sábado, 23 de fevereiro de 2013



Crítica filme “Indomável Sonhadora” (Beasts Of The Southern Wild / 2012 / EUA) dir. Benh Zeitlin

por Lucas Wagner

  O olhar da criança sobre o mundo é algo interessante justamente por sua inocência. Mas o olhar de uma criança que vive sobre condições aversivas e perigosas, sempre temendo pela própria vida, é algo simplesmente extraordinário por vir repleto de ambivalência: a inocência é ameaçada pela realidade de uma forma que vai contribuir para que essa criança se torne um adulto duro e triste. Ainda assim, o mundo infantil é repleto de uma magia que serve como proteção da realidade, e assim, as crueldades desta vêm de certa forma sublimadas pela inocência, e essas crianças são capazes de tirar alguma beleza mesmo de um mundo onde não existe beleza. Crianças assim serviram de protagonistas muitas vezes no Cinema, produzindo obras admiráveis como O Labirinto do Fauno ou Moonrise Kingdom. Agora, em Indomável Sonhadora, acompanhamos uma garotinha de 6 anos que vive em péssimas condições e sem muitas perspectivas, mas que ainda consegue manter um pouco de sua infantilidade, mesmo que essa esteja sendo perdida mais e mais rápido.

  Hushpuppy (Quvenzhané Wallis) mora com o pai em uma comunidade pobre e isolada do resto do país por ser uma ilha e por ter uma barragem a impedindo de manter contato com o “mundo exterior”. Uma tempestade violenta faz com que a comunidade seja praticamente destruída e inundada, obrigando os seus moradores a juntarem forças para conseguir sobreviver. Para piorar a situação, o pai de Hushpuppy tem uma grave doença que o matará em breve, enquanto ela se sente como que culpada por acreditar que libertou monstros poderosos que se aproximam da região trazendo mais tragédia.

  Ao mesmo tempo em que é infantil e meiguinha, Hushpuppy é capaz de reflexões que, mesmo repletas de inocência e idealismo, são poéticas e representam certa maturidade da personagem, e isso consegue fazer com que a narração em off dela não seja uma recurso enfadonho como é em basicamente todo filme. Tratada pelo pai com dureza, inclusive vivendo em uma casa separada da dele e chamada por um sino para comer, Hushpuppy ainda ama o pai com força, mesmo que sonhe com uma vida onde a mãe ainda estivesse presente, algo que fica belamente demonstrado na direção de arte de sua casa: cheia de objetos da mãe, como se com isso a garotinha tentasse suprimir a falta dela. Mas ela não consegue imaginar uma vida sem o pai, e sofre quando começa a perceber a iminência da morte dele (“Você acha que eu sou cega?” diz ela em certo momento para ele, o que demonstra também que ela é mais madura do que parece). Esse maturidade também fica evidente quando o pai some por um tempo, e Hushpuppy, ao invés de se desesperar, mantém a calma e toma conta de si mesma. Afinal, num mundo como aquele, mesmo demonstre carinho e amor pela comunidade, Hushpuppy não pode se dar ao luxo de viver como uma criança “normal”, sempre brincando feliz e sorridente, já que ela deve ser forte e independente, sendo obrigada a sacrificar sua infantilidade por uma maturidade que ainda não existe, mas deve ser forçada. Assim, sua própria fantasia infantil (dos monstros que se aproximam da região) vem carregada de culpa e tragédia, assim como a fantasia esquizofrênica de Ofelia em O Labirinto do Fauno, já que as necessidades da realidade impedem que a inocência completa possa ser vivida. Desse modo, o arco dramático de Hushpuppy é o de se chegar à uma maturidade suficiente onde a ausência do pai não seja algo tão perturbador, e que ela possa aceitar essa partida como algo natural; assim, ela parece o filme inteiro estar vivendo um luto precoce pelo pai. Isso é extremamente trágico ao considerarmos que ela só tem 6 anos, e já deve aprender a ser tão forte para poder ser capaz de se colocar de pé em frente a natureza e assim sobreviver. Quvenzhané Wallis, como a intérprete da protagonista, surge como uma força da natureza ela mesma, conseguindo demonstrar toda a força da personagem, e há momento em que sua performance me encheram os olhos de lágrimas, quando ela parece a ponto de chorar diante das circunstâncias, mas segura porque isso seria errado e fraco. Ela só tem 6 anos. Ela só tem seis fucking anos!

  Wink, seu pai, também é um indivíduo ambíguo e complexo. Obrigando a filha a dividir a comida com os cachorros e também a morar numa casa sozinha, ela já parece um indivíduo antipático, mas muito dessa forma de cuidar da menina parece (por mais difícil que isso seja de se aceitar) amor. Amor porque o contrário disso seria iludi-la numa vida fácil e feliz, confortável, o que lhe traria grande decepção no futuro. Wink a trata como um adulto forte e independente, não permite que ela chore, lhe dá bebida alcoólica e até mesmo briga com ela se ela comer um caranguejo de forma civilizada, e não “como um animal”. Pode parecer (e é, na verdade) extremista, mas, num universo onde explodir um jacaré dá tesão, isso é perfeitamente natural e correto. Assim, Wink pode ser muito ambivalente (estar brincando com a filha para, logo depois, brigar com ela violentamente), mas é um personagem fascinante nesse amor bruto pela filha, e assim sabemos que a garota tem ótima criação, mesmo numa vida tão corrompida pela realidade.

  Ao invés da frieza e objetividade, o diretor Benh Zeitlin opta por uma direção sensível e doce. No entanto, nunca é meloso e maniqueísta como Bayona no fraco e açucarado O Impossível ou Spielberg em Lincoln. Zeitlin consegue o equilíbrio ideal, e consegue assim mostrar tanto a inocência quanto a dureza. Onde tudo parece improvisado e sujo, e o perigo parece sempre próximo, Zeitlin deixa claro que aquele é um universo extremamente aversivo; mas ainda assim o diretor mostra o carinho e companheirismo daqueles moradores, que encontram conforto nessas amizades e no desprezo pelo “mundo exterior”, e isso sem nunca ser artificial e remelento como Bayona em O Impossível. Mais interessante é como Zeitlin consegue extrair certa poesia de todo aquele mundo, sendo ajudado nisso pela bela fotografia, a narração de Hushpuppy e pela trilha sonora absolutamente maravilhosa (e injustamente deixada de lado no Oscar) de Dan Romer e Benh Zeitlin. Ainda por cima, o diretor consegue criar certos simbolismos que enriquecem demais seu filme, como os próprios monstros fantásticos, que chegam, em certo momento, a servir como correlatos das crianças da comunidade...e é maravilhoso o momento em que esses bichos se curvam à Hushpuppy.

  Mas o filme conta com um simbolismo mais complexo e lindo do que esse, que falarei agora, mas só para quem tiver visto o longa. Quem não tiver visto continue no próximo parágrafo. O simbolismo a que me refiro é quando Hushpuppy vai até o bordel chamado Eliseu e lá consegue forças para voltar ao seu pai e aceitar a sua morte. Eliseu, o lugar para onde iam os mortos na mitologia grega. É como se ela fosse até a terra dos mortos, lá encontrando uma espécie de substituta para a mãe (que, simbolicamente, é a sua mãe, o que fica claro pela própria voz e aparência da prostituta, e por uma fala em específico), que lhe dá a força necessária para amadurecer de vez e deixar o pai ir embora. Assim, não é tão absurdo imaginarmos que, talvez, apenas talvez, Hushpuppy não se torne uma adulta fria e triste no futuro, mas uma mulher sábia capaz de enxergar beleza e poesia nas mais ínfimas coisas, compreendendo que existem coisas que não podemos mudar, mas que podemos ter maturidade suficiente para aceitá-las sem que elas nos destruam.

  Doce, sensível, comovente, bonito e poderoso, Indomável Sonhadora é daqueles filmes que nos atingem profundamente nas nossas entranhas, ficando conosco mesmo que ainda não o tenhamos digerido totalmente. Um filme que merece ser visto e revisto, apreciado e sentido.

Nota: 10.0 / 10.0


sábado, 16 de fevereiro de 2013



Crítica filme “O Mestre” (The Master / 2012 / EUA) dir. Paul Thomas Anderson

por Lucas Wagner

  À primeira vista, O Mestre é uma história que funciona como uma alusão à criação da hilária religião Cientologia, e de fato, a base da trama é basicamente isso mesmo. No entanto, o filme se revela mais como um estudo psicológico fascinante e extremamente complexo, capaz de deixar muitos estudos de caso que podemos ver em Psicologia comendo poeira. Dito isso, Paul Thomas Anderson (de agora em diante nessa crítica, apenas PTA) consegue entregar mais uma obra-prima invejável, que não fica nem um pouco atrás de nenhum de seus magistrais filmes anteriores.

