sexta-feira, 25 de outubro de 2013


Crítica O Conselheiro do Crime (The Counselor / 2013 / EUA) dir. Ridley Scott

por Lucas Wagner

  O Conselheiro do Crime é um filme estranho, para dizer o mínimo. Usando uma máscara de thriller de suspense/ação, o longa é mais uma desculpa para seu roteirista, Cormac McCarthy, estreante na função (ele é romancista), discorrer sobre temas profundos e complexos, utilizando-se de diálogos exemplares. Assim, mesmo imperfeito, O Conselheiro do Crime é uma obra que desafia os costumes e clichês de Hollywood, deixando de lado a adrenalina para apostar na reflexão.

  Na trama, o advogado interpretado por Michael Fassbender pretende se casar com a bela Laura (Penélope Cruz), e para isso suas economias precisam aumentar. Decidido a explorar os caminhos criminosos oferecidos por sua profissão, o advogado se une a Westray (Brad Pitt) e Reiner (Javier Bardem) e, por cima de tudo, a perigosa famme fatale Malkina (Cameron Diaz).

  Encontrando certa dificuldade para fazer a transição para a Arte enxuta que é o Cinema em comparação à Literatura, McCarthy despende um tempo desnecessário em mostrar cenas no deserto, com pessoas de rosto marcado e sofrido que trabalham no transporte das drogas. Pelo menos essas cenas criam um bom contraste com aquelas que mostram o luxo das pessoas de alto escalão envolvidas no negócio. Também é problemático que, acostumado à descrição e não ao trabalho audiovisual do Cinema, McCarthy não demonstre finésse na construção de, por exemplo, pistas e recompensas, que aqui surgem inseridas bruscamente em diálogos e não em imagens (me refiro, é claro, à descrição do mecanismo da corda de aço).

  McCarthy, no entanto, trás para a obra um talento mais literário que a enriquece. O autor explora temas extremamente violentos de uma forma visceral, mas também trazendo uma certa sensibilidade que enxerga a condição humana por trás de todo o sangue, como é evidente em livros seus como Onde Os Fracos Não Tem Vez, Meridiano de Sangue ou A Estrada. Seus personagens são brutais, condicionados à uma realidade darwiniana onde quem não se adapta, morre. Em O Conselheiro do Crime, McCarthy resgata muito da melancolia e violência de suas obras literárias, e estrutura o longa não a partir de reviravoltas ou sequências de ação, mas de diálogos e monólogos que, à primeira vista, parecem desconectados do todo, situação que muda quando percebemos que esses diálogos e monólogos são o todo.

  Essas falas são escritas com soberba maestria pelo roteirista, explorando temas como a morte, a culpa, a redenção e a violência. Trazendo sua brutalidade típica, o autor consegue trazer algumas peças singularmente poéticas (“Presentear uma mulher com uma joia é reconhecer sua imperfeição, ao mesmo tempo em que reconhece a nobreza dessa imperfeição”), dissecando com perfeição a personalidade dos personagens (o primeiro diálogo de Malkina e Reiner é sublime), e ainda conseguindo tocar esferas profundas da condição humana, conferindo ao longa um tom quase apocalíptico em sua melancolia.

  Mas se parece que o roteirista viaja à deriva sobre diversos temas, ele na verdade ancora em um que não tinha investigado tanto antes em sua carreira: as mulheres e, mais evidentemente, o poder que essas tem sobre os homens. O Conselheiro do Crime é um longa cujas figuras mais marcantes são as femininas. Pode-se observar que a grande maioria dos diálogos tratam do relacionamento dos homens com as mulheres, e muitas vezes aprofundam em temas relacionados à perversão sexual. E se figuras imponentes e poderosas como Westray e Reiner tem um ponto fraco, esse é o sexo oposto, algo que fica bem evidente no primeiro diálogo de Westray e o protagonista. Este que, aliás, vive sob o controle (não aversivo, no entanto) de sua noiva, Laura, que é seu mundo e vida (“A vida é estar na cama com você. O resto é só espera”, diz ele em certo momento).

  As personagens femininas do filme são Malkina e Laura, figuras completamente opostas. Laura é uma mulher doce e religiosa, cuja sexualidade só é liberada com seu noivo, e ainda assim, não é de forma toda escancarada, mas com um certo indício de culpa, o que a torna até mais charmosa. Observem a cena inicial, dela e o noivo na cama, e enxerguem os elementos: a excitação abundante (comentada pelo protagonista) e quando, depois de admitir querer sexo oral, tentar fugir. Para isso, a linda Penélope Cruz tem uma performance ideal, compondo Laura como uma criatura sensível e tímida, permitindo que o espectador compreenda a forte paixão que o protagonista nutre por ela.

  Se Laura é um anjo, Malkina é o demônio, e por isso mesmo, mais tentadora ainda. Mulher forte, poderosa, segura de si e cheia de energia sexual, Malkina parece procurar o máximo prazer orgástico que pode sentir, extraindo-o de seu cotidiano através do poder que sabe ter sobre os outros. Assim, é interessante que, ao notar a timidez de Laura, Malkina assuma uma posição de predadora e comece a se insinuar para a moça, demonstrando desejo à ela principalmente para ver sua reação (e o modo com tem seu corpo nu – e que corpo! – enrolado em toalhas, é altamente sensual). Movida pelo sexo, Malkina é como uma Cleópatra que fica jogando com seus súditos, observando todo o quadro a partir de uma posição superior, movendo as peças do jogo de modo a se beneficiar e massacrar os outros, simplesmente porque isso lhe excita. E é por isso que o momento em que “fode uma Ferrari” (isso mesmo que você leu) é tão icônico: ao mostrar a mulher (antigo sexo frágil) fodendo um símbolo de potência, força e virilidade como a Ferrari, Malkina se sobrepôe à máquina como criatura superior, pois com o sexo conseguiu “destruí-la” (e é sintomático que a mulher tenha chegado a gozar nesse momento). Mais fascinante é que McCarthy sugira algo de seu passado através do já citado primeiro diálogo dela com Reiner no filme; sem escancarar nada, fica claro que ela já sofreu o suficiente para adquirir resiliência e uma frieza que oberva como um modo natural de enxergar a realidade (“A verdade não tem temperatura” ela diz).

