sexta-feira, 31 de maio de 2013



Crítica Se Beber Não Case! Parte III (The Hangover Part III / 2013 / EUA) dir. Todd Phillips

por Lucas Wagner

  Quando chegou aos cinemas, em 2009, a comédia Se Beber Não Case! se mostrou como uma bela surpresa no meio de tantos exemplares do gênero inúteis e sem graça que lançam ano após ano. Trazendo personagens marcantes e engraçados, o diretor Todd Phillips criava situações inusitadas atrás de outras ainda mais inusitadas, transformando seu longa numa experiência imprevisível e, por apostar num crescendo de absurdos entre figuras absurdas, era praticamente surreal, o que tornou o filme uma peça rara constantemente lembrada. Mesmo assim, ao realizar uma inevitável sequência, o cineasta caiu nas mesmas armadilhas de tantas outras continuações, repetindo os mesmos elementos que fizeram do primeiro um sucesso, e assim, realizou um longa enfadonho e fraco, embora aqui e ali tivesse alguns elementos interessantes. Sem cometer o mesmo equívoco de novo, Phillips retorna numa terceira parte direcionando a franquia para caminhos diferentes que se ligam com perfeição aos dois primeiros, além de apostar no mesmo humor insano que marca tanto sua carreira.

  Dessa vez, a história começa quando Alan (Zach Galifianaks) perde seu pai e fica desamparado e apresentando comportamentos cada vez mais psicopatológicos, a ponto de sua família e escassos amigos concordarem que o melhor para ele seria ser internado para receber tratamento adequado. No caminho para isso, no entanto, o “bando de lobos” (apelido dos quatro amigos) são interceptados por um chefão do crime, Marshall (John Goodman), que os coloca contra a parede, obrigando-os a embarcar em mais uma aventura insana, mas agora sem acordar de ressaca, drogados e com animais estranhos dentro de um quarto de hotel num lugar desconhecido.

  Buscando transformar a franquia numa verdadeira trilogia, Phillips liga os eventos vistos aqui com situações do primeiro filme que antes tinham ficado apenas como pano de fundo. Toda uma cadeia de eventos foi iniciada nos acontecimentos do original que desencadeiam na aventura de dimensões mais consideráveis vistas aqui. É algo como Christopher Nolan fez em Batman – O Cavaleiro Das Trevas Ressurge, só que em uma escala menor, é claro. Interessante é que Phillips e o co-roteirista Craig Mazin conseguiram ligar todos os pontos de maneira orgânica, sem alterar eventos já concluídos do passados (como Sam e Ted Raime erraram em Homem Aranha 3), mas sim criando contingências que foram construídas à parte dos eventos principais de antes, ainda que sofrendo influência destes. Assim, coube à Todd Phillips manter uma mão firme na direção, estabelecendo um ritmo crescente de energia ao novo capítulo, o que o cineasta faz com sucesso, além de não deixar que as coisas aconteçam rápido demais a ponto de se tornarem incompreensíveis. Mais interessante ainda é que o roteiro consiga tomar rumos muitas vezes imprevisíveis, como toda a situação envolvendo a mansão em Tijuana. Infelizmente porém, é evidente que muitos obstáculos no caminho dos protagonistas foram resolvidos de forma muito simplista e fácil, como toda vez que precisam encontrar Chow (Ken Jeong).

  Mais uma vez ficando na tênue linha que divide o engraçado do ofensivo, Phillips novamente demonstra prazer quase perverso em levar as situações aqui criadas a níveis insanos e bizarros, torcendo a faca até limites praticamente inimagináveis (como não se lembrar do momento em que os protagonistas são feitos de exemplos para dois policiais, no primeiro filme, ou quando Robert Downey Jr. leva uma surra de um cadeirante no excelente Um Parto de Viagem?). Aqui, os limites são ainda mais altos do que anteriormente, e os absurdos das situações só criam eco no absurdo da existência de um personagem como Mr. Chow, aqui, por incrível que pareça, mais insano do que nunca. No humor negro, Phillips não perdoa, e faz graça até mesmo com a decaptação de uma girafa. Mas momentos mais simples também ganham mais humor pela habilidade do diretor de exagerar nas situações (o que as torna engraçadas), como quando Alan sai de costas olhando para Cassie (Melissa McCarthy) e derruba vários instrumentos musicais, e não só uma vez; também merece comentários como o momento sem graça em que Alan chupa um pirulito fica realmente engraçado apenas pelo design de som, que destaca o barulho do pirulito na boca do personagem. Além disso, o diretor mostra confiança ao desenvolver momentos cômicos que se passam no fundo do campo, enquanto focamos algo diferente em primeiro plano (a morte do pai de Alan é o momento que vem imediatamente à minha cabeça).

