocação do Mal é um excelente terror, o é por conseguir usar os clichês a seu favor, não almejando ser mais do que é, mas apresentando uma cuidadosa construção de tensão, brincando com homenagens, e ainda criando personagens com os quais o espectador consegue se importar. O Espelho, mesmo talvez não tão eficaz quanto seu colega, ousa mais, e investe numa trama mais elaborada e macabra, uma estrutura narrativa intrincada, um vilão inteligentemente perverso e personagens psicologicamente destruídos por este.

Resumidamente, o roteiro de Jeff Seidman e Mike Flanagan (este também o diretor do filme) conta sobre os irmãos Tim e Kaylie que, quando crianças, foram obrigadas a verem a família ser devastada supostamente pela presença sobrenatural que habita um antigo espelho. Quando sai de um sanatório onde esteve devido a essas experiências e o que, por causa delas, foi obrigado a fazer, Tim reencontra a irmã, cuja tentativa de lidar com o passado inclui enfrentar de frente o infernal espelho. Para isso, quer contar com a ajuda do fragilizado irmão.

Conseguindo a atenção do espectador ao usar um recurso óbvio, porém aqui bem orgânico, para apresentar o personagem título e sua história, O Espelho se torna mais interessante na medida em que alterna sequências no presente com aquelas que revelam o passado dos personagens principais. Ao acompanharmos essas duas narrativas paralelas, a montagem do próprio Mike Flanagan se revela eficiente não só por aumentar a velocidade das viagens de uma narrativa para a outra, mas também para, a partir de certo ponto da projeção, permitir que as duas linhas se misturem no ponto de vista “cinematográfico”, por assim dizer, e também a nível psicológico, já que os fantasmas do passado, assim como as traumatizantes experiências de antes, começam a influenciar significantemente o que ocorre agora, seja como os personagens lidam com o terror ou como o Espelho usa o passado para uma destruição psíquica de suas vítimas.

Para isso, Flanagan (como diretor e montador) usa transições um tanto elegantes a medida em que realiza essas viagens, permitindo que o espectador compreenda o que e como ocorre na tela, assim como os estados emocionais que tomam conta daquele universo, algo que varia desde a crescente escuridão responsável por diluir a aconchegante atmosfera da casa, e até ao usar luzes azuis fantasmagóricas que deixa tudo mais sombrio. Além disso, o diretor ganha pontos pela economia de linguagem, já que não raro investe em momentos que dizem muito com pouco, por exemplo: ao mostrar a marca do golpe da âncora na parede antes de mostrá-la funcionando, Flanagan evidencia ainda mais a cuidadosa preparação da Kaylie para sua “luta”; quando os irmãos se encontram fora do sanatório, estes conversam com as cabeças abaixadas, durante alguns segundos, evitando o olhar e o que este pode trazer; e, o meu favorito, a explicação sobre a pequena rachadura no espelho que, se pensar bem, explica muito mais do que uma pequena rachadura no espelho.

Já um dos motivos pelos quais o longa consegue ser eficientemente assustador é por algo que vai além da cuidadosa criação do suspense pelo seu diretor: o personagem título. Pois sim, o roteiro consegue transformar o Espelho em uma figura “real” e em um vilão aterrador. Se merece esse adjetivo é por não se contentar em apenas destruir fisicamente suas vítimas, mas brincar com elas, destruindo-as também a nível psicológico. A partir de certo ponto, a impressão que fica é que o Espelho se percebe no controle, e assim abusa da percepção dos personagens, chegando a usar de golpes baixos/sujos, como sugerir uma irresistível catarse para um (a) personagem antes de matá-lo (a) impiedosamente.

E outro grande elemento de força do longa se refere justamente aos seus personagens, cujos dramas não existem apenas para criar um background trágico, mas apresentam um grande peso dramático que influencia a narrativa. Tim, por exemplo, é um sujeito frágil, que parece lutar muito para não se quebrar, algo plenamente compreensível. Já Kaylie, com a excepcional interpretação da linda Karen Gillan, se transforma numa figura complexa e trágica, cuja resiliência que hoje apresenta foi forjada por condições traumatizantes, e é posta a prova quanto mais ela mergulha na realização de seus objetivos. Assim, vê-la fraquejar ou sentir medo é algo não só assustador, mas intensamente triste.