  Como de praxe escrito pelo próprio PTA, o longa conta a história de Freddie Quell (Joaquin Phoenix), um homem obviamente perturbado e com graves problemas psicológicos, que acaba no caminho do “mestre” Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), que desenvolve uma espécie de religião alternativa (obviamente a Cientologia, mas aqui apelidada de “A Causa”) e encontra em Freddie uma grande oportunidade de testar os valores de sua teoria. A partir disso, desenvolve-se uma amizade estranha e complicada, para ambos os lados.

  Em uma das primeiras cenas, vemos Freddie com alguns “amigos” em uma praia. Esses amigos fazem uma escultura de areia na forma de uma mulher, e Freddie imediatamente monta em cima dela e finge estar fazendo sexo, primeiro causando risos em seus amigos, risos esses que pouco depois se transforma em vergonha alheia, já que a brincadeira está durando muito tempo. Logo após, este se masturba na praia de frente para o mar, sem se importar com quem está por perto. Logo de cara então já o vemos como um sujeito que sofre de graves problemas psicológicos, que vão sendo trabalhados por PTA de forma cuidadosa ao longo do filme. Grande parte dos problemas do protagonista parecem ser de natureza sexual, já que Freddie parece ver alguma forma de pornografia em tudo, como fica claro na cena em que, em um estado meio que de sonolência, enxerga todas as mulheres que estão na casa só que sem roupas. No entanto, no que se refere ao seu comportamento com mulheres, ele parece por demais ambíguo, parecendo fugir dessas sem nunca saber descrever o por que. Em um encontro com uma linda mulher, ele adormece; ao invés de voltar para a possivelmente mulher de seus sonhos, prefere deixá-la para lá, esperando por ele, enquanto este não dá nem notícias. Aparentemente, são os homens que lhe chamam mais a atenção. Observem como ele parece prestar muito mais atenção no genro de Lancaster do que em uma mulher que lhe esfrega a mão na perna. Além disso, a cena em que lhe é aplicado um teste de Rorschach é usada por PTA já para estabelecer alguma relação com a homossexualidade, já que, se primeiramente vê uma vagina, na figura seguinte vê um pênis entrando numa vagina, e na seguinte, apenas um pênis.

  Só que estamos falando dos anos 50, uma época mais moralista onde a homossexualidade ainda não era vista com a visão mais liberal que vemos hoje. Freddie então parece descarregar esses “impulsos” atrás de uma forma subliminar, psicopatológica de agressão e violência, o que também encontra eco na relação conturbada que obviamente teve com o pai e, principalmente, a mãe, algo que lhe serviu de profunda experiência negativa, já que ele sempre evita falar da mãe. Só que, percebendo que esse comportamento não lhe trouxe nada senão infortúnios sociais, Freddie procura sufocar esses impulsos de forma tão extremada que surte até mesmo efeitos visíveis em seu corpo, apenas aumentando o seu modo peculiar de ser, parecendo sempre inconsciente de seus bizarros comportamentos (como os citados no início do parágrafo anterior). Freddie parece mesmo uma bomba sempre pronta para explodir, que, talvez para se acalmar um pouco, fica constantemente em movimento, seja em sua vida (na mudança de empregos e ambientes) ou seja até mesmo literalmente (quando fica andando sem parar). E essa estrangulação psicológica que aplicou a si mesmo aparentemente apenas lhe promoveu uma cisão de sua personalidade, criando na verdade um pequeno monstro que, mesmo aparentemente gentil e inofensivo, não perde uma oportunidade de encher alguém de porrada, muitas vezes guiando essa agressividade sobre si mesmo, como quando se dá vários tapas dolorosos ao errar uma tarefa, ou quando, de modo mais sutil, se faz ouvir detalhes sobre a nova vida de uma antiga paixão.

  E aqui entra a sublime atuação de Joaquin Phoenix, o verdadeiro merecedor do Oscar de Melhor Ator (muito mais do que Daniel Day Lewis por Lincoln, que inevitavelmente vai ganhar). Interpretando mais um sujeito com traços infantilizados (como fez em Amantes, Um Sonho Sem Limites, Gladiador, Brigada 49, etc), Phoenix consegue a sua melhor performance até hoje ao se entregar aos mais excruciantes detalhes de Freddie. Com o corpo sempre encurvado e a boca semicerrada, Phoenix ilustra a força absurda que Freddie usa, mesmo que talvez inconscientemente, para se manter sob controle, como se usasse a introspecção forçada (algo evidenciado também pela dicção sempre atrapalhada pela mandíbula apertada) como uma forma de proteger a si mesmo e os outros de sua própria personalidade. Phoenix ainda consegue nos fazer sentir certa pena de Freddie, sempre evidenciando sua fragilidade e instabilidade.

  Mas não é só em Freddie que O Mestre tem sua força. Aliás, o longa fica incompleto sem dois outros lados: Lancaster e Mary. Aparentemente interessado em expandir seus conhecimentos e o alcance de sua religião, Lancaster é na verdade um homem solitário que vive sob os comandos indiretos de sua esposa, Mary (Amy Adams), que o controla de forma sutil, como quando o masturba no banheiro, ao mesmo tempo em que lhe dita “ordens” no ouvido, ou numa das últimas cenas, quando esta parece dizer tudo que “precisa” ser dito, enquanto ele fica calado. Lancaster também tem grande disposição à violência e assim, o seu interesse “científico” em Freddie pode ser mais uma indicação de compatibilidade psíquica que ele mesmo não pode extravasar em momento algum. Assim, parece mais que Freddie é um terapeuta para Lancaster, já que esse homem encontra suas alegrias na companhia do primeiro. E aqui, PTA parece jogar novamente o componente homossexual, fazendo surgir uma química quase que sexual entre os dois, como na cena em que brincam abraçados no gramado. Assim como em O Segredo de Brockeback Mountain, Lancaster e Freddie são espécies de salvação um para o outro num mundo onde são completamente enforcados pela sociedade. Só que, em seu desligamento atual, Freddie parece não dar o devido valor a Lancaster, embora obviamente goste desse (quando alguém xinga o seu “mestre” é apenas mais um motivo para descer a porrada em alguém). E ainda há certa ironia no momento em que Lancaster agradece por seus parentes dizerem que não gostam de Freddie, já que isso o afasta ainda mais deles. Essa relação entre os dois parece ficar mais clara na última cena que compartilham, que ainda é o momento mais tocante do filme, quando Lancaster canta uma canção com uma letra bem sugestiva.

  E mais uma vez Philip Seymour Hoffman (um dos melhores atores da atualidade) simplesmente destrói em mais uma performance magistral. Ao mesmo tempo em que consegue transmitir autoconfiança e segurança como Lancaster, Hoffman confere instabilidade ao sujeito, que parece às vezes não evitar ser agressivo, por mais que queira. Já Amy Adams (uma atriz que amo violentamente, vide minha crítica do fraco Curvas da Vida) é cuidadosa em sua performance como Mary, estabelecendo que ama o marido, mas que o mantém sob controle absoluto, se colocando como a personagem talvez mais perigosa e forte do filme.

  Com esse elenco tão forte, PTA não fica comendo poeira na cadeira do diretor, mas consegue mais um desempenho excepcional na função. Com a mesma qualidade visual de seus trabalhos anteriores, PTA cria planos que surgem magníficos justamente por surgirem cheios de ideias, como aquele em que Lancaster cumprimenta um amigo, em frente à uma porta, apresentando a esposa (ainda fora de quadro), que quando entra fica à esquerda da tela, enquanto Freddie já entra e se estabelece do lado direito; quando vemos Lancaster centralizado na abertura de uma cortina, enquanto a imagem da mulher fica à esquerda e camuflada pela cortina; quando, na ultima cena em que vê Freddie, a mulher se estabelece no canto direito, sugerindo maior força e controle. A cena em que Lancaster e Freddie surgem paralelos em duas celas é também extraordinária para ressaltar a diferença no comportamento entre os dois, ao mesmo tempo que demonstra a compatibilidade, já que estão dividindo o mesmo quadro. Ainda, a imagem simbólica da água do mar (constantemente enfocada pelo diretor) surge com o mesmo sentido que no clássico Touro Indomável, ou seja, para sugerir a instabilidade de seus personagens. Mas talvez o melhor momento de sua direção se evidencie na cena em que Lancaster e Freddie, em momentos diferentes, dirigem em alta velocidade uma motocicleta, numa demonstração da eclosão sublimada da violência de cada um. E O Mestre ainda possui diversas temáticas trabalhadas por PTA em seus outros trabalhos, como a instabilidade psicológica (Sangue Negro e Embriagado de Amor), a homossexualidade (Magnólia e Boggie Nights) e a influência paterna e materna (todos os seus filmes anteriores).

  Muito melhor do que a maioria dos filmes indicados ao Oscar de Melhor Filme (ele só não é melhor que Amor), O Mestre é mais uma obra-prima extraordinária de um dos melhores diretores surgidos na década de 90, que, com apenas seis filmes no currículo, já é um dos cineastas mais importantes da História do Cinema.

Nota: 10.0 / 10.0


Crítica filme “A Hora Mais Escura” (Zero Dark Thirty / 2012 / EUA) dir. Kathryn Bigelow

por Lucas Wagner

  Um dos episódios da decepcionante primeira temporada do seriado The Newsroom trata do momento em que vários jornalistas recebem a notícia de que Osama Bin Laden foi morto, assim ficando responsáveis pela “honrosa” tarefa de transmitir para a população norte-americana esse fato tão “maravilhoso”. Esse episódio me causou o mais profundo nojo, já que os realizadores deram um tom extremamente ufanista, de profunda alegria e emoção diante da morte do líder da Al Quaeda. Não estou dizendo que Bin Laden fosse um bom homem, mas sim que essa comemoração (acompanhada de uma trilha melosa) transmitia toda a indecência daqueles personagens e dos norte-americanos que estavam comemorando a morte de um ser humano. Todos felizes e se abraçando, com lágrimas nos olhos, abrindo champagne e comemorando esse “grande feito” do governo, se sentindo como irmãos, membros todos de uma grande nação. Pois eu digo que não há nada de bonito nisso, e muito menos de patriótico. O meu medo acerca desse A Hora Mais Escura, que narra a caça ao terrorista, era de que também tendesse a ser uma grande masturbação norte-americana, tratando esse evento como algo patriótico. Felizmente, a ótima cineasta Kathryn Bigelow consegue tratar o tema com frieza e objetividade, criando ainda um eco temático com seu trabalho anterior, o inesquecível Guerra ao Terror, que tratava da guerra nos campos de batalha, enquanto aqui ela trata da mesma guerra no plano da espionagem e da inteligência longe da batalha real.

  Assim como no excelente Argo, a maior virtude de A Hora Mais Escura é de nunca evitar retratar ações repugnantes realizadas pelos norte-americanos nos eventos narrados. Dessa forma, Bigelow mostra cenas de tortura pesadas e impiedosas, nas quais fica impossível que evitemos olhar com desgosto para os agentes norte-americanos responsáveis pelo ato. E a visão crítica da diretora e do roteirista Mark Boal (também responsável pelo belo roteiro de Guerra ao Terror) chega ao ápice quando mostram o presidente Barack Obama negando a tortura que já vimos acontecer, o que é irônico e corajoso por parte dos realizadores. Ainda, é interessante que diretora e roteirista retratem diversos empecilhos de comunicação que, muitas vezes, acabam mandando os personagens para caminhos errados, evidenciando ainda mais a complexidade da caça.

  Bigelow demonstra mais uma vez seu valor como cineasta ao investir num ritmo sempre frenético e tenso, junto com a montagem enérgica (que, no entanto, nunca deixa o longa confuso) e a câmera sempre na mão, transmitindo instabilidade. Assim, a cineasta nunca deixa que o longa se torne enfadonho, mesmo com quase três horas de duração. Bigelow consegue criar um ritmo crescente de tensão, ainda sempre deixando o espectador inseguro quanto ao que pode acontecer com os personagens, já que esses parecem sempre muito expostos a perigos; ainda, a diretora consegue fazer com que o próprio espectador compartilhe da exaustão dos personagens nessa caçada. O único problema que acaba por diminuir um pouco a qualidade do filme é a sua própria estrutura que, visando explorar os longos anos em que a caçada aconteceu, acaba por ter que apressar o tempo que dedica a alguns desses anos; assim, somos surpreendidos sempre por estarmos acompanhando o que aconteceu, por exemplo, em 2004 e, pouquíssimo tempo depois pularmos para 2005. É claro que seria impossível trabalhar, em um mesmo filme, por mais longo que seja, a caçada nos mínimos detalhes, mas essa estrutura, junto com a quantidade de informações que já temos que acompanhar, acaba prejudicando o desenvolvimento dos personagens.

  Aliás, se A Hora Mais Escura possui ainda alguns personagens tridimensionais, isso se dá não tanto pelo roteiro ou pela direção, mas sim pelos atores. E para isso o grande destaque fica por conta da linda Jessica Chastain, na primeira atuação de sua carreira em que pode realmente mostrar todo seu talento (nem na obra-prima A Árvore da Vida ela teve muita chance). Interpretando um arco dramático tipo Ellen Ripley (a protagonista dos quatro Alien), de mulher frágil que vai se tornando mais forte e imponente, Chastain dá enorme intensidade à Maya, intensidade que vai crescendo com o decorrer dos anos e a exaustão da caçada, que vai a isolando de outras pessoas, já que deve dedicar cada vez mais ao seu trabalho. Observem a competência da atriz quando perguntam para ela se ela não tem amigos. Ainda, Chastain demonstra ainda mais talento ao conferir a Maya pequenos sinais de maior jovialidade, como nas risadinhas infantis que dá ao receber uma notícia que tava torcendo por receber. Mas o mais importante mesmo é que a atriz vai deixando que o espectador compartilhe todo o seu desgaste ao longo dos anos, tornando-a uma protagonista fascinante, contornando alguns dos tropeços desesperados de Boal para tentar desenvolvê-la, como quando recorre a diálogos expositivos e artificiais.

  No elenco, Jason Clarke também surpreende como Dan, conseguindo criar um personagem extremamente complexo e ambíguo, que não aprecia exatamente o que deve fazer, mas também não hesita em fazer o que é preciso. Todos os outros personagens, mesmo com o elenco coeso, não possuem muitos sinais de tridimensionalidade, algo que, de fato, é difícil em um projeto complexo como esse, mas não é impossível (vide A Rede Social, O Informante, Zodíaco, Munique, etc). E isso é realmente uma pena, já que o que justamente fazia de Guerra ao Terror uma obra-prima tão admirável era o mergulho absoluto proporcionado por Bigelow e Boal na psique de seus personagens, nos fazendo mais próximos à eles, enquanto compartilhávamos de suas dores e angústias, que pareciam nunca ter um fim. Dessa forma, a ligação emocional que tínhamos com aquele filme era muito maior do que a que temos com esse.

  Ainda assim, A Hora Mais Escura merece aplausos sinceros pela sua cena final, que confere ao longa uma complexidade ainda maior, além de criar uma ligação fascinante com Guerra ao Terror. O fato é que, assim como o sargento William James (Jeremy Renner) se afogava na guerra, a ponto de sua vida se definir tanto por isso e ele passar a necessitar da guerra como quem necessita de uma droga, Maya deixou qualquer sombra de uma vida pessoal para se dedicar à exaustiva caçada à Bin Laden, e quando essa finalmente acaba, ela não consegue evitar se sentir desamparada e sozinha num mundo que ela não tem mais contato: o mundo dos relacionamentos humanos. Assim, é impossível não apreciar a inteligência de Bigelow ao terminar seu filme mostrando a protagonista sozinha em um avião, sem um destino certo, e filmá-la em primeiro plano, quando essa não consegue evitar que lágrimas lhe escorram pelo rosto, numa mistura de alívio e desespero. E mais uma vez Chastain demonstra quão boa atriz é.

  Enfim, A Hora Mais Escura é um ótimo filme, que pode não chegar aos pés de Guerra ao Terror, mas nem por isso deixa de ser mais um acerto dessa parceria entre diretora e roteirista. E só o fato de possuir uma protagonista tão fascinante já é o suficiente para que eu queira revisitar esse projeto ainda várias vezes.

Nota: 8,8 / 10.0

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013


Crítica filme "Holy Motors" (Holy Motors / 2012 / França) dir. Leos Carax

por Lucas Wagner


  Talvez o melhor tipo de filme que tenha seja aquele que ainda te deixa pensando nele durante muito tempo, descobrindo coisas novas e empolgantes que enriquecem a visão que você teve no momento em que assistiu. Filmes assim podem não ser 100% compreensíveis quando o vemos uma primeira vez, e ainda podem ter elementos que continuam misteriosos até mesmo na décima vez, mas eles são fascinantes por nos envolver tanto emocionalmente quanto intelectualmente, tornando o exercício de estudar o longa um enorme prazer. E Holy Motors, de Leos Carax é um exemplo sensacional. Um filme intrigante, bizarro e envolvente que tem um poder quase magnético que nos leva a desejar desvendar seus segredos.

  O roteiro do próprio Carax acompanha Oscar (Denis Lavant), um ator que, num percurso de 24 horas, deve interpretar diversos personagens diferentes, percorrendo a cidade em sua limusine branca (perceberam ai já uma ligação com Cosmópolis?). Durante essas 24 horas, Oscar vai se transformar em diversos sujeitos diferentes, se passando por assassinos, doentes mentais, idosos, etc.

  Acima de tudo, Holy Motors é uma reflexão sobre o a profissão de um ator. Oscar é um sujeito que se entrega de forma desgastante aos papéis que representa, mudando de personalidade muitas vezes em um espaço curto de tempo. Mas, fora a atuação, Oscar é uma pessoa introspectiva e com uma séria tendência para o alcoolismo, além de parecer observar com tristeza os rumos que a Arte do Cinema vem tomando nos dias de hoje. Sua vida parece ser uma mistura de diversas outras, onde fica difícil traçar uma personalidade própria. Assim, foi genial que Carax tenha desenvolvido seu roteiro com o ator atravessando a cidade dentro de uma limusine (serviria se fosse outro carro qualquer também), numa representação perfeita da transitoriedade da vida de um ator, que deve o tempo todo se entregar a ser uma pessoa diferente, “entrando em corpos” diferentes, de uma forma extremamente desgastante, a ponto de ir deixando que seu “verdadeiro eu” seja engolido, ficando por baixo de diversas outras camadas. Assim, é lindo o momento em que Oscar (que, por sinal, é um nome genial, já que se refere a uma das maiores ambições de um ator) vai representar uma cena em que é um senhor moribundo, e ai Carax mistura ficção com realidade ao colocá-lo confundindo, como que num delírio, as diversas personalidades que assumiu naquele mesmo dia, numa clara confusão de quem ele realmente é. E como não ficar impressionado com a inteligência de Carax no momento em que Oscar vê uma determinada pessoa (importante para ele) morta, e dá um grito, enquanto corre e mergulha dentro da limusine, como que guardando toda aquela emoção forte para ser usada em uma atuação? Lindo isso.

  Nesse sentido, Carax é feliz demais ao contar com um ator tão genial quanto Denis Lavant, que entrega uma performance impecável à Oscar. Sempre com uma fisionomia séria e cansada, Lavant consegue pular com perfeição para as diversas figuras que deve interpretar, sempre conferindo características novas e empolgantes, como a voz grossa e fria do assassino, a loucura e “hiperatividade” de Merde, ou a corcunda da velha senhora. Mais ainda, ele é brilhante ao retratar o verdadeiro Oscar como uma figura mais sem graça, tristonha, meio que perdido nos rumos de sua vida. Sempre com uma respiração cansada, Oscar é um sujeito que parece realizar o trabalho mecanicamente, mas sem nunca saber quem realmente é (assim como o personagem de Pattinson em Cosmópolis).

  Mas há camadas ainda mais profundas em Holy Motors que valem a pena explorar. Não consegui conter a sensação de que talvez as metáforas tão cuidadosamente estruturadas por Carax não se referem-se apenas ao trabalho de ator, mas talvez à própria humanidade como um todo. Vivemos em um mundo onde o tempo é sempre curto, sempre estamos atrasados para um compromisso novo, sem poder parar para relaxar, refletir e realmente aproveitar a vida. A relógio é rei nesse mundo, e vivemos para trabalhar, e não trabalhamos para viver. Pensei nisso pelo fato de Carax ter colocado Oscar basicamente como um homem de negócios, se referindo aos seus trabalhos como ator como “encontros” ou “reuniões”; ele sempre tem uma pasta à mão para olhar e obter detalhes precisos sobre seus serviços. E é interessante que Carax possa levantar um questionamento como que talvez todos nós sejamos atores, assumindo diferentes personalidades no nosso dia a dia dependendo do ambiente e de com quem estamos. Colocamos diversas máscaras, escondendo nós mesmos do mundo exterior, com medo de transmitir uma imagem ruim, desagradável, mas sempre atuando para, de acordo com cada pessoa diferente, conseguir os resultados que esperamos, nem que esses sejam apenas que possamos pensar que essa pessoa gostou de nós. Vivemos em uma época em que o importante é transmitir uma mensagem. No próprio facebook, quando postamos alguma coisa, ou pelo menos quando curtimos algo, estamos tentando mandar uma mensagem para as outras pessoas; pintar um auto-retrato nosso. Assim, é fascinante que em certo momento, enquanto caminha por um cemitério como um de seus papéis, Oscar passa por diversas lápides onde, ao invés de estar escrito palavras de consolo e gratidão, está escrito: “Visite meu site”. Até na morte estamos atuando para conseguir deixar determinada impressão – que seria alcançada ao investigar os tais sites - nesse tempo que passamos aqui (e o escrito na lápide também funciona como uma observação do diretor quanto à nossa necessidade de atenção). O perigoso disso tudo é que a gente pode acabar ficando como Oscar, sem saber exatamente quem somos, já que nos escondemos sob tantas personalidades diferentes que entramos numa tremenda crise de identidade. (Lembro ainda que, em determinado momento, uma personagem sai de um carro e, sem motivo aparente, coloca uma máscara, numa clara representação do que acabei de dizer).

  Ainda, o diretor nos leva a pensar em como estamos sempre desligados do mundo real, anestesiados por uma realidade transmitida pela televisão, sem ter a decência de olhar a beleza do mundo ao nosso redor. Isso fica claro no momento em que a chofer de Oscar diz para ele ver como Paris está bonita de noite e, ao invés de olhar pela janela, ele prefere olhar por uma televisão que filma o lado de fora do carro. Ainda, a questão da anestesia do real fica brilhantemente demonstrada no momento em que um fotógrafo nem se assusta com o fato de uma pessoa ter comido os dedos de outra, mas fica correndo atrás dessa pessoa para conseguir uma boa imagem, e não para oferecer ajuda.

  Mas Carax é capaz de ir até mais fundo em seu roteiro fenomenal, e entrega uma sequência inesquecível em que vemos Oscar e uma antiga paixão (também atriz) andando por dentro de um prédio antigo, que um dia foi importante para eles. Subvertendo basicamente tudo o que estávamos vendo até então, Carax nos entrega um número musical lindíssimo que ainda serve para aumentar a atmosfera nostálgica desse momento. Ainda, a letra da canção e o que estávamos acompanhando da conversa dos dois se refere a uma temática fascinante: o passado. Ambos questionam que rumo suas vidas teriam tomado se tivessem feito escolhas diferentes, e se essas escolhas teriam mudado muita coisa no fim das contas. Não há como não apreciar a sensibilidade com que Carax trabalha essa temática na letra da canção, chamada “Who Were We?”: “Quem nós éramos? Quem nós éramos? Quando fomos quem fomos?”. De qualquer modo, não importa o que façamos, no futuro nos questionaremos se realmente deveríamos ter feito de determinada forma, e o que sobrará sempre será um resquício de nostalgia, que pregará em nós como uma tatuagem.

  Como se tudo isso não bastasse para que Holy Motors já fosse uma obra-prima de valor inestimável, Carax ainda transforma seu filme em uma reflexão sobre a própria condição deplorável do Cinema de hoje em dia. Logo em uma das primeiras cenas vemos uma platéia dormindo em uma sala de cinema, completamente desinteressada pelo que se passa na tela. Ainda, o diálogo entre Oscar e um determinado outro sujeito, na limusine, funciona como uma reflexão triste sobre a basicamente substituição da película pelo digital (e, por mais ironia que seja, o cinema em que eu estava projetou o filme digitalmente). Mais ainda, Carax parece encarar a enorme artificialidade que é o Cinema, o que fica lindamente ilustrado em diversos momentos, sendo o meu favorito aquele em que Oscar interpreta uma personagem em um filme que se passa todo em tela verde, e ele deve usar uma roupa de captura de movimentos, e chega até, nessa mesma cena, à uma simulação de sexo com uma mulher também com uma dessas roupas: essa simulação surge lindíssima e trágica, pelo ato não consumado devido às roupas, mas traduzida em uma imagem num computador como se fossem dois monstros transando.

  Não que o diretor olhe o Cinema apenas com olhos ruins. É claro que não. Ele insere diversas homenagens à clássicos franceses e ainda parece enxergar o Cinema como um mundo de sonhos, como fica claro na primeira cena do filme, quando vemos o próprio Carax em um quarto, que parece perto de um aeroporto, embora ouçamos barulho de um porto, e ele caminha até uma porta (coberta por um cenário de floresta) e insere uma chave, entrando assim em uma sala de cinema, que surge como um ambiente surreal, com bebês nus andando para lá e para cá, e até animais. E (SPOILER, continuem no próximo parágrafo) é fascinante que a chave que vemos nas mãos do diretor seja a mesma que é entregue a Oscar para voltar à sua família, como se ele estivesse voltando para a realidade. E o fato de sua mulher ser uma macaca, e seu filho também, estabelece uma simbologia fascinante com seu gosto por florestas (que fica claro em uma determinada conversa dele com a chofer) e pelo próprio cenário de floresta pelo qual Carax passa no início do longa; além disso, essa história dos macacos pode levar a um questionamento ainda mais fascinante sobre o que é realidade para cada um de nós.

  Holy Motors é uma obra-prima maravilhosa e extremamente curiosa. É um daqueles filmes que, a cada visita que fazemos, desdobra-se em mais alguns segredos fascinantes e, quanto mais maduros ficamos, mais somos capazes de compreendê-los. Desse modo, esse novo filme de Carax já tem o necessário para ser um grande clássico no futuro. Ele merece, isso é um fato.

Nota: 10.0/10.0

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013



Crítica filme "Ausência" (Without / 2011 / EUA) dir. Mark Johnson

por Lucas Wagner


  A solidão é a coisa mais assustadora e perigosa do mundo. Quando estamos sozinhos por muito tempo, passamos a descobrir coisas horríveis sobre nós mesmos, até que finalmente percamos o controle sobre nosso comportamento e nos deixamos guiar por forças desconhecidas por nós mesmos. Essa temática já gerou filmes extraordinários, sendo alguns dos melhores exemplos: O Iluminado, Taxi-Driver, Lunar, etc. Em Ausência, o diretor e roteirista Mark Johnson cria um delicado estudo de personagem, focado na solidão de sua protagonista, e ainda se atreve a investigar temáticas um pouco mais polêmicas, mesmo sem focar-se inteiramente nelas.

  Acompanhamos Joslyn (Joslyn Jensen), uma jovem que arruma um emprego como enfermeira de um idoso já quase completamente debilitado, Frank, em uma ilha. Como seu trabalho lhe dá muito tempo livre, e não tem nem internet para lhe fazer companhia, a moça começa a ficar cada vez mais sozinha, encarando pensamentos e reflexões que preferia deixar de lado, ao mesmo tempo em que encara questões complicadas como a sua própria sexualidade.

  Johnson faz um bom trabalho na direção, conseguindo mergulhar o espectador no universo tedioso da protagonista. E assim, é um acerto por parte dele o de optar por planos longos e não um número excessivo de cortes, já que dá uma atmosfera ainda mais parada para o longa (essa questão de planos longos serve tematicamente ao filme, diferente de Um Alguém Apaixonado ou Depois de Lúcia, onde o recurso parecia mais como um capricho de seus diretores do que algo que servisse à narrativa; ainda assim, adorei esses dois longas que citei, como fica claro nas críticas que escrevi sobre eles). Também é um acerto do cineasta o uso de uma profundidade de campo reduzida em diversos momentos, já que ilustra a dificuldade de Joslyn de perceber as coisas ao seu redor; nesse sentido, a cena do encontro dela com um rapaz é impecável já que Johnson matem ele todo embaçado, fora de foco, no canto esquerdo da tela, enquanto observamos a face de Joslyn enquanto o escuta falar, e percebemos e compartilhamos do tédio e falta de interesse dela. Ainda, o uso muito constante de rack focus (mudança brusca de foco) é ideal para dar uma atmosfera ainda mais difusa ao longa, o que mais uma vez ilustra com perfeição o estado “mental” da protagonista.

  O diretor também acerta no papel de roteirista, já que guia com sensibilidade o gradual processo de enlouquecimento de Joslyn. Se no início apenas a vemos andando de lá para cá sem ter o que fazer, ao mesmo tempo em que é obrigada a lidar com aspectos não muito agradáveis do papel de enfermeira de um idoso, gradualmente a vemos perdendo a noção de razão, e deixando que seus maiores transtornos tomem conta dela, principalmente devido ao tédio absoluto. No entanto, acredito que Ausência seria um filme melhor se adotasse uma atmosfera mais surrealista, de um mergulho literal na psique de Joslyn. Sim, eu apreciei o momento como aquele em que ela surta e entra numa floresta escura, mas, assim como Darren Aronofsky fez no sublime Cisne Negro, o surrealismo iria dar ainda mais força e simbolismo ao longa. Johnson até que parece flertar com uma atmosfera mais desse tipo em alguns momentos, como o fato do celular de Joslyn sempre aparecer em um lugar diferente enquanto ela dorme, sugerindo assim um caso de sonambulismo; mas acaba que não passa muito disso não, mas esse não é um grave problema do filme, de modo algum.

  Ainda assim, Johnson merece créditos por tocar em assuntos mais polêmicos, mesmo em um estudo de personagem tão introspectivo. (Aqui alguns podem achar que é spoiler, embora não acho que seja, mas como pode ser, quem não viu o filme continue no próximo parágrafo). A namorada de Joslyn morreu, mas não fica claro como; acredito, no entanto, que ela cometeu suicídio, devido a algumas pistas deixadas ao longo do filme (“você sabia que ela estava mal?” pergunta a mãe dela para Joslyn em certo momento). Uma coisa que fica clara é que ela morreu por pressão quanto à homossexualidade. Então, Johnson toca na questão da ainda difícil aceitação da homossexualidade, ainda nos dias de hoje. Mais interessante ainda é que, bem no final, quando o casal volta para a casa, Johnson faz uma crítica ao materialismo dos dias de hoje, ao mostrar os dois sem se importar com o fato de Frank estar com um machucado no rosto (devido aos tapas que Joslyn deu nele) mas sim com questões bobas como Joslyn ter colocado facas no lava-louças, ou ter desregulado o volume da Tv. E isso fica ainda mais sintomático pelo fato de a lista que a protagonista deve seguir ter sido apelidada de “Bíblia”. Interessante.

  Mas o que realmente eleva a qualidade de Ausência chama-se: Joslyn Jensen. Em primeiro lugar, mesmo que não caiba muito numa crítica cinematográfica, mas a atriz é linda, apaixonante; meiga e doce, Jensen é dona de uma beleza discreta e sensível, como se não estivesse consciente disso, o que apenas a torna mais bela. Apaixonei de novo. Mas, o que realmente interessa aqui é que Jensen é ainda uma atriz fenomenal, extraordinária, que se entrega de corpo e alma à sua personagem. Se no início a interpreta como uma moça tímida e retraída (comportamento que compreendemos mais com o desenrolar do filme), Jensen vai deixando claro o surto de Joslyn de forma gradual, como na divertida cena envolvendo controles remotos. Jensen é responsável por nos guiar na psique da protagonista e faz isso belamente, tendo o que é provavelmente seu o melhor momento no longa quando toca uma música enquanto a canta também, começando a chorar diante das lembranças que essa canção parece lhe despertar. Sentimos pena ao mesmo tempo em que mergulhamos junto dela na sua loucura, como nas estranhas brincadeiras sexuais que ela começa a fazer com Frank, o idoso, numa espécie de início de psicopatologia entre a heterossexualidade e a homossexualidade antes assumida, que só fica mais clara na cena em que se masturba em frente à uma web-cam, gritando “pau, boceta, xoxota, rola”, que só deixa mais evidente a confusão psicológica dela (observem ainda o detalhe, nessa mesma cena, em que ela diz, como se falasse para sua ex-namorada, que “você é uma vadia (slut)”, para, logo em seguida dizer “não, não, você é boa; uma garota boa e safadinha”).

  Contando ainda com um design de som impecável e certos detalhes interessantes (o esmalte desgastado na unha de Joslyn é um bom exemplo), Ausência é um filme bastante competente no que se propôe a fazer, merecendo ainda algumas “reassistidas”. É um ótimo e delicado estudo de personagem cujo maior mérito, no entanto, foi ter lançado luz à Joslyn Jensen, uma atriz que acompanharei com maior atenção a partir de hoje.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013



Crítica Filme "A Caça" (Jagten / 2012 / Dinamarca) dir. Tomas Vinterberg

por Lucas Wagner


  Uma coisa maravilhosa sobre o Cinema (e que também se aplica à Literatura) é que, como somos espectadores, podemos enxergar situações complexas e aparentemente sem solução de diferentes pontos de vista. Podemos compreender os conflitos e os interesses de diferentes sujeitos dentro de uma mesma história, e (quando é bem feito) podemos ficar tão encurralados que não sabemos em quem depositar nossa confiança, ou mesmo ficar sem como emitir um juízo de valor, já que nossa visão de “cima”, ou “de fora” daquele universo faz com que compreendamos o sofrimento de cada um envolvido, assim como “os maus entendidos”.  A Caça, novo filme de Tomas Vinterberg, é um perfeito exemplo, já que consegue deixar o espectador sem saída, já que ficamos loucos para entrar dentro do filme e contar tudo o que sabemos para aqueles personagens, que não enxergam vários pontos cegos em suas próprias histórias. E como poderiam, afinal?

  Lucas (Mads Mikkelsen) é um sujeito tímido e tranquilo, mas também triste, já que acabou de enfrentar um divórcio complicado e passa muito pouco tempo com seu filho, Marcus. Ele trabalha em uma escola de jardim de infância, onde tem um excelente relacionamento com todos, inclusive com os alunos. Uma aluna em especial, Klara (Annika Wedderkopp), filha do seu melhor amigo, desenvolve uma paixão platônica por Lucas. Quando não é correspondida, ela afirma para a diretora da escola que Lucas lhe mostrou o pênis, desencadeando um processo de destruição da vida dele, que passa a ser rejeitado por todos na pequena cidade, já que agora é visto como pedófilo.

  Como podemos observar pela própria sinopse, a questão em que os personagens estão envolvidos é muito complicada. Muitas vezes, o que uma criança diz é considerado verdade, quando se trata de assuntos tão sérios assim. Então, não podemos culpar a diretora da escola ou os pais de Klara por acreditarem nela. E ai Vinterberg até propõe um questionamento interessante: até onde as crianças são tão puras e inocentes como acreditamos ser? Embora Klara tenha ouvido seu irmão falar de “vara”, e mais ou menos saiba o que é um pênis (que ela chama de “pipi”), o ato dela foi de vingança. Pode ter sido uma história que ela criou para substituir a renegação por parte de Lucas, mas ainda foi vingança. E o que é mais interessante é que ela sente mal depois por perceber que causou mal a Lucas. Mas as crianças são seres ainda mais complexos, donos de uma imaginação extremamente fértil, e que muitas vezes adotam ideias trazidas pelos próprios adultos, sem nem saber se é verdade ou não. Isso acontece aqui no longa, quando várias crianças começam a criar histórias mirabolantes sobre Lucas. E o pior é que elas acreditam! As informações externas que recebem confundem realidade com ficção, algo que Vinterberg demonstra com perfeição na confusão “mental” em que Klara é envolvida, já que, a partir de certo momento, parece realmente achar que Lucas lhe fez algo inapropriado, mesmo que ela tenha criado a história e saiba que é mentira.

  Sabemos que Lucas é inocente, e, é claro, torcemos por ele. Ficamos engasgados de vontade de entrar no filme e provar que ele é inocente. Mas a questão é tão complicada que, embora torçamos por ele, compreendemos que ele não sabe de todas as variáveis envolvidas que levaram à acusação de pedofilia. Como ele poderia imaginar que Klara disse o que disse só porque ele disse a ela que os dois não poderiam ficar juntos? Ela é uma criança, supostamente uma criatura pura e inocente, e como ele poderia imaginar que ela fez o que fez como uma espécie de vingança? Mas ainda, não há como julgar os outros personagens que ficam contra Lucas, que o acusam e que se comportam como monstros com ele. Nós provavelmente faríamos a mesma coisa se nos deparássemos com um suposto pedófilo como ele. Realmente compadecemos pela dor deles, algo que fica bem claro no momento em que Klara está brincando com o irmão que, se parecia uma pessoa distante, muda nossa visão sobre ele no momento em que começa a chorar ao observar a irmã, já que “supostamente” perdeu sua inocência nas mãos de um monstro. Então, o que é tão torturante, mas ao mesmo tempo tão fascinante sobre A Caça é que nunca podemos realmente julgar seus personagens. É como se fosse uma bola de neve que vai ganhando dimensões monstruosas, e só nós, espectadores, sabemos como desmanchá-la, mas não podemos fazer isso, e nos contentamos com todos aqueles personagens se destruindo por um terrível erro.

  Tudo fica ainda mais complexo devido ao fato de Vinterberg desenvolver com maestria alguns de seus personagens, e de também contar com um elenco primoroso. Lucas, por exemplo, é um cara comum mas que, justamente por sua expressão sempre triste, que se alegra somente quando brinca com as crianças (talvez uma forma de substituir o filho que ficou com a ex-esposa), sempre nos identificamos com ele, o que é essencial para nosso envolvimento nos conflitos que se seguem. Mas Lucas não seria nada sem a atuação primorosa de Mads Mikkelsen, em sua melhor performance até hoje (ele é mais conhecido por ser o vilão Le Chiffre do inesquecível 007 – Cassino Royale); sempre triste e contido, Mikkelsen demonstra talento ao conferir maior vivacidade (mesmo que não exagerada, o que trairia a natureza do personagem) a Lucas em pequenos gestos, como quando recebe a notícia de que Marcus morará com ele. Mas Mikkelsen é realmente genial ao compor Lucas como um sujeito que, mesmo sob ataque, permanece passivo, sofrendo solitariamente, mas com uma violência latente, que mantém escondida talvez justamente pelos efeitos destrutivos que essa poderia gerar. Mas ele não se segura completamente e, em alguns momentos deixa um pouco dessa violência extravasar, já que o nível de humilhação já passa dos limites, como na cena do supermercado e a da igreja. Essa cena da igreja, aliás, já seria suficiente para que Mikkelsen recebe-se todos os prêmios do mundo, já que o ator atinge a perfeição absoluta no choro contido do personagem que explode de uma maneira que ele não consegue segurar mais.

  E se Mikkelsen está genial, o ator que interpreta seu melhor amigo (cujo nome não sei, nem do ator e nem do personagem) está fascinante também, conseguindo criar um personagem extremamente complexo, envolvido em uma situação estressante e ambígua, e onde não sabe agir direito. Já a pequena Annika Wedderkopp também surpreende como Klara, já que, mesmo tão novinha, é perfeita e talentosa para interpretar uma personagem tão complexa e confusa como Klara.

  Enriquecido por uma fotografia genial de Charlotte Brus Cristensen, com seus ambientes frios e pouco convidativos, A Caça alcança status de quase uma obra prima pelo seu terceiro ato, onde Vinterberg não perdoa nem o espectador e nem seu protagonista, ou qualquer outro personagem, já que parece enxergar uma hipocrisia enorme no comportamento daqueles indivíduos, ao mesmo tempo em que encara de frente a mancha que, por contingências complexas, acabou transformando a vida de Lucas em um verdadeiro inferno.

Nota: 9.8/10.0

sábado, 9 de fevereiro de 2013



Crítica filme "Depois de Lúcia" (Despúes de Lucía / 2012 / Méxivo, França) dir. Michel Franco

por Lucas Wagner


  Alejandra é uma adolescente comum, que adora sair com os amigos, estuda e de vez em quando puxa um baseado. Sua mãe morreu em um acidente de carro, o que levou seu pai à um comportamento mais introspectivo, depressivo. Para mudar de ares, eles se mudam para outra cidade, e Alejandra passa a estudar em uma nova escola, onde faz novos amigos. Numa noite, depois de beber muito, ela e seu amigo José transam, e ele filma tudo, com ela sabendo, mas sem se importar. Esse vídeo vaza na internet, e Alejandra vai sendo cada vez mais reprimida e agredida, a ponto de quase explodir.

  Vemos esse tipo de coisa até que com certa frequência na mídia ou em meios acadêmicos, e sempre manifestamos desgosto e repugnância. Mas é certo que o impacto que esses meios traduzem para questões como essa é bem menor do que o impacto que o Cinema pode trazer. Como já disse o filósofo Julio Cabrera, o Cinema atinge o espectador com verdades até mesmo comuns só que com uma força que um livro de sociologia ou psicologia nunca seria capaz de trazer. Te atinge no estômago. E esse talvez seja o maior mérito desse Depois de Lúcia, do mexicano Michel Franco, que enxerga o bullying e sua força destrutiva com crueza e brutalidade, ainda enxergando a ambivalência do adolescente nesse processo.

  Franco parece querer estabelecer uma atmosfera de normalidade durante a maior parte do tempo, enxergando momentos prosaicos na vida dos seus personagens, de modo até mesmo para desenvolver o universo em que estes vivem. Assim, vemos diversas cenas em que Alejandra e seus amigos jogam conversa fora, contam piadas, e em outra vemos a protagonista com seu pai assistindo um filme no computador logo depois de comerem pizza. Franco ainda acerta na primeira cena do longa, no longo plano que acompanha o pai de Alejandra tirando o carro do mecânico, até que do nada para, tira as chaves, e sai do carro, deixando-o no meio da rua. A meu ver, embora recebamos uma explicação do porque disse posteriormente, Franco procurou nos acostumar com uma cena normal do dia a dia (uma pessoa dirigindo um carro) para logo depois arrebatar-nos com algo tão estranho quanto o que acontece logo em seguida; o que parece ilustrar com perfeição o próprio caminho que a narrativa segue ao mergulhar a vida normal de Alejandra na tortura do bullying. No entanto, é meio broxante que Franco, assim como Kiarostami fez em seu ótimo Um Alguém Apaixonado, pareça cozinhar seu filme em fogo baixo, num ritmo extremamente parado, sem quase nunca mover a câmera ou arriscar um plano mais fechado, o que acaba tornando o longa um pouco maçante, já que tal estilo não encontra qualquer propósito narrativo. Qual, por exemplo, é o sentido do diretor demorar tanto tempo em planos como o final, quando o pai volta para terra firme com uma lancha? Mas acaba que, no fim, esse problema não incomoda muito.

  Mais interessante é como Franco vai desenvolvendo Alejandra e seu pai. Se o pai vai se afundando numa sufocada depressão depois da morte da mulher, algo que o impede de pelo menos suportar a presença de outras pessoas vivendo seu cotidiano normalmente (como fica belamente ilustrado no momento em que pede demissão de seu serviço simplesmente porque estava ouvindo seus funcionários conversarem casualmente, o que o irritou), Alejandra já parece mais conformada, e vive a vida normalmente, mesmo que ainda sofra pela mãe, como podemos perceber quando ela afasta o assunto da mãe quando conversa com as amigas. Esse modo de trabalhar a protagonista, com seu sofrimento calado, sem incomodar os outros, se revela eficaz para que Franco possa garantir ainda mais impacto à tortura que passará a seguir a personagem. Quando começa a sofrer bullying, a protagonista não parece afundar de uma vez no desespero, mas fica mais na dela, meio que torcendo para que aquilo acabe logo, se desesperando silenciosamente quanto mais a tortura aumenta. E como qualquer adolescente (ainda mais uma garota) Alejandra não se abre para o pai (que, sofrendo com seus próprios problemas, parece incapaz de enxergar a filha direito) e nem com qualquer outro adulto.

  Mais curioso, porém, é o trabalho de figurino. Dá para enxergar que todos os adolescentes, ou adultos, usam cores mais escuras, sombrias, e só Alejandra, a que mais sofre que, paradoxalmente, usa as cores mais felizes ao longo do filme. Acredito que Franco traçou essa ideia como forma de ilustrar a protagonista como elemento inocente, claro, num mundo sombrio e ameaçador. E é fascinante que, mais pro terceiro ato, Alejandra passa a usar cores mais sombrias, representando sua dor e perda da inocência.

  O mais interessante, porém, desse Depois de Lúcia, é o modo como Franco explora a adolescência. É muito provável que aqueles jovens não sejam exatamente pessoais ruins, mesmo tendo comportamentos deploráveis, mas que sejam simplesmente imaturos e não saibam a extrema dor que causam à colega. Não é atoa que se desesperam quando percebem que podem ter feito algo terrível, que trará consequências irremediáveis para o resto da vida. A adolescência é a fase mais estranha da vida, onde nada faz muito sentido, algo que fica bem evidenciado por Franco quando, numa festa, um casal começa a se pegar de uma maneira extremamente explícita, quase transando: nesse momento, Franco coloca o casal no ponto de fuga esquerdo da tela, para chamar menos a atenção. A questão é que, se através de um vídeo de Alejandra transando todo mundo começou a torturá-la, por que quando uma transa aconteceu quase que na frente deles ninguém notou? E está ai uma das muitas contradições presentes na adolescência: por que algo em vídeo, distanciado, pareceu ter tanto impacto a mais do que algo ao vivo? Por que certas coisas polêmicas causam tanto choque e outras não?

  E, se Depois de Lúcia não é uma obra-prima, e nem seja tão genial quanto parece achar (o filme acaba sendo bem presunçoso), Michel Franco merece todos os aplausos do mundo por um plano em especial, quando vários adolescentes (inclusive Alejandra) entram em um mar turbulento, de noite. Enquanto todos brincam e se divertem, sem se importar com as fortes ondas, Alejandra vai se deixando arrastar, sem se importar ou conseguir tomar alguma atitude; esse plano é magistral pelo seu valor simbólico: a adolescência é uma época conturbada, turbulenta (o mar), mas que a maioria não encontra muita dificuldade, já que estão sempre se divertindo com seus amigos, numa “eterna” farra; mas para alguns a turbulência do período da adolescência é muito maior, já que estão sozinhos, e são inevitavelmente engolidos pelos problemas que os rodeiam, sem ter caminho de volta, e tendo toda sua vida comprometida.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013



Crítica filme "O Som ao Redor" (O Som ao Redor / 2013 / Brasil) dir. Kléber Mendonça Filho

por Lucas Wagner


  Em certo momento de O Som ao Redor, o diretor Kléber Mendonça Filho cria um raccord impecável no qual vemos prédios tipicamente de classe média, e corta para um plano no qual vemos várias garrafas de cerveja em cima de uma mesa, o que já funciona como uma metáfora extraordinária para essa sua obra-prima. Afinal, se O Som ao Redor é um filme praticamente experimental em questão de estilo e do fazer cinematográfico, funciona ainda como uma reflexão extremamente profunda sobre a classe média (não só a brasileira, mas qualquer uma).

  A classe média não é como as classes mais baixas ou as mais altas, e talvez seja por se colocar justamente no meio dessas que seja provavelmente a mais complexa. É claro que as outras sofrem com muitos problemas particulares (isso é absolutamente inegável), mas a classe média não possui um lugar tão bem definido, tão certo, e parece sofrer de crise de identidade. Essa crise não vem apenas devido a estar entre as outras, mas por sofrimentos particulares, frustrações, sonhos mortos, individualismo, solidão, desespero (muitas vezes calado) que muitas vezes vão matando o que há de mais humano em seus componentes, até que chega o momento de suas mortes físicas, e estes devam encarar que na verdade sua existência não foi grande coisa afinal. E é por isso que o raccord que comentei no parágrafo anterior é tão brilhante, já que liga a existência na classe média com um dos modos mais comuns de se procurar aliviar a tensão do dia a dia: o álcool.

  Mendonça Filho tem um olhar apurado que não deixa escapar aspectos mais simples e delicados da vida na classe média, e isso fica provado ao acompanhar com cuidado a rotina da personagem Bia. Mas o olhar do diretor é mais profundo e ele não se acanha em mergulhar em aspectos da essência dos componentes dessa classe, e uma das teclas que o diretor mais parece apertar é a da solidão. Nas sociedades modernas a solidão é uma constante; parece que ao mesmo tempo em que estamos cercados de pessoas, estamos também mais sozinhos. E na classe média pode ser ainda mais sintomático graças à própria indefinição desta, que não tem grandes impasses econômicos como as classes mais baixas (embora a preocupação financeira seja quase sempre uma constante para a classe média) e nem dinheiro suficiente que os afastam de seus iguais, e torna todos ao redor possíveis inimigos, como é o caso com as classes mais altas. Dentro dessa luta para se estabelecer, os integrantes da classe média representados aqui (que são, é claro, um recorte da realidade factual) parecem sempre buscar o conforto no outro, nos relacionamentos, mas, quando esses casais estão juntos, não envolvidos em alguma atividade sexual, parece não haver química, e nem diálogo, e, no entanto, não pode-se negar a influência esmagadora que essas pessoas que namoramos (ou apenas ficamos) exercem sobre nós, mesmo que pareça impossível que nos abramos para elas e demonstremos a dimensão de nossos sentimentos. Assim, Mendonça Filho parece refletir sobre o individualismo em que vivemos, particularmente sua classe sob enfoque, em que esse assume proporções mais ambíguas devido à sua indefinição.

  Diante disso, o título do filme ganha contornos de pura genialidade, já que vários dos momentos de maior prazer de seus personagens parecem vir acompanhados de uma cacofonia de sons que incomoda, ao mesmo tempo em que foge do silêncio opressor que parece acompanhar o longa praticamente o tempo inteiro. Um exemplo claro para ilustrar isso é Bia, que, dona de casa e mãe de dois filhos, parece viver uma existência infeliz (embora ela mesma pareça não notar isso), melhorada apenas quando fuma um baseado (e soprando a fumaça por um aspirador) ou se masturba com a ajuda de uma máquina de lavar roupas (sim, exatamente isso que você leu). Nesses momentos, o longa se enche dos sons do aspirador e da máquina. Ainda essa teoria fica mais forte quando vemos Francisco saindo de seu apartamento no meio da noite para nadar em um mar agitado, e o som do mar fica quase insuportável. Mas por que isso? Aparentemente para Mendonça Filho poder ilustrar que os prazeres mais simples vividos por aqueles personagens parecem vir quase como que com culpa, já que esses estão fugindo da rotina opressora em que vivem, ultrapassando normas sócias “de bom gosto” para poder satisfazer anseios seus. Aliás, o design de som de O Som ao Redor é algo de outro planeta, já que mergulha o longa no silêncio durante a maior parte do tempo (até os diálogos parecem que estão em volume baixo), para depois surgir com sons fortes para ajudar a estabelecer ideias. Assim, se alguns prazeres de Bia surgem sob cacofonia (como a máquina de lavar roupa), outras vezes surgem sob sons de músicas bonitas, enquanto Mendonça Filho a enfoca em primeiro plano (e é inesquecível o momento em que ela vai começando aos poucos a cantar junto com a música, como se estivesse se livrando de sua rotina para entrar num raro mundo de prazer), sugerindo diferentes tipos de prazer que possuem diferentes significados no cotidiano. E o que dizer então da tensão gerada pelo ranger do elevador no final do filme? Fantástico. Ainda vale ser ressaltada a sabedoria de Mendonça Filho ao enfocar seus personagens muitas vezes atrás de grades, ou de colocar azulejos na casa que pelo menos lembram grades, o que possui um significado até que claro depois do que já falei nessa crítica.

  Uma das coisas mais marcantes no que diz respeito à classe média é sua completa falta de lugar também no que se refere à visão da realidade, já que parecem viver em um mundo próprio fora do que acontece no resto de sua nação, sem contar o egoísmo que parece mais forte num mundo onde todos parecem só olhar para si mesmos. Mendonça Filho é eficiente de novo ao retratar esses aspectos da classe de forma crítica e objetiva, algo que fica claro na cena da reunião de condomínio para demitir um funcionário já de idade: nessa cena, cada personagem parece estar infectado por uma visão de mundo que não quer deixar de lado, que parece olhar somente para si, sem contar com os malefícios e a injustiça que significaria demitir o funcionário; e a situação fica ainda mais sintomática quando o único que poderia mudar essa situação prefere esquecer-se dela para dedicar tempo ao prazer próprio. Além disso, o constante medo e neurose que muitos membros dessa classe tem de serem assaltados ou que pessoas mais pobres as ataquem fica bem ilustrada na cena em que uma menininha imagina uma grande quantidade de bandidos entrando no quintal de sua casa (e é interessante que tal imagem tenha vindo de uma criança, já que evidencia com mais força ainda o quanto essa neurose está incrustada). E o diretor ainda acerta ao não deixar de lado o fato de que muitas vezes são jovens da própria classe média quem comete vários crimes, que são imediatamente relegados a pessoas de classes mais baixas (pelo próprio senso comum).

 Ainda assim, Mendonça Filho consegue mergulhar ainda mais fundo na sua visão crítica e revelar diversas das contradições e ambiguidades presentes no mundo da classe média, enquanto ainda é capaz de colocar um espelho na cara no espectador, revelando nosso próprio preconceito em ação. E isso pode ser muito bem ilustrado pela fantástica sequência em que uma mãe, com a filha, procuram um apartamento, ao mesmo tempo em que um garotinho joga bola na rua: o apartamento é ajeitado, mas precisa de uma boa reforma, já que parece até meio acabadinho, mas já o consideramos em alta pelo visual; já o garoto jogando bola tem aparência que imediatamente associamos com pobreza. Depois de perder sua bola, o garoto volta para casa, e o acompanhamos em plano sequência. A questão é que sua casa é linda (mas de classe média), inclusive muito mais bonita do que o apartamento que acabamos de ver (aonde a mãe usa uma desculpa esfarrapada para conseguir desconto). Nessa sequência ainda, o cineasta é capaz de demonstrar as diversas faces da classe média, que hora se parece mais com os ricos, hora se parece mais com os pobres, mas que muitas vezes se torna mistura dos dois. Ainda é interessante que o garotinho sempre pareça perder sua bola ao longo do filme, de uma forma ou de outra, já que já o mostra sendo castrado de seus prazeres desde jovem. E é impossível não admirar Mendonça Filho ao retratar a ambiguidade de Bia, que parece sempre infeliz, mas nem sempre apreciando o óbvio carinho que seus filhos tem por ela.

  Mas o que realmente torna O Som ao Redor uma obra-prima de dimensões continentais é a mudança de rumo narrativo adotada por seu diretor, que, se de início parece sempre focar-se no realismo, analisando friamente seu objeto de estudo, a partir de certo momento adota uma abordagem mais intrapsíquica dos personagens, explorando suas frustrações em nível mais subjetivo e, muitas vezes, poético, embora nunca perca a objetividade. Assim, um personagem sai de casa e, num flashe, enxerga sua rua como se fosse a de sua infância, e, em outro momento (até mesmo assustador), um outro personagem tem um pesadelo macabro onde está tomando banho de cachoeira, feliz, e de repente as águas que o banham se transformam em sangue. Se a primeira imagem já reflete a visão de uma época mais nostálgica e cheia de possibilidades, a segunda nos surpreende como uma manifestação simbólica das frustrações que corroem o personagem. E não há como negar a beleza absurda do simbolismo no momento em que João e Sofia estão no quarto da última, e esta enxerga as figuras de estrelas que tinha pregado no teto quando criança; então, o namorado a levanta no colo para que ela possa tocar novamente essa estrela infantil (entrar em contato com sua infância e as possibilidades e inocência desta, pelo menos mais uma vez), antes que ela se perca para sempre, já que a casa será demolida. Mendonça Filho parece querer enxergar a diminuição das possibilidades advindas com o envelhecimento, quando a carga de toda a nossa vida pesa, e o número de frustrações que vivemos vai se acumulando, principalmente diante da perspectiva de se fazer parte da classe média, que mais parece um eterno limbo para se alcançar uma classe mais alta, que sempre parece mais longe com o acúmulo de dívidas e a rotina, além do distanciamento de nós mesmos, como comentei, nos levando a ser mais e mais individualistas.

  Assim como disse quando escrevi sobre o inesquecível Amor, é muito provável que não tenha conseguido captar logo de cara toda a genialidade desse trabalho. Há muitos detalhes que ainda precisam ser desvendados por mim nessa obra-prima máxima de Mendonça Filho. Mas posso afirmar com certeza de que esse é o melhor filme brasileiro de muito, muito tempo (melhor até do que os maravilhosos O Palhaço ou Tropa de Elite 1 e 2), e é um dos melhores de qualquer país que passou nos últimos anos. Poucos filmes são capazes de levar o espectador à uma visão tão absurdamente profunda e complexa de algo que está tão próximo de nós. De fato, até agora em 2013, esse é o único capaz de combater Amor como filme mais admirável do ano. E o mais surpreendente é que ainda estamos em fevereiro.


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013


Crítica filme "Colegas" (Colegas / 2013 / Brasil) dir. Marcelo Galvão

por Lucas Wagner


  “O filme não é sobre síndrome de Down. É uma história divertida que, por acaso, tem três jovens com síndrome de Down como protagonistas” disse o diretor Marcelo Galvão. E ele acerta ao escolher uma abordagem assim para seu filme Colegas, já que desse modo evita martelar lições de moral batidas como que devemos sempre respeitar os deficientes mentais, e tratá-los como seres humanos como todos. Desse modo, ao evitar enfocar suas debilidades, ele respeita muito mais seus próprios protagonistas, e cria uma narrativa doce e engraçada que, sem propósitos maiores do que simplesmente divertir, acaba se saindo bem.

  O filme conta a história de três amigos com síndrome de Down que vivem numa casa de apoio, trabalhando como organizadores da videoteca. Com esse trabalho, eles acabam se tornando cinéfilos, e um dia decidem seguir as dicas de um de seus filmes favoritos, Thelma & Louise de Ridley Scott, e fogem da casa, decididos a empreender em uma viagem com o objetivo de realizar o sonho específico de cada um dos três.

  Marcelo Galvão despeja aqui diversas referências e homenagens a diversos filmes que, obviamente, é fã. Assim, os personagens dizem frases famosas do Cinema a torto e a direito, como “Say hello to my little friend” (Scarface) ou “Comi o fígado dele com favas e um bom vinho” (O Silêncio dos Inocentes), etc, com o diretor se aproveitando do fato de deficiência dos protagonistas para permitir que eles digam esse tipo de coisa quando nem mesmo faz sentido no contexto da cena. Porém, como muitos que leem minhas críticas sabem, sou muito mais fã da sutileza, e assim as homenagens que mais apreciei foram aquelas feitas de modo quase subliminar, como a de Psicose (o obviamente psicopata que é atendente em um hotel, e que aparenta ter “problemas maternos”) ou quando podemos observar que o cabelo e a pistola de um dos policiais que caçam os três protagonistas remete diretamente ao Dirty Harry.

  Empregando um tom leve na narrativa, Galvão busca transformar Colegas quase como que num conto de fadas, com seus personagens para lá de inocentes, as situações fantasiosas e as cores sempre fortes e variadas (o campo de girassóis é particularmente bacana). E essa lógica se apresenta até mesmo em momentos de olhar mais “artístico” do diretor (como ao filmar os momentos em que os três protagonistas estão na casa de apoio, no inicio do filme, com quadros centralizados e câmera estabilizada, para demonstrar maior mecanicismo naquela rotina) ou em momentos que são até mesmo críticos (como quando vemos uma repórter mudar bruscamente de assunto durante um jornal, falando, com um sorriso no rosto, sobre um acidente que matou várias pessoas). E esse tom leve coaduna perfeitamente com o humor juvenil do longa, capaz de agradar todo tipo de gente, e que de vez em quando arrisca algo mais pesado.

  No entanto, Galvão não consegue ser tão feliz quanto aos seus protagonistas. Galvão de fato, é inteligente para retratá-los com extrema doçura que, automaticamente, já nos aproxima deles; além disso, o diretor ainda acerta ao enfocar a inocência deles (o que já os perdoa dos atos que cometem durante o filme) e a infantilidade, algo que se reflete na própria natureza dos sonhos deles, tão bem representadas no primeiro ato. Porém, eles não são figuras tão marcantes, e nem são tão bons protagonistas assim. O romance entre Stalone (Ariel Goldenberg) e Aninha (Rita Pokk), por exemplo, é extremamente artificial e mal desenvolvido, com o diretor apostando que o adoraremos simplesmente porque o casal tem síndrome de Down. Eles são muito sem personalidade, algo que apenas Breno Viola como Márcio consegue pontualmente melhorar, em cenas mais engraçadas e surpreendentes, como aquela em que consegue transar com uma desconhecida.

  Se Goldenberg e Pokk não podem fazer muito com Stalone e Aninha, e Viola pode fazer algo mais pelo seu Márcio, quem realmente fica com personagens interessantes são os policiais, que protagonizam as cenas mais engraçadas do filme. Mas o resto do elenco é mais desperdiçado, conseguindo impedir até mesmo que um ator como Lima Duarte consiga criar um personagem mais complexo.

  Divertido e descomprometido, Colegas é um filme bacana que cumpre quase que perfeitamente seus objetivos, e por isso mesmo merece ser assistido. Melhor assistir uma comédia como essa, realmente valorizando o Cinema brasileiro, do que fingir que o valoriza assistindo porcarias como De Pernas Pro Ar.