  Investindo em uma seleção de músicas impecável para a trilha sonora incidental (como já é de praxe para o diretor), Phillips cria sequências elegantes que pontuam com perfeição as atmosferas buscadas em cada cena, como ao usar N.I.B, de Black Sabbath, como fundo para a sequência em que Phil (Bradley Cooper) e Alan invadem uma suíte atrás de Chow, ou quando usa uma música também pesada (cujo nome não sei) para mostrar o retorno do grupo à Las Vegas, ressaltando as memórias tensas do trio com o lugar. Nesse ponto, o compositor Christopher Beck (que deveria trabalhar apenas com Phillips) também acerta na trilha original, trazendo de volta os excelentes acordes dos longas anteriores, e ainda criando alguns mais grandiosos/épicos que se acomodam na atmosfera geral de conclusão da trilogia. Ainda sobre o ponto de vista técnico, a fotografia de Lawrence Sher estabelece com habilidade a diferença dos ambientes, como ao apostar numa paleta mais granulada e num tom mais esverdeado para Tijuana (lugar mais desconfortável), e na imagem mais “limpa” de Las Vegas, onde o neon “suga” a granulação, deixando a impressão de plastificação, representando, talvez, a falsidade em que é envolvido o ambiente da cidade. Os figurinos, mais uma vez, acertam ao diferenciar, logo de cara, as personalidades dos três protagonistas: o guarda-roupa mais esportivo e jovial de Phil; as roupas pequenas e apertadas, além de infantis, de Alan; o figurino mais sóbrio de Stu, muitas vezes usando rosa, ressaltando a “frescura” do personagem.

  Falando em personagens, quem realmente recebe destaque é Chow. Não que ele se torne mais complexo ou algo do tipo. Nada disso. Chow é sim, como já fica claro desde o primeiro filme, praticamente um alienígena, um ser completamente patológico cuja existência parece ter sido fruto de um bug do Universo. E aqui ele ganha bem mais tempo em tela, além de mais importância, e, diferente do que aconteceu com Jack Sparrow no pavoroso quarto capítulo de Piratas do Caribe, Chow é um personagem bizarro que apenas ganha com o tempo extra, já o seu nível de bizarrice e loucura continua surpreendendo (“eu amo cocaína!!!”, “se você me soltar te faço um boquete! Serei uma ótima esposa para você!”). E Ken Jeong mais uma vez abraça sem ressalvas o tipo louco esquizotípico que já tinha criado para o personagem e que ressaltou no seriado Community¸ onde interpreta Chang. Já Alan também é uma figura exagerada que parece inconcebível no mundo real (o que não é um erro, já que se adequa ao universo do filme). Com sua doçura e carência infantis, Alan continua agindo como uma criancinha, cujo grande herói é Phil e que não aceita estar errado. Dessa vez, no entanto, ele se encontra mais agressivo, por achar que é um adulto e que ser agressivo é atitude de adulto. E Zach Galifianaks não muda em nada sua performance, embora essa ainda esteja ótima e divertidíssima, além de pontualmente comovente, como a sua alegria quando conhece Cassie ou quando conversa com o bebê com o qual divide a tela no longa original, e que agora está mais crescidinho.

  Bradley Cooper e Ed Helms infelizmente caem no piloto automático. Sem encontrar onde desenvolver mais o excelente personagem de Phil, Cooper (recém saído de um excepcional trabalho no, no entanto, mediano O Lado Bom da Vida) é obrigado a repetir o mesmo arco dramático das outras vezes, ou seja, do homem imaturo e festeiro que é obrigado a agir como o adulto da situação; dessa vez nem Cooper consegue se entregar direito ao personagem, e compõe uma figura já cansada (e olha que no segundo filme, mesmo com o mesmo arco dramático, Cooper ainda pode desenvolver Phil um pouco mais, pelo menos com esse assumindo mais prontamente a situação). Ed Helms parece ter perdido toda a graça desde que acabou o filme original, e aqui, nem mesmo o arco de “homem civilizado e calmo que se descontrola em situações que não possui o controle” ele tem, e fica entregue a... nada. É um personagem vazio e apagado. Mas onde os dois se apagam, John Goodman brilha como Marshall, compondo um vilão excepcional. Conseguindo deixar bem claro o nível de maldade do personagem, nos fazendo teme-lo, Goodman cria um vilão marcante e perigoso que, no entanto, é responsável por uma das cenas mais engraçadas do filme, quando demonstra certa compreensão e simpatia por um dos protagonistas (vocês irão reconhecer a cena).

  Tendo sido injustamente massacrado por boa parte da crítica mundial, Se Beber Não Case! Parte III ainda assim é um longa divertido e empolgante, além de bem realizado. Assim como com grande parte dos filmes de Todd Phillips, não vai agradar quem não é fã de humor negro, e ainda é provável que o exagero das situações incomode muitos. Mas, na minha humilde opnião, é um bem-vindo pedido de desculpas do diretor pelo segundo filme, e que, mesmo não tão bom quanto o longa original ou Um Parto de Viagem, ainda representa um retorno de Phillips à boa forma.