Com um elenco homogeneamente eficaz ao arrancar poderosos sentimentos de seus personagens (e um dos últimos momentos de Rory Cochrane como o pai é de uma comoção palpável), O Espelho pode apresentar diversos pecadilhos na construção de sua “complicada” trama, apostar em alguns sustos fáceis, e bem que poderia permitir viagens temporais nas quais o presente influencia o passado, o que enriqueceria consideravelmente a obra. Mas nada disso estraga o que é um excelente exemplar do gênero “terror”.  

quinta-feira, 3 de julho de 2014


Análise:

O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel / 2014 / Alemanha, EUA) dir. Wes Anderson

por Lucas Wagner

O que torna Wes Anderson um dos mais interessantes artistas da atualidade é a sua capacidade de, contando histórias bem diferentes em cada filme, ainda assim permitir a sensação de que todos os seus trabalhos se passam em um mesmo universo amalucado e um tanto surrealista, onde figuras distintamente solitárias e à deriva procuram significado. Assim, suas obsessões estéticas tomam forma e se justificam, construindo obras únicas que misturam melancolia e humor, e onde uma sensibilidade admirável permeia o olhar que nos guia naquele universo e seus personagens. Seu novo filme, O Grande Hotel Budapeste, trás novamente essas qualidades, revelando um cineasta seguro de si e do que quer, que transforma esse seu insano trabalho numa obra-prima repleta de camadas e surpreendentemente eficiente em todas elas.

Roteirizado pelo próprio Anderson a partir de um argumento concebido por ele e Hugo Guinesse e nos escritos do dramaturgo Stefan Zweig, o longa narra uma história em forma de “boneca russa” onde um Autor (Tom Wilkinson) conta sobre quando era um jovem escritor (Jude Law) que escutou as fascinantes aventuras de Mr. Mustafa (F. Murray Abraham) quando era um jovem Lobby Boy chamado Zero (Tony Revolori) a serviço do excêntrico concierge Gustave (Ralph Fiennes), envolvido em uma trama de assassinato e roubo.

Como em qualquer outro trabalho do diretor, basta uma olhadela em qualquer plano para se saber tratar de um filme dele. O apuro estético de Anderson se revela cada vez mais rigoroso e rebuscado, e o cineasta aproveita novamente para criar um universo colorido mas estranhamente mórbido em vários aspectos, usando e abusando de planos-sequências, slow-motion, travellings, e coreografias milimetricamente ensaiadas, tudo controlado à mão firme quase obsessiva, tal como a centralização absurda da maioria de seus quadros. Talvez, no entanto, O Grande Hotel Budapeste seja seu filme que mais permite sua “fritação" visual, já que a absurda trama em que nos mergulha dá espaço de sobra para o diretor fazer o que quiser e ainda se dar a liberdade de brincar à vontade com invencionismos que surgem intrigantes, elegantes e imensamente divertidos, como as diversas vezes que usa animação stop-motion para sequências de ação.

Assim como Viagem à Darjeeling fazia diversas homenagens ao cinema de Satyajit Ray, aqui o diretor reverencia Ernst Lubitsch e suas ousadas comédias do início do século XX, refutando valores morais ao cortar de rebuscados diálogos para fortes palavrões, coisa que Anderson também faz explicitamente através do personagem de Gustave em cenas engraçadíssimas, embora em nenhum momento perca suas idiossincrasias para as homenagens (um feito admirável). Aliás, o humor do cineasta continua afinadíssimo e talvez ainda mais entregue ao nonsense do que o habitual, promovendo sequências cômicas tanto física quanto dialogicamente, e o próprio diretor parece querer nos empurrar para essa atmosfera insana logo nos primeiros cinco minutos de filme quando, depois de umas duas cenas melancólicas, tem uma poética fala quebrada pela bruta bronca que o Autor dá em seu filho (ou neto, não sei).

E se a própria trama maníaca e amalucada permite que o diretor brinque misturando aventura e comédia de forma absurda e propositalmente farsesca (inclusive vemos um tiroteio completamente sem sentido em que personagem algum parece pelo menos se ferir), chegamos ao ponto de Gustave perguntar meio para si e meio para Zero se essa trama que “engrossa” não seria uma “metáfora da sopa”, o que é um comentário metalinguístico acerca da futilidade dessa própria aventura, que não faz sentido nem para eles mesmos. E é admirável que mesmo em meio a todo esse hospício Anderson se mostre um cineasta maduro ao conseguir abordar temas que já se mostraram de seu interesse pessoal e compõem a alma de todos os seus trabalhos.

O Grande Hotel Budapeste trás a temática que já tanto permeou seu filme anterior, o lindo Moonrise Kingdom, e novamente acompanhamos uma história onde o passado é pintado (literal e metaforicamente) como ideal, onírico e belo, em contraposição ao futuro/presente, aos quais o tempo em tudo corrói. Anderson aborda essa questão de forma bastante direta, e assim a cada época que retrocedemos parece que entramos em mundos cada vez mais mágicos. 1932 é construído como um ano fantástico, juvenil, gostoso, enquanto 1968 é marcado pela solidão que engloba personagens em ruínas tanto internas quanto externas no hotel do título; e se 1985 aparentemente é agradável aos olhos, logo se revela incomodado por um quarto em reformas e uma escada para pinturas. Os dias de hoje são representados por uma paisagem mórbida dominada pela neve e pela tristeza. O que é fascinante porque, além de nos dar um lugar privilegiado na psicologia do próprio cineasta, nos coloca nos sapatos da moça que lê o livro do Autor sentada no banco circundado de neve, conferindo um delicioso aspecto metalinguístico à obra.