  E se Malkina é uma figura tão fascinante, muito disso se deve à impecável performance de Cameron Diaz, provavelmente a melhor de sua carreira (que até então não tinha nada muito singular). Ciente de sua beleza e sexualidade, Diaz encarna Malkina com uma entrega impressionante, não ficando com o pé atrás nem em cenas mais “tensas” e convencendo a todo momento sobre a imponência e poder dessa mulher tão intensa, nunca deixando o espectador duvidar de suas intenções e do que ela seria capaz para alcançá-las. Diaz tem uma presença de cena tão forte, tão intensa, que eu não hesitaria em indicá-la ao Oscar de Melhor Atriz, já que sua atuação não é só a melhor desse filme, mas uma das melhores do ano.

  Portanto, temos Laura e Malkina como dois tipos opostos de mulheres, mas que, a seu próprio modo, controlam os homens. No entanto, é inegável que Malkina seja a mais “adaptada” (trazendo para o contexto darwiniano dos livros do autor), e para se notar isso é só prestar atenção no desenrolar da história. Ela é uma mulher que se sobressaiu em um mundo de homens (o mundo do crime, dos negócios, do dinheiro), conquistando seu espaço com ferramentas únicas e repletas de veneno, o que deixa mais significativo seu momento “íntimo” com a Ferrari. Como reflexão pessoal, acredito existir esses dois tipos de mulheres na vida real, e inclusive, duas das que me relacionei encaixariam com perfeição uma no perfil de Laura e outra no de Malkina, e mesmo que a “Laura” tenha mexido comigo, foi a “Malkina” quem realmente entrou na minha cabeça, me manipulou, me destruiu e, no entanto, a que mais marcou minha vida até então.

  O elenco masculino não fica atrás das duas tão invejáveis performances femininas, embora nenhum dos homens tenha uma atuação tão marcante quanto a de Diaz. Javier Bardem se diverte como Reiner, conseguindo trabalhar bem a bizarrice do sujeito, mas também sua inferioridade/submissão frente à Malkina. Michael Fassbender trabalha muito bem a devoção à Laura e a ambiguidade moral do protagonista, ressaltando sua insegurança e falta de preparo para entrar no perigoso terreno onde está se aventurando, permitindo assim certa fragilidade para que o espectador se aproxime do personagem. Brad Pitt tem uma performance excepcional como Westray, sujeito extremamente ambíguo e complexo, com uma tremenda autoconfiança adquirida em anos de experiência, que o permitiu aceitar o que tem, valorizando a própria vida, numa calma e complacência que podem revelar certa agressividade latente (represada com dificuldade), que só se evidencia mais depois de ser muito provocado (como no seu último diálogo cara-a-cara com o protagonista). Vale dizer, ainda, que foi um lance de gênio do diretor Ridley Scott contratar o ator Dean Norris para ser um traficante de drogas, já que isso funciona como piadinha interna para os fãs da minha tão amada série Breaking Bad, onde Norris interpretou o policial da DEA Hank Schrader, o chefe na caça ao grande imperador das drogas Heisenberg.

  Falando em Scott, o diretor acerta ao reconhecer que o astro em ação aqui é McCarthy, e investe numa direção que não chama muita atenção para si (algo raro para esse cineasta). O diretor investe num uso exacerbado da violência gráfica para ressaltar o perigo daquele universo (a morte de um personagem no final do terceiro ato é assustadora) e utiliza muito bem a belíssima trilha sonora de Daniel Pemberton, além de demonstrar inteligência no trabalho de figurino do protagonista, que parece usar tons claros perto de Laura e tons mais escuros quando cuidando de seus negócios, ressaltando sua dualidade. No entanto, Scott bem que poderia ter cortado fora as horas de filmagem do transporte de drogas no deserto, enxugando mais o longa. Mas fazer o que, não é? Vale ainda dizer que a fotografia de Dariuzs Wolki é belíssima na composição das imagens do deserto e sugestiva no seu jogo de luz e sombras.

  Massacrado pela crítica especializada, não temo em defender O Conselheiro do Crime como uma obra complexa, erótica e corajosa por ir contra padrões hollywoodianos, conseguindo ainda fechar com chave de ouro numa impecável cena de diálogo que traduz, de forma simbólica (como a história dos leopardos), a ironia de tudo aquilo, finalizando com crueza e crueldade a vitória do melhor adaptado e do poder das mulheres sobre os homens.

*Outras críticas minhas de filmes dirigidos por Ridley Scott:

  

quarta-feira, 23 de outubro de 2013


Crítica Serra Pelada (Serra Pelada / 2013 / Brasil) dir. Heitor Dhalia

por Lucas Wagner

  Quando escrevi sobre o pavoroso 12 Horas, comentei que este tinha sido um primeiro e isolado tropeço do excelente cineasta brasileiro Heitor Dhalia, e elaborei diversas formas de defendê-lo, mesmo diante de um filme tão horrível. Afinal, Dhalia já tinha dirigido obras-primas extremamente complexas e fascinantes como Cheiro do Ralo e À Deriva. Mas com esse Serra Pelada o diretor não conseguiu se reerguer, e confirma que sua decaída parece ser mais estável do que parecia.

  O fraco roteiro de Dhalia e Vera Egito acerta quando se foca em explorar o panorama da situação do garimpo em Serra Pelada, na complexa estrutura social que foi se criando, assim como a Máfia que foi se formando. Também, o contexto de uma terra sem lei é trabalhado na política “olho por olho, dente por dente” que inevitavelmente se desenvolve, assim como o sexo e violência descontroladas que vão tomando forma. Nessa perspectiva, Dhalia acerta ao inserir diversas imagens de arquivo que ressaltam o fato de estarmos vendo uma história real. Infelizmente, o roteiro vai gradativamente deixando de lado essa narrativa panorâmica, optando por focar-se na escrotíssima história dos ridículos personagens principais, Juliano (Juliano Cazarré) e Joaquim (Júlio Andrade), fazendo de Serra Pelada um verdadeiro exercício de paciência.

  A relação de Juliano e Joaquim se baseia na amizade de infância que os dois tem, e no afastamento que vão sofrendo por influência das mudanças que o poder e o dinheiro vem trazendo. O grande problema é a maneira incrivelmente porca com que são desenvolvidos, tanto individualmente quanto como dupla. Joaquim é um personagem unidimensional e clichê, cujas motivações e conflitos se baseiam no batido drama do homem honesto e incorruptível; e se certa potencial ambiguidade é demonstrada quando vai adiando voluntariamente sua volta para casa, o personagem morre aos poucos quando se torna um estorvo, sem propósito ou alguma característica genuinamente humana e realista, castrando o esforçadinho ator Júlio Andrade de levar Joaquim para algum lugar. Já Juliano é um personagem completamente...ridículo, podre. Burro até a alma, o arco dramático do personagem nunca (nunca!) chega nem perto de convencer, principalmente pela maneira atropelada e juvenil com que é “desenvolvido” (a fala “Eu gostei de matar” é indescritível em sua mediocridade); assim, toda a trajetória de vilão parece criada por deficientes mentais, já que o personagem vai passando por decisões e mudanças tão bruscas que atingem o espectador na cara com toda a inverossimilhança da coisa. É difícil acreditar que o responsável por algo tão delicado como À Deriva tenha sido capaz de criar um personagem tão (com o perdão da palavra) escroto assim, situação não aliviada pela atuação robótica (quase involuntariamente engraçada) de Juliano Cazarré.

  Como dupla, Joaquim e Juliano também são um desastre, por culpa, em especial, do roteiro, embora falte química entre os atores. Não dá para convencer alguém de que pessoas que cresceram juntas vão passar por conflitos tão bruscos, como aquele envolvendo a acusação de roubo por parte de um deles (me refiro à primeira das duas acusações de roubo entre eles que surgem no filme). A ideia que passa é do desespero dos roteiristas em forçar a noção de que “poder corrompe”, só que fazem isso como que contando uma história com fantoches para crianças de um ano de idade. Situação que não melhora com a inclusão de outra patética personagem: Tereza. Dá dó perceber o esforço incrível de Sofie Charlotte em fazer dela uma mulher forte e complexa, mas no fim das contas Tereza não passa de uma (mais uma vez, perdão pela expressão) vadia unidimensional.

  Serra Pelada ganha certa energia apenas com as presenças ilustres de Matheus Nachtergaele e Wagner Moura. O primeiro chega a parecer um Joe Pesci na sua estratégia de atuação, já que aproveita de seu físico franzino e baixa estatura como contraponto para uma atitude poderosa e confiante, transformando o mafioso Carvalho numa figura ameaçadora que, quando em cena, cria constante ansiedade. Já o sempre genial Wagner Moura rouba a cena todas as vezes como Rico Lindo, numa performance que nunca deixa de escancarar o tanto que o ator estava se divertindo no papel. Carinhoso, simpático e atencioso, Rico Lindo é um lobo na pele de cordeiro, já que demonstra inteligência na avaliação das melhores oportunidades possíveis (observem a expressão atenta de Moura quando avalia a relação entre Joaquim e Juliano) e prazer sádico na tortura de pessoas que ficam em seu caminho, característica essa que faz da cena em que ele é apresentado uma das melhores do ano (mesmo nesse filme). Moura acerta numa composição caricata, que usa a maquiagem levemente grotesca como ponto a favor no delineamento da personalidade maníaca e divertidíssima de Lindo.

  Demonstrando uma incompetência gritante para trabalhar sequências de ação, Dhalia parece estar sofrendo convulsões com a câmera ao filmar tiroteios e brigas com o quadro tão instável que o resultado desejado de injetar adrenalina no espectador é desviado, causando apenas dor de cabeça. Na tentativa de criar uma narrativa ágil, o diretor também erra numa montagem atropelada que falha tanto no quesito desenvolvimento da história como dos personagens (como já comentei). Pelo menos, Dhalia entende o potencial do longa como faroeste, mas também não passa de entendimento, já que não se esforça em prol de trabalhar uma decoupagem ou mise en scéne que pelo menos remeta aos westerns, deixando sua obra comendo poeira perto de outro lançamento brasileiro do ano, o similar, porém infinitamente superior, Faroeste Cabloco.

  Suportável apenas quando Matheus Nachtergaele ou Wagner Moura estão em cena, Serra Pelada afasta ainda mais Dhalia de seus grandes acertos da década passada, demonstrando uma situação preocupante numa carreira tão promissora. Pode ser que, infelizmente, 12 Horas não tenha sido um acidente...

*Outras críticas minhas de filmes dirigidos por Heitor Dhalia:

-12 Horashttps://www.facebook.com/notes/lucas-wagner/resenha-filme-12-horas-gone/293984007346374
  

segunda-feira, 21 de outubro de 2013


Crítica Os Suspeitos (Prisoners / 2013 / EUA) dir. Denis Villeneuve

por Lucas Wagner

  Como o maravilhoso Sobre Meninos e Lobos, de Clint Eastwood, e como o jogo de PS3 Heavy Rain, esse Prisoners (me nego a usar o título nacional) é um suspense policial que possui em seu cerne dilemas morais, trabalhados em cima de uma trama que envolve investigação e o comportamento de pais desesperados com a ausência de seus filhos. Com base nisso, o cineasta canadense Denis Villeneuve cria um suspense pesado em seu tom melancólico, visando mais a psicologia de seus personagens do que perseguições e violência.

  O roteiro de Aaron Guzikowski trabalha com o sumiço de duas garotinhas durante o jantar de Ação de Graças. O pai de uma delas, Keller Dove (Hugh Jackman) começa a ficar insatisfeito com o trabalho da polícia, nas mãos do detetive Loki (Jake Gylenhaal), e decide que a justiça será feita mais rapidamente se por suas próprias mãos.

  Muitos espectadores imaturos poderiam se irritar com a calma do longa, mas esse é justamente um dos acertos do projeto, já que o diretor Villeneuve foca suas forças em desenvolver uma atmosfera de intensa opressão e melancolia. A opção por ambientar o longa no período do inverno se dá justamente para que o clima e a geografia dominadas pela neve possam corroborar para a construção do constante estado de tristeza da obra; e assim, chuva forte vem em momentos chave para poder representar a catástrofe emocional que os personagens estão vivendo (e o uso de tal fenômeno como elemento simbólico realça ainda mais a semelhança do projeto com o supracitado Heavy Rain).

   A direção de fotografia assinada pelo gênio Roger Deakins (junto com Emmanuel Lubezki, o melhor em atividade) busca sempre trabalhar com uma paleta de cores frias e tristes, usando muito o marrom, o branco e o cinza para isso. Também o jogo de sombras promovido por Deakins é essencial por ressaltar o lado sombrio que vai surgindo naqueles personagens. O figurino e a direção de arte seguem a mesma lógica melancólica, sendo ajudados pela trilha sonora de Jóhann Jóhannsson que usa o violino, violoncelo e o órgão de maneira evocativa.

  Marcada por um minimalismo absoluto, a direção de Villeneuve voluntariamente corre daquilo que seria mais esperado. Assim, cenas que trariam elementos já batidos dos suspenses (como um policial descobrindo uma vítima) são delicadamente passados por cima através do uso de fade outs, como se o diretor dissesse: “o filme já está longo demais, portanto vamos ao que realmente importa?”. Esse minimalismo também fica evidente na economia com que o diretor transmite informações valiosas para a compreensão dos personagens, como a foto de jornal que fala sobre o suicídio do pai de um deles, ou as tatuagens que Loki trás em seu pescoço e na mão.

  Villeneuve parece mais focado é na sutileza da composição de quadros que surgem evocativos por si só, já que constroem atmosferas perfeitas apenas com o posicionamento de câmera, seja inclinando-a ou posicionando de determinada forma no ambiente que transmita noção de claustrofobia. E também não há como não admirar a habilidade de Villeneuve e Deakins numa sequência quase transcendental em que acompanhamos um carro (cujo motorista está ferido e perdendo consciência) em alta velocidade indo para o hospital, e em que as luzes do tráfego surgem fortes e brilhantes, numa representação ideal do estado mental do motorista na hora.

  Prisoners carrega em si uma carga religiosa, mais notadamente católica. O longa se inicia com uma oração, e em diversos quadros podemos vislumbrar cruzes, além do fato de Loki ter em sua mão uma tatuagem em forma de cruz. Mais acurado talvez fosse dizer que a obra possui caráter de culpa católica (só que sem o vermelho característico de Scorsese, cujas obras giram em torno do tema). Aquele universo opressivo é marcado por indivíduos que, na busca por fazer o bem e viver uma vida saudável e correta, se desviaram violentamente do curso (inclusive um padre), e assim, é sintomático que em certo momento um personagem não consiga terminar a oração do Pai-Nosso, mais especificamente a parte que envolve “perdoar aos outros como perdoamos aqueles que nos tem ofendido”.

  E é por isso que defendo tanto o título original do filme, que fala de Prisioneiros e não de Suspeitos. Todos aqueles indivíduos criaram prisões para si mesmos. Suas crenças baseadas em bondade e amor no fim são sabotadas pelo destino ou por pessoas cujo destino foi destruído pelo acaso, e assim se prendem em estados emocionais ou comportamentos que beiram a patologia. Chega a ser irônico que tenha acontecido tal incidente trágico contra Keller, cujo lema era sempre “Reze pelo melhor; se prepare para o pior”. E assim, essas pessoas vão mergulhando em labirintos infinitos, se perdendo cada vez mais na busca por encontrar a si mesmos ou ao menos uma ordem para o caos de tudo ao redor (não é atoa que o labirinto surja também como símbolo concreto na trama).

  Pois não é senão em um intricado conflito moral aquele em que vivem os prisioneiros do filme. O que faria um ser humano como nós naquelas condições? Até que ponto seríamos capazes de ir para salvar alguém que amamos? Para lutar pelo que acreditamos? Mais importante: até que ponto poderíamos responder essas perguntas e não trair a nós mesmos?

  Massacrados por essas questões, os personagens de Prisoners vão se tornando cascas de carne do que um dia foram humanos. Contando com um elenco primoroso, é uma pena, no entanto, que os realizadores não tenham conseguido tirar o maior proveito deles. Quem mais sai prejudicado são Viola Davis e Maria Bello, presas em personagens que não encontram muito espaço para desenvolvimento (embora a segunda protagonize uma tocante cena em que entra em confusão psíquica diante da dor e incerteza). Terrence Howard e Melissa Leo, no entanto, conseguem extrair o máximo de seus papeis, com o primeiro trabalhando bem a confusão volitiva de Franklin, ao passo que Leo está simplesmente aterradora como Holly Jones.

  Hugh Jackman e Jake Gyllenhaal, no entanto, são os maiores (dentro os já vários citados!) trunfos de Prisoners. Jackman demonstra entrega total ao papel de Keller, e cria um indivíduo complexo e trágico cuja própria vida seguindo regras e um código moral firme traduz amor pelos filhos e uma preocupação em fazer o certo e estar preparado sempre. E é por isso que o arco dramático do personagem é tão trágico, pois as contingências que o controlam vão espremendo-o até limites inimagináveis. Jackman, sempre competente, não permite que Keller, por causa de seus estouros de raiva, se torne um personagem meramente assustador; suas convicções são reais e sua determinação, tocante. Não há prazer nos atos de Keller, apenas pura dor. E assim, Jackman merece aplausos por um momento em que derrama uma lágrima solitária, como sinal de um pequeno alívio de Keller depois de muita luta.

  Já o detetive Loki é o personagem mais complexo e fascinante do filme. Não graças ao roteiro, já que, nesse ponto, este erra ao não explorar as particularidades da personalidade de Loki, já que sempre o foca no trabalho, e dá poucas informações sobre seu passado (embora dê uma valiosa, de maneira rápida que pode passar despercebida, na cena em que agride o padre). Mas Gylenhaal e Villenevue sabem guiar Loki para a perfeição. Percebam como Villenevue parece filmar diversas vezes o investigador de costas olhando alguma coisa (inclusive é o modo como o apresenta). Tal estratégia pode ser para ressaltar (simbolicamente) a determinação do policial, já que o enfoca dirigindo-se à alguma coisa, algum objetivo. As tatuagens são também reveladoras por conter carácteres religiosos, pegando elementos do cristianismo, e o octagrama no pescoço que é sinal de esperança em diversas crenças. Essas tatuagens também podem ressaltar um caráter de rebeldia contida no personagem.

  Com isso, Gylenhaal entrega um de seus melhores trabalhos de sua já tão admirável carreira. O Loki de Gylenhaal é um sujeito honesto cujo maior defeito seja talvez se entregar demais ao que faz, envolvendo-se emocionalmente com seu trabalho (algo que pode ter origem na sua infância, como fica claro no ato falho da fala que diz ao padre). Apesar da aparente calma, Loki é um indivíduo com certa fúria e raiva dentro de si, algo que busca guardar o máximo possível mas que pode escapar de forma total (observem o momento em que interroga Alex) ou através de sinais psicossomáticos como o constante tique nervoso de piscar os olhos (detalhe sublime da atuação de Gylenhaal). O modo como responde à agressividade alheia também revela um ponto passivo-agressivo ao, mesmo aturando os estouros de Keller, o fazer carregando um sorriso no rosto, um sorriso de certo desafio (outro toque de genialidade de Gylenhaal). Ainda assim, Loki é um bom homem, que se dedica de corpo e alma ao que faz e que por isso mesmo se perde em seu próprio labirinto, num personagem fascinante que em muito lembra o detetive Park Doo-man do belo Memórias de um Assassino, de Bong Joon-ho, ou até mesmo Robert (interpretado pelo próprio Gylenhaal) em Zodíaco, de David Fincher.

  Prisoners ainda entrega uma resolução absolutamente impecável e repleta de ironia dramática, apesar de que, logo que terminei de ver o filme, quase descartei sua profundidade como “viagem” minha. Porém, não poderia terminar de escrever uma crítica sobre essa obra sem falar disso, portanto, quem não viu o filme, pule para o próximo parágrafo, pois aqui vem spoilers: Keller ficou preso no calabouço de Holly, e inevitavelmente morrerá (sem comida, água e com a perna quebrada e sangrando), num símbolo do clímax de sua loucura, já que, de tanto se trair, o fim do personagem foi justamente o de confrontar seus próprios demônios e abraçar sua tragédia, se tornando literalmente um prisioneiro. Assim, quando Loki escuta o assobio distante e fantasmagórico do apito de Keller, escuta também o chamado de um fantasma, fantasma esse que vai assombrá-lo pelo resto de sua vida, e ele bem sabe disso, já que essa é a sua própria prisão.


  Com um roteiro competente de Guzikowski (apesar de martelar algumas pistas óbvias, como o sonho com o apito), Prisoners é um longa policial muito diferente da maioria de hoje em dia: maduro, desafiador e emocionalmente complexo. E por isso mesmo merece um lugar como uma das obras mais importantes do ano.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013


Crítica A Espuma dos Dias (L' Ecume des Jours / 2013 / França) dir. Michel Gondry

por Lucas Wagner

  O cineasta francês Michel Gondry possui grande talento para desenvolver projetos com uma estética peculiar que, sempre tendendo ao surrealismo, possuem certa dinâmica e excentricidade que enriquecem suas obras. Nesse ponto, o diretor alcançou resultados visuais marcantes em trabalhos como Sonhando Acordado (2005) ou, especialmente, na obra-prima Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), seu melhor filme. Mas nesse seu novo longa, A Espuma dos Dias, Gondry consegue o trabalho visual mais fascinante de sua carreira até então, criando uma obra cuja maior virtude está justamente na força de suas imagens que conseguem realizar uma impactante transição no projeto: de comédia surrealista, este passa a drama expressionista.

  O roteiro do próprio Gondry com Luc Bossi, baseado no romance homônimo de Boris Vian, conta a história de um casal apaixonado e recém-casados, Colin (Romain Duris) e Cloe (Audrey Tautou). Durante a lua-de-mel, Cloe contrai uma doença rara causada por uma planta que passa a crescer em seu pulmão, o que mobiliza Colin, antes um bon-vivant, a buscar trabalho para pagar pelo tratamento da esposa.

  A Espuma dos Dias se passa em um universo onde a lógica e a proporção não tem lugar, e onde Gondry nos arremessa logo nos minutos iniciais, nos surpreendendo com alimentos que se movimentam por vontade própria, um rato (um homem gordo vestido de rato) que passeia e se diverte na casa de Colin, uma TV que interage com o mundo externo, sapatos que agem como cachorros, etc. Dentro desse contexto, Gondry abandona qualquer pretensão de sentido, e mergulha seu filme na insanidade total, com uma trama de fundo que guia a projeção (Colin conhecendo Cloe), mas mais focado no puro nonsense, do qual ele consegue retirar uma dose absurda de humor bizarro que só ficaria mais engraçado se assistido sob efeito de maconha. É impossível não pensar nisso nas cenas de danças “bip bop” malucas onde as pernas das pessoas crescem desproporcionalmente, ou na (genial) sequência envolvendo uma competição de patinação no gelo. Além disso, as loucas invenções vistas ao longo do projeto são divertidíssimas, como o “pianocoquetel” (piano onde o toque de notas cria mistura de bebidas) ou os áudio-livros em forma de comprimidos.

  Aqui, Gondry aproveita para brincar ainda mais ao inserir certa metalinguagem no projeto que, de uma forma amalucada, é bem sucedida ao ressaltar o caos de tudo: vemos diversos escritores, em filas, escrevendo frases em máquinas de escrever que viajam de mão em mão, continuamente, resultando na história que assistimos. Acertando ao não buscar lógica nem em diálogos básicos, Gondry acaba, no entanto, errando ao inserir uma subtrama envolvendo o personagem Chick (Gad Elmaleh) que não faz sentido nem na falta de sentido do filme.

  Felizmente, Gondry acerta a mão na hora de trabalhar a relação entre Cloe e Colin. Apesar de, no roteiro, o romance dos dois ser mostrado de forma resumida e atropelada, Gondry capricha ao filmar os dois juntos com uma profundidade de campo reduzidíssima que embaça o fundo do quadro, isolando-os em um universo particular. Os passeios bucólicos dos dois também contribuem para esse sucesso e, principalmente, a sequência do casamento, que acerta na poesia de mostrá-los como que “nadando” enquanto os convidados estão andando normalmente.

  Tal trabalho é importante para que o filme faça aquilo que o faz ser ótimo e não só divertido: se transformar em um pesado drama expressionista. A doença de Cloe e a preocupação de Colin só teriam repercussão para o espectador caso nos importássemos com eles. E assim, a mudança do longa é gradual, e Gondry vai encontrando maneiras geniais de fazer essa transição. Observem como a casa de Colin e Cloe vai ganhando uma camada de musgo, sujeira e podridão, talvez como representação da deteriorização do pulmão de Cloe. Além disso, ambientes como o do hospital, escuros e podres, com paredes descascadas e canos que cospem sangue, vão se tornando comuns.

  Aliás, o design de produção de A Espuma dos Dias é simplesmente primoroso. O modo com a casa do casal vai se transformando em quase uma mansão mal assombrada é assustador, onde os ambientes abertos e simétricos vão dando lugar a ângulos estranhos e passagens estreitas. A fotografia do longa também merece aplausos sinceros (além de uma indicação ao Oscar) por começar a projeção optando por cores fortes e claras, coloridas, e depois ir deixando a imagem quase monocromática, até chegar ao absoluto preto e branco, numa representação clara do estado interno de destruição dos personagens. O uso da violência também é curioso pois, se no início era hilária (a citada cena de patinação no gelo), depois adquire conotação macabra (as mutilações na fábrica). A própria trilha sonora, antes animada e esquisita, agora fica opressiva.

  E é conseguindo impactar tanto com essa mudança de tom que Gondry é extremamente bem sucedido em derrubar até o mais forte dos espectadores (e assim, a rima visual das duas cenas de Cloe demonstrando estar sentindo mal adquire tom trágico quando percebemos não ser mais fingimento). O humor vai sumindo gradualmente, e o clima de tragédia vai nos dominando, até estarmos tão afundados naquela atmosfera de tristeza que nem percebemos a mudança na hora, de tão bem feita que é.

  Isso se deve muito à grande habilidade do diretor de traduzir emoções em imagens. Assim, quando Colin recebe notícia pelo telefone de que Cloe estava sentindo mal, as paredes ao seu redor começam, literalmente, a se fechar; outro exemplo é ao percebermos que Nicolas (Omar Sy) não apenas sente que envelheceu oito anos em dez dias, mas literalmente envelhece, com direito a cabelos brancos e rugas. E é por isso que A Espuma dos Dias consegue ser tão bem sucedido ao transgredir a metalinguagem e colocar Colin como um dos escritores da história (nas filas que comentei mais acima), desesperado para escrever mais dela, mas impedido pela rotação caótica da mesma, que passa por diversas mãos em questão de segundos, naquela que é a melhor cena da obra.

  Com um elenco forte, A Espuma dos Dias é ainda mais eficiente. A bela Audrey Tautou nos conquista novamente com seu charme e doçura, investindo numa performance parecida com sua inesquecível atuação em O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (2001) para criar Cloe como uma criatura apaixonante e sensível. Romain Duris representa muito bem a transformação de Colin de bon-vivant charmoso (ressaltando sua doce insegurança) para pura carne sustentada por ossos destruídos pela depressão. Omar Sy repete o carisma de seu Driss no ótimo Intocáveis (2012) para criar o camarada fiel Nicolas. E o próprio Michel Gondry acerta numa performance excêntrica e divertida como o médico de Cloe.

  Representando um retorno à boa forma de Gondry depois do pavoroso Besouro Verde (2011), A Espuma dos Dias é uma experiência bizarra, alucinógena e insana que consegue nos abraçar no seu doce surrealismo apenas para depois nos esmagar no mais grotesco expressionismo, resultando num longa corajoso como poucos.
  

sábado, 12 de outubro de 2013



Crítica É o Fim (This Is The End / 2013 / EUA) dir. Seth Rogen e Evan Goldberg

por Lucas Wagner

  Povoado por atores de renome interpretando a si mesmos, a maior virtude desse primeiro trabalho como diretores de Seth Rogen e Evan Goldberg (que juntos escreveram o excelente Superbad – É Hoje, os bons Segurando as Pontas e Vizinhos Imediatos do 3ºGrau, e o fraco Besouro Verde) é justamente sua capacidade de auto-paródia, conferindo ao longa uma bem vinda irreverência com que todo o elenco, e os próprios diretores, enxergam suas imagens.

  Mas antes, a sinopse: enquanto o ator James Franco dá uma enorme festa regada à drogas, sexo e bebidas em sua nova mansão, o apocalipse tem início, destruindo e matando sem piedade a tudo e a todos, lançando o mundo num festival caótico de sangue e fogo. Nesse contexto, atores mimados e drogados tentar sobreviver à si mesmo e ao fim do mundo.

  Como estava comentando no primeiro parágrafo, É o Fim possui considerável valor como auto-paródia. Seth Rogen, por exemplo, sendo roteirista/diretor/ator do projeto, se zoa ao criar contextos onde pessoas lhe perguntam se algum dia ele vai “parar de interpretar o mesmo papel” (crítica constante ao ator), ou ao perguntar “Que diabos foi aquele Besouro Verde?!” e até mesmo ao ressaltar os peitinhos proeminentes dele mesmo. James Franco também não fica de fora nas piadas constantes sobre os rumores de sua suposta homossexualidade (a escultura de um pênis em sua casa ou a mancha de pasta dental em sua barba – bem sugestivo – são tiradas engraçadíssimas) ou Jonah Hill quando se apresenta como ator da obra-prima Moneyball, único filme “sério” seu.

  Sendo assim, o elenco é a maior força do projeto, estabelecendo excelente química entre si e se zoando constantemente. Do elenco principal, Rogen, Hill, Jay Baruchel e Craig Robinson estão muito bem, mas quem rouba a cena são Danny McBride e James Franco. O primeiro por abraçar a vilania e canalhice de si mesmo, exagerando-a aos limites, e o segundo por assumir uma energia absurda que revela muito do tanto que o próprio ator estava se divertindo no papel, fora que o bom humor consigo mesmo é mais um ponto para sua performance. A rivalidade entre esses dois personagens também é divertidíssima.

  Mas É o Fim ainda conta com diversos outros nomes famosos, se destacando aqui as participações de Michael Cera, Emma Watson e Channing Tatum. Cera sempre representa papeis em que é um nerd tímido e inocente (Juno, Scott Pilgrim, Superbad, etc) e aqui interpreta a si mesmo como totalmente o oposto: um louco insano drogado e pegador geral. Watson (linda demais, santo deus) assume a mesma postura de seu recente papel no fraco Bling Ring – Gangue de Hollywood e evita o papel de boa moça que já lhe associamos; e assim a eterna Hermione aparece gritando “Ponham a porra da bebida na porra da mochila!”, brandindo um machado enquanto diz isso. Já Tatum...bom, assistindo o filme vocês entenderão porque o destaquei.

  Mas É o Fim possui diversos defeitos que o impedem de ser tão bom como deveria. Em primeiro lugar, esses atores todos tem a mania de sempre improvisar demais em seus trabalhos juntos, e esse improviso fica sempre evidente; de vez em quando, funciona muito bem (a discussão de Franco e McBride sobre “gozar” é um momento mais hilário da obra, junto com a “visão de céu” que esta apresenta) mas muitas vezes acaba inflando a cena e lhe tirando a graça, já que passa de um ponto sóbrio para assumir uma posição de mera massagem do ego dos responsáveis. Também, o roteiro de Goldberg e Rogen peca violentamente ao dedicar tanta energia na relação de amizade entre Rogen e Baruchel, despendendo tempo demais numa amizade conturbada repleta de brigas e ciúmes que, no entanto, nunca fica nem meramente interessante.