Nota: 8,6 / 10,0

domingo, 26 de maio de 2013




Crítica Cores (Cores / 2013 / Brasil) dir. Francisco Garcia

por Lucas Wagner

  Na época do ensino médio, lembro de passar muito tempo com amigos meus, discutindo ideias sobre o que estava errado com o mundo e o que poderíamos fazer para o melhorar; discutíamos sobre nossos sonhos e, por mais que falássemos que “sabíamos que seria difícil”, na verdade, tínhamos uma leve noção de que seria difícil e que precisaríamos lutar muito. Tudo parecia muito distante. Hoje, mesmo ainda sendo bastante jovens, nossas conversas carregam um ar muito mais niilista. De madrugada, esparramados no chão de tão bêbados, não conseguimos pensar que algum dia mudaremos o mundo de alguma forma, só sabemos que tudo está tão ruim que a tendência é piorar; por mais que alguns de nós (eu, em especial) ainda nos agarremos aos nossos sonhos, o quão difícil será está bem mais evidente, e nos vemos obrigados a, desde já, desfazermos de muitos dos nossos ideais para conseguir realizar alguma coisa.

  A passagem da proteção da infância para a constante batalha na selva que é a vida adulta (ou vida real) nunca é fácil. Perceber que muitos dos nossos sonhos não passavam de delírios juvenis, que teremos que nos contentar com empregos que antes julgávamos medíocres; perceber que estamos, aos poucos, nos transformando em nossos pais, pessoas que criticávamos justamente por parecerem tão passivos e conformistas frente ao mundo. Nada disso é fácil, muito menos agradável. Aceitar que somos só nós responsáveis por nós mesmos muitas vezes gera uma angústia difícil de curar. São em questões tão profundas e complexas como essas que o cineasta Francisco Garcia baseia seu retrato da vida de três jovens amigos, Luiz, Luara e Luca, que dividem sonhos e desilusões enquanto vivem seu cotidiano enfadonho.

  Fotografado todo em preto e branco, Garcia já cria assim uma certa ironia para um filme chamado Cores. Mas não fica difícil imaginar o por que da estratégia de Garcia, já que fica claro que é porque aqueles indivíduos vivem uma vida “em preto e branco” enquanto sonham com um mundo colorido, que parece sempre mais distante no tédio e mormaço em que vivem (“que ótimo, mais um final de semana sem ter porra nenhuma para fazer” comenta Luara em certo momento). Cada um dos três jovens acabam servindo como um recorte para o diretor explorar diferentes âmbitos envolvendo essa passagem para a vida adulta que comentei. Luara, que trabalha como funcionária numa loja que vende peixes, sonha com uma vida diferente num lugar diferente, mas compreende que, para isso, é preciso sempre mais esforço desgastante, que vai matando um pouco dela a cada dia da semana; assim, é evidente que as esperanças e sonhos da garota são apenas vagas imagens num horizonte enevoado, mas que é uma forma de combustível para fazer com que ela permaneça em movimento; nesse aspecto, por sinal, a performance de Simone Iliesco é impecável por conseguir traduzir esse ar sonhador e niilista da personagem. Luiz trabalha numa farmácia mas, clandestinamente, trafica remédios tarja preta; constantemente triste e preocupado, o jovem ainda mantém em si a rebeldia de adolescente que enxerga uma vida normal, com um emprego normal, apenas como uma forma mais dolorosa de morrer (“às vezes tenho mais medo da vida do que da morte”), e assim se fecha num ciclo mortal de pequenos desastres cotidianos do qual não conseguirá sair. Já Luca tem a aparência de rebelde punk, cheio de tatuagens, e “trabalha” como “fazedor de tatoos” (ele quase nunca tem clientes e pouco se esforça para conseguir), mas sua imagem é traída pela barriga de chopp e por ainda morar com a avó, cuidando dela (mas ainda assim apela quando essa, mesmo velhinha, não atende o telefone); demonstrando carinho pela velha, ele na verdade morre de medo do dia em que ela ir embora, já que será precisamente quando ele terá que largar seu jeitão de moleque para poder encarar a vida de verdade, algo que, na inércia em que vive, parece impossível e assustador.

  Desenvolvendo seus protagonistas com calma, Garcia demonstra notável carinho pelos personagens, nunca taxando-os de irresponsáveis ou imaturos, mesmo que ficar bebendo cerveja e se drogando largados no sofá reclamando não seja exatamente algo imune a julgamentos. O diretor já inicia seu filme mergulhando-nos no mundo particular de cada um deles através da trilha sonora, que evidencia um pouquinho de suas personalidades. Buscando explorar diferentes lados da personalidade de cada um, Garcia cria momentos notáveis como aquele em que Luiz se mostra realmente envergonhado por estar, de novo, atrasando o aluguel, ou ainda os diversos momentos em que fica claro o carinho de Luca pela avó. Ainda, há sequências de puro ouro no longa, como a que (minha favorita) Luara e Luiz tentam convencer Luca a ir numa festa, enquanto este diz que deve cuidar de sua avó; nesse momento, Garcia desenvolve um diálogo pesado e niilista entre os três em que fica bem delineada a visão de mundo de cada um, sendo mais fascinante ainda que essa sequência termine com uma dança de Luara à uma música que os três curtiam muito, como se, nesse momento, ela se deixasse levar pelo som, esquecendo um pouco das desilusões do dia-a-dia e da conversa pesada que acabaram de ter. Garcia ainda surpreende em detalhes como quando filma Luara, na loja, através dos aquários, como se ela mesma vivesse presa dentro de um, ou ainda pelo fato de essa mesma personagem viver ao lado de um aeroporto, onde o barulho constante de aviões parece lhe jogar na cara que ela, provavelmente, não viajará tanto quanto planejava. Ainda, ambientar o longa em um ambiente de São Paulo extremamente propício para inundações, acaba gerando um final belíssimo, poético e triste.

  Mas é ao aprofundar em questões ainda mais complexas que Garcia transforma Cores em uma obra-prima cada vez mais fascinante. Os ideais de cada um dos três protagonistas parece ser sempre colocado em jogo ao se verem constantemente tendo que renega-los para sobreviver de algum modo, algo que vamos percebendo quanto mais vamos crescendo e tendo que fazer coisas que não nos orgulhamos. Luara, muito provavelmente, não se orgulha de mentir para a mãe que faz faculdade apenas para usar o dinheiro que ela lhe manda todo mês, ainda mais porque a mesma Luara diz que “sem faculdade não há sucesso”. Mais fascinante ainda é perceber como Garcia busca mostrar a passividade da juventude (e dos jovens adultos) de hoje em dia, que parecem descartar cada vez mais rápido seus sonhos, enquanto, antigamente, as pessoas lutavam bem mais pelo que queriam e desistiam apenas depois de muito esforço. Talvez isso seja um sintoma da pós-modernidade em que vivemos, onde o prazer instantâneo é a única coisa que temos em vista, e não sabemos realmente batalhar por algo a longo prazo. Também é impossível não notar a alfinetada que Garcia faz ao governo quando ouvimos Lula (possivelmente o filme se passa quando ele era presidente, mas isso não fica claro) na televisão falar sobre os incríveis progressos econômicos da nação enquanto acompanhamos pessoas que vivem num terrível ciclo de miséria sem escapatória aparente.

  Compondo uma dobradinha com outro recente longa brasileiro, o extraordinário O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, ao lidar com temas como frustações e desilusões (mesmo que o longa de Mendonça Filho se foque mais nessas questões dentro da classe média), Cores é um filme pesado e triste, mas sem dúvidas uma obra-prima fascinante por encarar com olhos compassivos a inércia da juventude, a morte dos sonhos e, principalmente, a dificuldade de agir diante da trágica percepção dessas questões.

OBS: Não consegui inserir na minha análise, mas não poderia deixar de citar o fascinante monólogo do piloto, no momento em que este discorre sobre uma música que o emociona. Esse momento é maravilhoso tanto pela fala do personagem, quanto pelo detalhe de, pela primeira vez no filme, ele tirar os óculos escuros, como se estivesse deixando de se esconder sob a áurea de mistério e promessas que representava para Luara, justamente por agora estar se descascando como ser humano. Um momento sinceramente lindo que, confesso, me encheu os olhos de lágrimas.




Nota: 10,0 / 10,0



sábado, 18 de maio de 2013



Crítica Terapia de Risco (Side Effects / 2013 / EUA) dir. Steven Soderbergh
 por Lucas Wagner

  Se há algo que muito aprecio na carreira do cineasta Steven Soderbergh é como este sempre buscou trabalhar com temas diferentes sob abordagens diferentes. Estamos falando do cara que dirigiu Traffic (um longa político e extremamente complexo sobre o tráfico e o uso de drogas), Sexo Mentiras e Videotape (filme erótico que explora a forma como quatro personagens específicos buscam prazer sexual), Onze Homens e Um Segredo (filme cool sobre um roubo arriscado) ou ainda À Toda Prova (exercício de estilo puramente técnico), apenas para citar alguns exemplos. Por mais que nem sempre acertasse em cheio, os trabalhos do cineasta nunca caíram totalmente na mediocridade, o que acabava ressaltando o talento dele em viajar sob todos esses diversos temas. Assim, Terapia de Risco (seu suposto último trabalho no Cinema) é curioso por tentar unir, em um único filme, diversos temas, mudando completamente de abordagem a partir de certo ponto, o que, geralmente, é algo fascinante (vide Um Drink no Inferno, de Robert Rodriguez). Mas se, à primeira vista, isso é curioso, não consigo deixar de sentir certa decepção por perceber como um longa complexo e multifacetado tenha passado para um suspense tipo Tela Quente, pretensamente inteligente, mas ordinariamente simples.

  Escrito por Scott Z. Burns (que já trabalhou com Soderbergh em Contágio e O Desinformante), a sinopse de Terapia de Risco trata do caso de uma mulher, Emily (Rooney Mara), cujo marido (Channing Tatum) acabou de sair da prisão. Não conseguindo lidar bem com essa nova situação, Emily desenvolve um quadro de depressão, recebendo então os cuidados do psiquiatra Jonathan Banks (Jude Law), que lhe prescreve determinado medicamento, cujos efeitos colaterais acabam tendo consequências trágicas.

  Assim como em Traffic e Contágio, Soderbergh parece buscar montar um panorama sobre um determinado tema, procurando explorá-lo sob diferentes ângulos. Se no primeiro citado o alvo eram as drogas, e o segundo uma epidemia de proporções globais, aqui é a psicofarmacologia. O diretor passa de um ponto de vista micro para um macro de forma mais calma e contida do que nos dois filmes citados. Deixe-me explicar: no início, acompanhamos o doloroso processo de depressão de Emily, até que, aos poucos, passamos para a discussão sobre o uso de drogas na psiquiatria, e até mesmo como Wall Street acaba tendo certo influencia sobre esse assunto. Como fez com sucesso em Traffic (e onde tropeçou um pouco em Contágio), Soderbergh dá grande atenção às consequências humanas da sua temática, adotando o ponto de vista de seus personagens, assim como desenvolvê-los mais sempre que pode, tornando-os figuras ambíguas e complexas.

  Isso, alias, não impede que Soderbergh e Z. Burns explorem com propriedade as diversas camadas das discussões eliciadas pelo roteiro. Como estudante de Psicologia, confesso ter encontrado vários pontos passiveis de discussão acadêmica aqui: quais são os verdadeiros benefícios da psicofarmacologia? Até que ponto as drogas são realmente necessárias e benéficas? Como a personagem de Catherine Zeta-Jones diz em determinado momento no longa: “Um cardiologista pode prever um ataque cardíaco, mas nós (terapeutas) não podemos prever todas as mentiras” (eu parafraseei). Através da análise do comportamento, podemos prever até certo ponto como a pessoa se comportará em diferentes ambientes, mas não podemos sempre controlar todas as mínimas variáveis envolvidas no complexo processo do comportamento. Assim, a confiança no que diz o paciente é até mesmo ilusória, já que o ponto de vista dele pode estar alterado. Ainda assim, o uso inadivertido (muitas vezes movido por motivos econômicos) das prescrições de drogas psiquiátricas não é a única saída possível, já que essas podem ter efeitos colaterais ainda mais graves, dependendo das variáveis que controlam o paciente em determinado momento. Emily, ao fazer o que faz no filme, pode ter sido movida por profundos e ambíguos desejos inconscientes (pelo menos é o que parecia ser até certo momento do longa) que só foram piorados pelas drogas receitadas por Jonathan. O ser humano é extremamente multifacetado e complexo para ser definido e “curado” apenas alterando aspectos biológicos. Sua interação com o ambiente em que vive pode oferecer dados muito mais valiosos para ajuda-los do que as drogas. Assim também, é fascinante que o roteiro de Z. Burns se arrisque a investigar até mesmo a complexa interação entre terapeuta e paciente, como a própria personalidade e o contexto do primeiro parece influenciar toda essa relação de maneira definitiva para o segundo.

  Ancorado por um elenco forte, Soderbergh tem a felicidade de contar com as impecáveis atuações de , principalmente, Rooney Mara e Jude Law. Sempre linda, Mara cria uma Emily complexa e frágil, cuja dor da depressão parece genuína ao espectador por conseguirmos compreender como a prisão do marido a destruiu e como ela, ainda assim, parece o amar (observe a alegria extravasada dela no momento em que ele sai da prisão), e tenta assim ser mais forte do que realmente é, o que acaba causando os piores estragos em sua pessoa (ressalto aqui que estou dizendo isso desconsiderando as reviravoltas finais do longa). Já Jude Law cria a figura mais multifacetada do longa, transformando Jonathan num terapeuta realmente preocupado em ajudar seus pacientes, ao mesmo tempo em que não hesita em concordar em receitar drogas ainda em fase de teste para estes (embora sob consentimento dos pacientes); também, é admirável que Law viaje com tranquilidade sobre todas as camadas de John, até mesmo quando seu lado mais egoísta e mesquinho vai surgindo durante a projeção. Não poderia deixar de ressaltar ainda a atenção de Law à pequenos mas enriquecedores detalhes, como pelo fato de se abaixar para conversar com um paciente quando este vai se estressando (demonstrando assim submissão e tentativa de acalmar), ou quando fica no celular enquanto a esposa desabafa. Channing Tatum mais uma vez se mostra um ator carismático ao conferir tridimensionalidade à um personagem que, sem um ator como ele, não seria nada. Já Catherine Zeta-Jones parece apenas afundar como atriz, compondo mais uma figura enfadonha, como fez nos recentes (e ridículos) Rock of Ages e Linha de Ação.

  Soderbergh, além da direção, assina a fotografia (sob o pseudônimo de Peter Andrews) e a montagem (dessa vez sob o pseudônimo de Mary Ann Bernard), conseguindo mais uma vez criar um trabalho complexo e competente. Com uma paleta de cores sempre tristes, variando do cinza (trazendo melancolia) para o verde-amarelado (lembrando putrefação), Soderbergh consegue traduzir bem o estado psicológico da depressão de Emily, algo ainda mais bem feito pelo diretor sempre usar uma profundidade de campo reduzidíssima, permitindo que vejamos praticamente apenas os personagens que estão mais próximos da tela, o que, na primeira metade do longa, serve para ressaltar a dificuldade de Emily de enxergar o mundo ao redor, e depois esse efeito se generaliza a todos os personagens, que parece sempre presos ao seu próprio mundo e seus próprios problemas (em especial Jonathan). Até mesmo em representações mais óbvias, o diretor se faz bem, construindo composições elegantes, mesmo que claras, como o momento em que Emily observa uma imagem distorcida sua em um espelho, simbolismo que acaba funcionando de toda forma no filme, mesmo depois das reviravoltas finais. Também, Soderbergh traz um ritmo impecável ao longa, nunca deixando que se torne enfadonho ou irritante, mas sempre segurando o espectador, algo que também é efeito da linda trilha sonora de Thomas Newman (numa ótima fase de sua  carreira, como fica evidente pelo seu último e brilhante trabalho em 007 – Operação Skyfall).

  Como disse, Terapia de Risco se envereda por caminhos muito diferentes e inesperados. O objetivo de Soderbergh e Z. Burns era fazer com que o drama psicológico crítico se tornasse um suspense conspiratório de intrigas. É uma proposta interessante que pode agradar à muitos. À mim, não agradou. A trama criada e as reviravoltas podem até ter sido bem estruturadas pelo roteiro (ao lembrar do filme, de detalhes específicos espalhados, isso fica evidente), mas é simplesmente...ridícula. Simplista, besta, além de muito pretensiosa, a trama perde toda a dimensão complexa que vinha tendo, substituindo-a pelo puro choque, mesmo que, como já disse, a transição para essa outra abordagem tenha sido feita com relativo cuidado. Meu problema com ela não é técnico. É simplesmente narrativo.

  Assim, Terapia de Risco cai de um grande filme para um passatempo dispensável que perderá a graça se tentarmos assisti-lo de novo. Acaba sendo aquele tipo de longa que assistimos nos domingos de tarde, deitados na cama, meio dormidos de tanta cerveja que tomamos no almoço. O que, se considerarmos a carreira de seu cineasta, não deixa de ser decepcionante, ainda mais se este for mesmo seu último filme.

  Se for mesmo: ainda assim sentirei sua falta Sr. Soderbergh.

  Nota: 5,8 / 10,0

  Outras críticas minhas de filmes dirigidos por Steven Soderbergh:

segunda-feira, 13 de maio de 2013

O DIA EM QUE GOIÂNIA PAROU (Uma breve resenha do show de Paul McCartney no Serra Dourada)




Por Paulo Henrique Faria 


       Uma catarse sonora é a forma mais objetiva  e clara para se definir o que mais de 45 mil pessoas presenciaram no Estádio Serra Dourada há exatos sete dias. E o responsável pelo feito foi o inigualável ex-Beatle Sir James Paul McCartney, que do auto dos seus 70 anos mostra que bota vários artistas muito mais jovens no bolso.    

         O show começou com um pequeno atraso de 34 minutos, mas não por causa do grupo – afinal pontualidade é um quesito quase obrigatório para os britânicos – mas sim, pela desorganização, primeiro dos aeroportos brasileiros, que atrasaram o voo do jatinho particular de Paul e posteriormente, da produtora do espetáculo, que deixou boa parte do público esperar do lado de fora até minutos antes do início do concerto. Empecilhos à parte, as primeiras músicas foram ‘Eight Days a Week’ e ‘Junior’s Farm’. Logo em seguida Paul começou a arranhar o português com frases como “Boa noite Goiânia! Boa noite goianos!” e mais ao final da apresentação “Vocês são demais!” e “Trem bão!”. Se não bastasse a extrema simpatia e esforço de interagir com o público, McCartney ainda brincou com algumas Esperanças – Não confundir com Grilo, Gafanhoto ou Louva-a-Deus – que insistiam em pousar em sua roupa clara e chamativa; teve um inseto inclusive, que foi batizado de “Harold” pelo astro. Genial! Veja mais detalhes deste momento neste vídeo aqui:  



          

        Na sequência foi um clássico atrás do outro e, na ordem foram executadas: ‘Paperback Writer’, ‘My Valentine’(Com direito a clipe especial no telão com Natalie Portman e Johnny Deep), ‘Nineteen Hundred and Eighty-Five’, ‘The Long and Winding Road’, ‘Maybe I’m Amazed’, ‘Hope of Deliverance’, ‘We Can Work It Out’, ‘Another Day’, ‘And I Love Her’, ‘Blackbird’, ‘Here Today’, ‘Your Mother Should Know’, ‘Lady Madonna’, ‘All Together Know’ e ‘Mrs. Vandebilt’, 'Eleanor Rigby', 'Being for the Benefit of Mr. Kite!', 'Something', 'Ob-La-Di, Ob-La-Da', 'Band on the Run', 'Hi Hi Hi'. Na parte final os maiores clássicos dos tempos dos Beatles e carreira solo como 'Back in the USSR', 'Let it be', 'Live and Let Die’ (ponto alto do show, com várias explosões pirotécnicas e tudo) e claro a inesquecível 'Hey Jude' (que fez todo o estádio cantar em unísono o famoso na,na,na,na,na...). Na parte final mandaram ainda 'Day Tripper', 'Lovely Rita', 'Get Back', 'Yesterday', a pesada 'Helter Skelter', 'Golden Slumbers', Carry That Weight' e 'The End'.    

  
       Foram 2 horas e 40 minutos de duração, mas bem que poderia ter sido mais. Shows como esse deveriam ocorrer com maior frequência por aqui, afinal ninguém merece ouvir o ano todo sertanejo universitário. Por isso, fica agora a esperança de rolar Rolling Stones no final de outubro – boato que começa a ganhar força dia após dia. Certo mesmo, é que o dia 06 de maio de 2013 entrou para história dessa ainda jovem cidade chamada Goiânia, tudo porque o maior concerto musical, pra não dizer o maior evento cultural de toda a história goianiense, foi finalmente realizado. Paul McCartney é um cantor e músico excepcional, que tem presença de palco, afinação, sincera simpatia e, não tem ataques insuportáveis de estrelismo, como muitos por ai o fazem. Espero que essa não seja a primeira e última vez deste grande inglês em gyn, afinal eu, você e todos os amantes da boa música clamam por coisas de qualidade. All You Need is Paul! Get Back! Get Back!
          

domingo, 5 de maio de 2013




Crítica O Abismo Prateado (O Abismo Prateado / 2013 / Brasil) dir. Karim Aïnouz

por Lucas Wagner

 Nosso cotidiano é repleto de tragédias pessoais, maiores ou menores, que constantemente nos desestabilizam o nos obrigam a procurar força para continuar a vida. Essas tragédias variam desde a morte de um ente querido até algo simples como ter tirado uma nota baixa. Para cada um, esses eventos adquirem um tom todo particular que é invisível à outros, já que só quem sente realmente sabe o que está passando. Assim, mesmo que outros digam compreender nossa dor ou desorientação não compreendem totalmente, mesmo já tendo passado por algo similar. Cada um de nós é um Universo único e amplo que, no entanto, só nós mesmos temos acesso total (e às vezes nem nós mesmos).

  Uma história de uma mulher cujo marido resolve ir embora, sem maiores satisfações, pode parecer, a terceiros, uma situação triste e irritante, mas não somos capazes de nos colocar no lugar dela, conscientemente, principalmente porque é algo que é ao mesmo tempo prosaico e distante (poucos de nós vivenciamos isso), e assim adotamos uma atitude mais indiferente. Em O Abismo Prateado, o ótimo cineasta Karim Aïnouz trabalha justamente as primeiras 24 horas de uma mulher, Violeta (Alessandra Negrini) depois que acabou de entrar numa situação assim, quando entra num estado de desorientação total que culmina em passeios à deriva pela noite do Rio de Janeiro, num caráter voyeurístico. No entanto, os 83 minutos de duração em que acompanhamos a tortura dela, se tornam uma tortura também para o espectador, já que Aïnouz usa o Cinema como uma ferramenta extremamente eficaz para nos mergulhar na dor de Violeta, fazendo com que, mesmo que apenas em pouco mais de uma hora, possamos experimentar algo que não é incomum no cotidiano, mas, no entanto, estamos sempre indiferentes.

  Usando poucos diálogos, Aïnouz usa imagens específicas e seu conhecimento de técnicas cinematográficas para atingir o espectador de forma mais direta e emocional, realmente nos colocando nos sapatos (ou botas) de Violeta. O excepcional design de som é, assim, uma das mais poderosas armas do diretor, que usa sons diegéticos (do ambiente) de forma impecável para traduzir estados emocionais específicos e sugerir diversas ideias. O momento em que Violeta recebe o trágico recado de seu marido pelo celular, por exemplo, é todo abafado pelo barulho ensurdecedor da cidade, assim como quando ela encontra uma amiga engenheira numa obra em construção, quando quase não ouvimos o diálogo, devido a barulhos típicos de um ambiente como esse em horário de pico. Nem precisaria dizer que esses sons traduzem, para nós, a agonia e desorientação de Violeta. Assim também é interessante que, no fim de tarde, o que reina é mais um silêncio opressor (inclusive o som do mar que ouvimos à distância é calmo), como se agora um pouco do desespero dela tivesse passado e ela estivesse sendo obrigada a encarar o vazio de sua casa. Mas o trabalho é ainda mais fascinante na sugestão de ideias, como quando ouvimos, abafadamente (já que Violeta está em um cômodo diferente), um insuportável funk, como se fosse o início de uma nova crise da personagem, e quando ela entra na sala em que a “música” está tocando, o barulho é terrível, como se nos mergulhando no novo ataque dela. Além disso, a ausência de uma trilha sonora original afasta um tom melodramático e meloso que poderia prejudicar o longa; aliás, qualquer música que aparece aqui vem com um objetivo e é sempre diegética e se expandem em significados maiores e mais complexos: observem o momento no táxi e na boate, quando tocam músicas românticas que, no entanto, continuamos ouvindo quando Violeta deixa o ambiente, como se aquelas músicas (agora com um ar tão nostálgico para alguém na condição dela) se fixassem em sua cabeça.