E se isso já é admirável em diversos níveis (narrativa, filosófica e psicologicamente), Anderson ainda revela sua inteligência e fineza artística ao adotar razões de aspecto diferentes para cada tipo de imagem em distintas épocas, usando o 1:85 para os dias de hoje, o 1:33 muito usado nos anos 30 e aqui repetido, e até o 2:35:1 do Cinemascope, que usa lentes anamórficas típicas para produções das décadas de 50 e 60. Um detalhe técnico elegante que não abafa as ambições poéticas do diretor, aqui novamente em alta e que divulga informações emocionais de profunda significância através de efeitos de luz e detalhes na direção de arte. Um belo exemplo seria a grande quantidade de vidros de perfume no decadente quarto de Gustave, o que já ilustra a pomposa e desesperada imagem que tenta transmitir contra sua verdadeira e não tão chique personalidade. Mas o meu momento favorito (que me fez sorrir em meio a lágrimas) fica por conta de quando Mr. Mustafa relembra de sua amada Agatha, com a dor da saudade, e uma luz se acende iluminando seu rosto envelhecido e melancólico: é o passado lançando sua luz para espantar um pouco as sombras do presente, mesmo que traga consigo dor ao fazer isso.

Acima de tudo, no entanto, O Grande Hotel Budapeste se revela um trabalho essencialmente de Wes Anderson ao trazer o mesmo tipo de personagem solitário, sem rumo e alienígena a si próprio em meio a um mundo que não faz sentido. Isso é bastante evidente no protagonista, através de uma genial abordagem de Anderson ao lhe dar o nome, quando jovem, de Zero, quando era um insignificante imigrante refugiado que se vê envolvido em um romance e uma aventura. Ele só ganha nome e personalidade quando velho, o Mr. Mustafa, que mesmo rico e dono de vários estabelecimentos, sempre se recolhe no Hotel Budapeste no que foi, quando era apenas um Lobby Boy, seu quarto de dormir. Aliás, contratar um ator fisicamente estrangeiro para interpretá-lo enquanto jovem é um lance de mestre do diretor, como se o rapaz realmente não fizesse parte daquele ambiente, situação que muda apenas muitos anos depois. E o próprio romance que vive com Agatha (Saoirse Ronan) reflete a já abordada idéia de duas pessoas deslocadas e solitárias se relacionando amorosamente.

Mas, para além de Zero ou Agatha, o concierge Gustave é um personagem andersoniano ainda mais fascinante, e talvez seja a figura mais complexa e multifacetada que o diretor cria desde o inesquecível Royal Tennenbaum de Gene Hackman no maravilhoso Os Excêntricos Tennenbaums. Buscando transmitir uma imagem de elegância, fineza e perfeccionismo, além de tentar transparecer uma alma romântica através da leitura e citação de poesia, Gustave é na verdade um sujeito que mal consegue esconder seu lado trambiqueiro, não raro interrompendo discursos poéticos com um “fuck it” de quem está cansado de fingir. Aliás, chega a ser engraçado vê-lo abandonando essa imagem intelectual, fina, apenas porque não consegue resistir ao seu inegável materialismo. No entanto, em nenhum momento seus ideais ou amor ao hotel, ou mesmo o afeto que sente por diversas pessoas, chega a ser falso, mas essa sua personalidade quebradiça e contraditória faz parte de uma natureza profundamente solitária e alienada. E Ralph Fiennes entrega uma performance digna de prêmios, e não menos um de seus melhores trabalhos em uma carreira já admirável, e consegue expressar todas essas camadas psicológicas de Gustave ao mesmo tempo em que, pela própria abordagem de Anderson ao não tratá-lo como o narrador da história, mantém uma aura de mistério que o torna ainda mais fascinante.

Trazendo de volta nomes conhecidos na filmografia de Anderson que completam um elenco de tirar o chapéu (e como é bom ver Owen Wilson novamente ao lado do diretor), O Grande Hotel Budapeste ainda conta com uma trilha sonora deliciosa composta com maestria por Alexandre Desplat. E, novamente, com todos esses elementos tão bem organizados por um artista único e surpreendente, temos uma obra-prima de grande valor, que consegue enxergar a profundidade do humano em meio à loucura do nonsense.

-Outros textos meus sobre filmes de Wes Anderson: