sábado, 1 de março de 2014


Análise:

Instinto Materno (Pozitia Copilului / 2013 / Romênia) dir. Calin Peter Netzer

por Lucas Wagner

Em diversos aspectos, esse Instinto Materno lembra a obra prima Mother – A Busca Pela Verdade, de Bong Joon-ho, mas os dois filmes se diferenciam em algo essencial: sua protagonista. Se o longa sul-coreano acompanhava uma senhora doce e humilde, que logo de cara cativava o espectador, esse romeno dirigido por Calin Peter Netzer acompanha uma mulher que, mesmo claramente amando seu filho, se revela manipuladora, calculista e um tanto perversa.

O roteiro do próprio Netzer e Razvan Radulesco inicia sua ação quando Barbu (Bogdan Dumitrache) acidentalmente atropela um garoto de 14 anos, podendo, então ir para a prisão. Sua mãe superprotetora, Cornelia (Luminita Gheorghiu), então vai fazer de tudo para impedir isso.

Netzer logo de cara agride o espectador ao abrir o longa com um corte abrupto que já nos lança no meio de um diálogo tenso entre Cornelia e sua irmã, quando a primeira desabafa sobre suas brigas com o filho. Assim já estabelece a abordagem crua que vai usar, e durante todo o longa prevalecem os cortes secos e a câmera instável que não se cansa de usar primeiros planos fechadíssimos no rosto dos atores, utilizando-se também de close-ups­ bruscos que contribuem para o sentimento de angústia. Os ambientes sempre fechados contribuem ainda para uma sensação de claustrofobia, corroborada por uma fotografia sombria em seus tons azuis e pretos, que contrastam com o amarelo quente que caracteriza algumas das cenas iniciais que mostram o aniversário de Cornelia, antes do acidente provocado pelo filho. Ainda, o diretor acerta na construção de uma mise en scène inteligente, em especial na cena em que estão presentes dois policiais, Barbu e Cornelia, e se esta é enquadrada na mesma altura de um policial, o seu filho já se encontra sentado ao lado de uma policial de pé, estabelecendo-se assim numa posição de ameaçado que é diametralmente oposta à situação da mãe com o outro policial.

Mãe esta que se revela uma personagem extremamente complexa e ambígua. Cornelia não parece aceitar que Barbu já é um homem feito, e constantemente busca se inserir no contexto da vida do filho, o que fez com que esse desenvolvesse uma personalidade que visa sempre agredir a mãe, como uma forma de buscar seu próprio espaço (por isso um diálogo que ocorre entre os dois quase no fim da obra é tão fascinante, como se coisas que já deveriam ser ditas finalmente estivessem vindo à tona). Rica, influente, poderosa e vivendo em um meio idem, o freneticismo da vida social de Cornelia já é adequadamente capturada por Netzer no inicío do filme, na festa de aniversário, quando o diretor corta com velocidade gritante através de apertos de mão e cumprimentos. O ponto fraco da mulher é mesmo o filho, e quando recebe a notícia do acidente, uma das primeiras perguntas que faz é se Barbu estava correndo, buscando, como tantas mães, ver se seu filhote não estava fazendo algo errado.

Mas sua relação com o rapaz (?) apresenta características mais perversas, até mesmo edipianas, e a cena em que a senhora faz uma massagem no filho tira qualquer dúvidas em relação à isso, tamanho o poder erótico do momento. E talvez seja por esses sentimentos mais ambíguos que Cornelia se sinta tão ameaçada por Carmen (Ilinca Goia – atuação adequadamente melancólica), namorada de Barbu, algo que fica bem evidente na excelente sequência em que a senhora finge não estar no apartamento do filho enquanto a nora bate na porta, indignada.

Mas uma das características que melhor define Cornelia talvez seja mesmo a de manipuladora. Desde o início mantém uma postura de ataque que revela certo calculismo de ações, embora um tanto desesperadas (como mandar o filho alterar o depoimento da polícia na frente dos tiras) e, às vezes, fica evidente a dimensão de sua perturbação quando apóia-se em esperanças tolas que, antes que alguém lhe mostre isso, não lhe parecem muito pueris, como ter alguma esperança de que a autópsia da criança morta possa livrar a cara do filho. Mas, muito embora ame o filho, é notável como a senhora busca sair ganhando frente às diversas negociações que trava, como quando conversa com a testemunha, naquela que é a melhor cena do filme: Cornelia tem dinheiro suficiente para pagar o que a testemunha exige, assim salvando a cara do filho, mas busca conseguir uma forma de não pagar e ainda ter o que quer; o problema (e o que torna a cena tão fascinante) é que a testemunha é tão manipuladora quanto ela. Aliás, a dimensão da personalidade controladora de Cornelia ganha contornos ainda mais notáveis no rápido gesto (capturado com maestria pelo diretor) do olhar que Barbu lança a ela quando lhe é exigido um exame de sangue, recebendo um discreto meneio de cabeça em resposta, e tal cumplicidade revela algo de extraordinariamente complexo da relação dos dois: muito embora ele esteja sempre em posição de ataque à mãe, esse olhar revela um ato de perguntar se deve ou não obedecer às ordens dos policiais, revelando uma atitude dependente que, se não fica muito evidente no plano consciente, pelo menos inconscientemente se estabelece com força.

Pois se há algo que grita em Instinto Materno é a influência destruidora que Cornelia exerceu em Barbu, transformando-o num homem neurótico e claramente confuso quanto ao que quer, o que leva Carmen à um comportamento de triste desamparo justamente por não saber como se comportar com o namorado, encontrando que talvez a única solução possível seja o término. E para que a influência esmagadora de Cornelia tenha verossimilhança, Luminita Gheorghiu tem uma performance poderosa sem a qual o longa não funcionaria tanto. Mas os maiores méritos da atriz se referem ao final do filme, simplesmente impecável, já que o que começa como uma tentativa de manipulação por parte da protagonista logo se transforma em emoção verdadeira, doída e massacrante, em um momento que poderia render prêmios à Gheorghiu.

Angustiante do primeiro ao último plano, Instinto Materno é uma obra que dificilmente agradará espectadores desejosos de muito suspense escancarado, mas certamente surpreenderá aqueles que sabem ler nas entrelinhas de uma destrutiva relação entre mãe e filho que, no entanto, não deixa de guardar em si um pouco do afeto que há nesse tipo de relacionamento.

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