  Além disso tudo, o segundo ato do filme é extremamente problemático por despencar o ritmo de antes e investir em momentos inverossímeis e forçados como quando todos se drogam ou todo o trabalho para conseguir pegar dois galões de água. Sorte que o longa recupera bastante sua energia no terceiro ato, mas não apaga a chatice do segundo.

  Experiência divertida na própria trama inventiva (misturar apocalipse bíblico com atores chapados), É o Fim é um longa que poderia ter sido muito melhor, é verdade, mas representa um esforço até admirável por parte de Rogen e Goldberg. No entanto, esses dois ainda não conseguiram recuperar todo o vigor que demonstraram em Superbad.

  PS: Sensacional o momento em que o trio protagonista de Superbad (Jonah Hill, Michael Cera, Christopher Mintz-Plasse) aparecem reunidos.
  


Crítica Gravidade (Gravity / 2013 / EUA) dir. Alfonso Cuarón

por Lucas Wagner

  Uma das coisas que me fascina em obras como Amnésia ou Réquiem Para Um Sonho é a habilidade com que seus respectivos diretores (Christopher Nolan e Darren Aronofsky) conseguiram nos colocar em um estado que no mínimo conseguia refletir o que os personagens estavam passando ao longo da projeção. Entrando nesse grupo com força total, Alfonso Cuarón cria uma obra brilhante em Gravidade, que se utiliza da própria Ciência e das mais rebuscadas técnicas do Cinema para criar uma jornada intensa e asfixiante, além de intimista em seu cerne.

  O roteiro do próprio Cuarón, escrito junto com o filho, Jonás Cuarón, conta com uma base simples, onde uma estação espacial é atingida por destroços de um satélite, tendo resultados catastróficos e lançando a astronauta iniciante Ryan Stone (Sandra Bullock) e o veterano Michael Kowalski (George Clooney) à deriva no espaço.

  A melhor palavra para definir Gravidade no âmbito técnico é: soberbo. Cuarón retorna sua parceria com o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (um dos melhores em atividade) e aproveita da temática “gravidade zero” para criar tomadas sublimes e planos extremamente longos que transformam o filme em uma das experiências mais marcantes e curiosas produzidas pelo Cinema. Simulando a falta de gravidade do espaço, Cuarón e Lubezki permitem que a câmera passeie quase que à deriva pelo ambiente, viajando pelo campo e englobando diversas ações enquanto conseguem desenvolver com perfeição o “clima” de cada sequência. À guisa de exemplo, a tomada inicial (que deve ter cerca de 10 minutos) é impecável ao, sem conter algum corte aparente, estabelecer a relação entre os personagens e a ambientação, além de filmar a explosão da estação em dimensão ainda mais angustiante por termos acompanhado a construção do suspense de forma contínua. Aliás, o filme já abre de forma brilhante ao apresentar legendas descrevendo perigos do espaço sideral enquanto a trilha sonora vai adquirindo mais intensidade e, quando chega no clímax, um corte nos leva para a órbita da Terra, num silêncio absoluto, angustiante e propagador de uma sensação de ameaça iminente.

  Não só no seu inicio, mas durante toda a projeção, Gravidade é recheado de planos longos que desenvolvem a ação continuamente, o que não só é um deleite para os olhos, mas serve para criar angústia desesperadora no ambiente. E se no primeiro parágrafo comentei sobre a capacidade de Cuarón em nos colocar no estado emocional de seus personagens (em especial Stone), ele literalmente chega a adotar, diversas vezes, o ponto de vista subjetivo da protagonista, o que serve inclusive para nos passar um pouco da sensação de desconforto dela ao não conseguir controlar o próprio corpo ou ainda na dificuldade de, em um estado de baixa consciência, ter que realizar manobras complexas com seu corpo para atingir um objetivo. Inclusive, em certo momento, Cuarón tem a ousadia de passar de um ponto de vista objetivo para um subjetivo, em uma única tomada, permitindo uma visão tridimensional da situação.

  Desse modo, a utilização do 3D por Cuarón se revela como provavelmente a melhor de até então. Consciente (como poucos cineastas) de que, para o 3D, deve-se adotar uma profundidade de campo altíssima (ou seja, sem embaçar o fundo do campo), Cuarón consegue o efeito de aumentar a tensão por permitir que a imensidão do espaço aberto sirva como lembrete incessante da ameaça maior de ficar à deriva. Além disso, o diretor é hábil ao aumentar o suspense em planos abertos como o que Stone é vista em primeiro plano (perto da câmera) arrumando algo em uma nave, enquanto os destroços do satélite destruído são vistos no fundo do campo, se aproximando perigosamente. Mas Cuarón é inteligentíssimo ao usar uma profundidade de campo reduzida apenas em momentos que possuem significação narrativa, como quando, em certo momento, o reflexo do rosto de Stone em uma janela fica embaçado enquanto o espaço externo fica evidente, e logo depois o diretor muda o foco, deixando evidente o rosto de Stone e embaça o fundo, já que é nesse momento que a protagonista deve tomar uma decisão vital.

  Adotando um raro respeito ao quesito Ciência contido no gênero de ficção científica, Gravidade acerta ao, por exemplo, respeitar a Física ao filmar as explosões no espaço sideral sem seus respectivos efeitos sonoros, já que o som apenas se propaga em meios materiais, e não no vácuo, conferindo um efeito ainda mais vigoroso e elegante às sequências, principalmente por nos aproximar mais dos personagens ao nos permitir ouvir apenas suas respirações ofegantes ou o que eles estão conversando via rádio. O desconforto e dificuldade trazidos pela inércia à qual os astronautas estão expostos fica também evidenciado na mise en scéne que constantemente mostra manobras corporais que não atingem seus objetivos, ou quando corpos colidem uns com os outros ou com objetos, atrasando o avanço de suas ações. Esses conceitos científicos, como fica claro, conferem ainda mais força à parte cinematográfica, como quando Química e a Biologia são evocadas pela falta de oxigênio de uma personagem, quando a reserva desse elemento em seu traje espacial vai findando e nos vemos gritando para ela (em pensamento) para respirar devagar e “queimar menos oxigênio”; ou ainda quando esta passa a respirar apenas gás carbônico e vai perdendo a consciência, desesperando o espectador pela velocidade que este sabe que a tarefa dela deve ser realizada; não poderia deixar de mencionar também que o mais importante insight de Stone ocorre em parte devido à falta de O2 em um momento específico*.