  Também, Aïnouz investe em diversos planos de longa duração, o que nos deixa ainda mais impacientes e inquietos (exatamente como Violeta está se sentindo), nos deixando a ponto de explodir. Assim, o plano sequência em que Aïnouz acompanha toda a trajetória da protagonista dentro de um elevador (até acima do décimo andar!) até o apartamento específico que procura, é de grande inteligência e eficácia, principalmente se considerarmos que estão reformando um dos apartamentos desse andar (com toda a barulheira que isso tem como consequência), o que, além do já enorme plano, serve como cereja do bolo no quesito desespero absoluto. A dor interna de Violeta é ainda bem representada pelos diversos ferimentos externos (no braço e na testa) que vai ganhando ao longo do filme. A de se observar também a inteligência de Aïnouz ao investir numa profundidade de campo reduzidíssima durante basicamente o tempo inteiro, o que isola a figura de Violeta ao tornar todo o seu redor embaçado, ilustrando assim a falta de “materialidade” desse mundo externo que perdeu o sentido quando a personagem se desestabilizou. A câmera sempre na mão, tremendo mais em momentos específicos, entrando e saindo de foco, garante ainda um tom de instabilidade constante, ficando ainda mais evidente quando o diretor adota, além de uma câmera nervosa, planos fechados que, junto ainda com a já comentada profundidade de campo reduzida, torna extremamente difícil para o espectador distinguir qualquer coisa que seja na tela, o que é exatamente o objetivo. E como não nos emocionarmos com o momento em que os faróis de vários carros em movimento parecem estrelas cadentes, pelo uso que o diretor faz de flares, ressaltando o caráter mágico e transformador desse momento específico (que se dá praticamente no fim do longa)?

  Se revela ainda uma surpresa agradável que Aïnouz use algumas dessas técnicas em relação à Djalma (marido de Violeta) também, já que sem isso poderíamos encará-lo apenas como um sujeito imprestável e egoísta que causou dor desnecessária à mulher. Logo na abertura do filme somos envolvidos pelo som ensurdecedor de um mar bravo (mar esse que, em outra parte desse texto, já foi comentado como sendo fonte de simbolismo), do qual, depois de algum tempo, Djalma sai e caminha, só de calção de banho, para sua casa, atravessando uma cidade grande na hora do rush insuportável, enquanto o diretor acompanha o personagem com a câmera na mão e em planos mais fechados. Nesses primeiros momentos já temos um desenho mais claro do estado psicológico em que se encontra o sujeito. Assim também é com o sexo que faz com a esposa (que, pelo jeito que Aïnouz filma, fica sufocante e desagradável, mesmo que estejamos vendo Alessandra Negrini nua) e outros simbolismos mais, como quando o vemos, nu, em sua casa, enquadrado em plano mais aberto, ressaltando o vazio, ou ainda quando beija a esposa através do vidro do boxe do banheiro. Alias, sem ser quando fazem sexo, os dois quase não são encontrados no mesmo quadro, o que ressalta a distância dos dois, que ele tanto vive e que, no entanto, parece não afetar Violeta.

  Mesmo que essa construção do mundo de Djalma seja perfeita, é mesmo em Violeta que O Abismo Prateado tem sua grande força, principalmente pela impecável performance da linda Alessandra Negrini. A expressividade da atriz no filme é de uma perfeição absoluta, já que dependemos muito dessas expressões para saber como ela está se sentindo no momento (como já disse, o longa conta com poucos diálogos). Assim, é de tirar o chapéu momentos como o que Negrini mostra a dificuldade de concentração da personagem quando tem que atender um paciente (ela é dentista) logo depois que receber o recado do marido. Também é eficaz a estratégia da atriz de interpretá-la como uma moça extremamente doce e delicada nos momentos pré-telefonema do marido, o que acaba ressaltando ainda mais a dor dela (e é um acerto que Negrini continue sendo doce assim mesmo durante seus momentos de dor, como quando ajuda a garotinha Bel no banheiro). A personagem em si possui um arco dramático bem escrito pelos roteiristas Beatriz Batcher e o próprio Aïnouz, já que colocam Violeta encontrando algumas figuras na madrugada do Rio de Janeiro que acabam, de uma forma ou de outra, ajudando-a na definição de seu caminho. Nesse sentido, quem mais merece créditos, é o jovem pai sem teto e sua filhinha, que acabam sendo vitais para fechar o arco dramático da personagem sem, no entanto, deixar que o longa perca o seu caráter de cotidiano, já que não presenciamos uma catarse de Violeta, mas apenas como aqueles dois indivíduos a afetaram, à sua própria maneira.

  Assim sendo, O Abismo Prateado não é um longa catártico repleto de emoções intensas. Bem, na verdade é sim repleto de emoções intensas, mas essas vem não de algo alienígena a todos nós, mas sim do comum, do prosaico. Podemos encontrar uma mulher como Violeta no nosso cotidiano, mas dificilmente poderíamos mergulhar em suas emoções e nos compadecermos dela como podemos fazer dentro de uma sala de Cinema.

Nota: 9,8 / 10,0