  Se tudo isso já faria de Gravidade um filme excepcional, este consegue ares de obra prima por adotar uma sensibilidade intimista que, justamente com o respeito científico, o aproxima ainda mais do seu levemente similar Contato, de Robert Zemeckis. Assim como nesse longa citado, o roteiro dos Cuarón consegue usar o espaço externo para desenvolver o espaço interno de sua protagonista. Apresentada como criatura extremamente frágil logo no início do longa, Ryan Stone é uma mulher sensível tanto emocionalmente como fisicamente, já que, como é novata no espaço, seu corpo ainda está em processo de adaptação. Constantemente desestabilizada, Stone vai revelando profundas camadas emocionais que abraçam uma sensibilidade gritante devido à uma história em que o brutal acaso lhe tirou o sentido da vida. Assim, a solidão do espaço e a sua luta pela sobrevivência funcionam como condições ideais para sua transformação interna, completando um arco dramático que revela tanto sobre a fragilidade como sobre a força profunda que um ser humano tem quando encontra um motivo para lutar.

  Nesse ponto, eu gostaria de poder beijar os pés de Cuarón e Lubezki quando criam planos intimistas e sublimes que conseguem ser evocativos sem ser exagerados. Stone, quando entra em uma nave, se despe e finalmente pode respirar, é vista flutuando suavemente em posição fetal, sendo engolfada pelo ambiente da nave contraposto com o hostil espaço aberto vislumbrado através de uma janela; é como se Stone, tendo sido exposta à condições e um ambiente extremamente aversivos, buscasse consolo na calma do retorno ao mais seguro dos ambientes: o útero. Assim, também presenciamos um contexto de renascimento, onde a personagem volta ao útero para poder renascer mais forte e lutar pela sua vida. Tal tomada ainda evoca a fragilidade da personagem, e entra em choque com uma no terceiro ato que é filmada em contra plongée, ou seja, de baixo para cima, dando-lhe um aspecto de força e superioridade. Nesse sentido também a trilha sonora composta por Steven Price acerta ao investir em temas mais sensíveis, com vocais femininos delicados e violinos, quando Stone está mais isolada e encurralada, mas, no fim, abraça temas fortes, com vocais poderosos que transmitem noção de força e imponência, mas sem perder os vocais femininos, que conferem uma perfeita sensação de transcendência.

  A sequência que se passa dentro da cápsula onde Stone escuta sinais de rádio também merece destaque por Lubezki colori-la com a luz verde decrépita vinda dos botões luminosos, conferindo sensação de mortalidade para a cena (algo que é brilhantemente alterado de acordo com a narrativa, em certo momento). Tal sequência ainda é importante por ser onde Cuarón (pai e filho) conseguem atingir uma profundidade imensa com sua protagonista, utilizando-se de um meio dinâmico para que esta possa atingir camadas profundas de sua personalidade, num momento onde a solidão e desespero do espaço, o sentimento de desolação e inferioridade, atravessam a tela e atingem o espectador no estômago, conferindo força para a catarse da personagem.

  Catarse essa que não seria possível sem o personagem de Matthew ou a conotação religiosa do mesmo. Sujeito carismático e seguro de si, Matt demonstra firmeza ao assumir o controle da situação quando esta se torna caótica, ao mesmo tempo em que demonstra habilidade ao conversar calmamente com a personagem de Stone para que esta se acalme e possa respirar direito. Mais importante de tudo é a qualidade bucólica do personagem, o que lhe confere ares de um mestre sábio, como por exemplo na sua capacidade de se apaixonar pelo planeta Terra todas as vezes que o vê do espaço, sabendo enxergar sua beleza mesmo numa situação tão desesperadora como a que se encontra. Para isso, George Clooney (sempre talentoso) consegue o equilíbrio ideal entre galã brincalhão, líder experiente e bucolismo.

  Assim o personagem adquire grande importância ao ser um vetor para Stone, e a essa relevância adquire um quê até místico quando ele passa a guia-la apenas com o som da voz. Aliás, Gravidade é ainda curioso ao trazer, de forma bastante sutil, certa conotação teológica, como no exemplo que acabei de citar, ou ainda outros: quando Stone pede por uma oração; quando uma imagem de Buda pode ser vista no painel da nave oriental; quando uma imagem de um santo pode ser vista num painel de outra nave. O fato do filme trazer uma imagem cristã e outra budista só aumenta sua qualidade, por abraçar a teologia e não a religião, coisas totalmente distintas.

  Mas Sandra Bullock não fica de fora. Apesar de ter trabalhado em alguns projetos sofríveis ao longo da carreira, Bullock aqui demonstra a força necessária para interpretar Stone. Adotando uma cadência de voz que evoca fragilidade, Bullock é competente ao aos poucos ir evidenciando a transformação de Stone, do puro desespero até a determinação absoluta, permitindo que o espectador compartilhe de seus estados emocionais.

  Se babei para o filme, também em certos momentos tive que torcer o nariz. Algumas falas são sofríveis (“No hablo chino!” e “Dia claro com previsão de destroços de satélite russo” ainda me doem no fundo da alma) e também, mesmo que a trilha sonora contenha acertos inegáveis, seria bacana se Cuarón tivesse aberto mão dela em mais cenas, o que aumentaria a tensão. Esses probleminhas não tiram Gravidade do status de obra-prima, tanto por tudo que já comentei, ou ainda quando lembro da inteligência de seus realizadores por deixar a Terra muitas vezes em evidência (como lembrete do objetivo dos personagens, e ressaltando a beleza do planeta, como ao mostrar uma aurora boreau), pela delicadeza de mostrar Matt ouvindo sempre uma música country, o que serve de lembrança nostálgica do lar dos personagens, ou ainda pelo fato de Cuarón ter contratado Ed Harris para fazer a voz do coordenador técnico em Houston, já que o ator interpretou o mesmo papel em Apollo 13, de Ron Howard.

   Obra essencialmente experimental, Gravidade evoca a Física, a Química, a Biologia, a Teologia e um profundo conhecimento sobre Cinema para clamar a solidão e o desamparo humanos na sua pequenez no espaço, onde Stone pode encontrar as ferramentas necessárias para reencontrar a si mesma e poder sobreviver. 

   Nesse caminho, um clássico moderno foi criado.

*SPOILER: Me refiro, é claro, à alucinação de Stone onde ela vê Matt.