domingo, 26 de janeiro de 2014


Análise:

Alabama Monroe (The Broken Circle Breakdown / 2013 / Bélgica) dir. Felix von Groening

por Lucas Wagner

Ao mesmo tempo em que é uma obra sensível, Alabama Monroe também é um filme impiedoso. Quando começam os créditos, o sentimento maior é de pura devastação, e se as lágrimas foram brutalmente seguradas ao longo dos 111 minutos de duração, no fim estas correm soltas, pois é a única resposta que conseguimos dar à torturante jornada do casal Didier e Elise.

Pois ver Didier e Elise, durante uma apresentação musical, se entregarem à um beijo apaixonado enquanto uma luz vermelha os abraça (representando sua paixão), se torna quase uma flagelação por sabermos que, no futuro, terão de unir suas forças para lutar contra o câncer que mata sua filhinha, Maybelle, o que deve ser a mais fiel representação de um inferno na Terra para pais e mães.

Os créditos por conseguirmos sentir tanto durante a projeção se deve à abordagem sensível do diretor Felix van Groening, que adota uma narrativa que flui entre passado, presente e futuro para desenvolver o relacionamento do casal principal entre si e com sua filha. Assim, somos sensibilizados desde o princípio quando vemos Didier cantando uma canção num dos momentos cruciais para Elise se apaixonar por ele e logo depois vemos, no futuro, a pequena Maybelle recebendo injeções. Coadunando sequências fortes e tristes com outras que mostram a alegria da paixão nascente dos protagonistas, Alabama Monroe tem uma atmosfera de constante melancolia, por mais que sejamos capazes de sentir o afeto que enche cada sequência.

Sequências absurdamente bem filmadas por van Groening, que investe em planos delicados e atentos, como todas as vezes que Didier observa, comovido e maravilhado, Elise cantando, ou quando essa observa seu futuro marido com fascínio enquanto este fala eventualidades sobre o cotidiano. Assim, o cineasta e o diretor de fotografia Rubens Impens também demonstram inteligência na paleta de cores, quando parecem colorir várias das sequências mais alegres e nostálgicas com um amarelo dourado, levemente alaranjado, que lembra o pôr do sol, conferindo uma atmosfera de sonho para sequências como a que Didier e Elise fazem sexo ou quando Maybelle tem uma divertida surpresa em sua casa, contrastando com a paleta fria que engloba os momentos mais melancólicos, sempre numa coloração azul (blue, em inglês, também significa tristeza), por vezes forte e explosiva, como na sirene de uma ambulância. O vermelho forte que aqui também é tão evidente, serve (como já dito) de cor para a paixão fervorosa do casal, colorindo momentos como suas conversas debaixo de um cobertor depois de transar; mas, no decorrer da projeção, essa mesma cor adquire uma conotação maligna, infernal, como em um delírio de uma personagem, servindo como ironia para o fato de que foi aquela paixão avalassadora de antes que trouxe o presente inferno que todos viviam.

A citada fluidez da narrativa (conseguida através do estupendo trabalho do montador Nico Launen) permite não apenas que a obra se desenrole com elegância, mas ainda permite que criemos laços apertados com aqueles indivíduos, como ao cortar de uma briga poderosa para o momento em que o casal se conheceu, servindo de lembrança de um momento mágico que existiu que faria uma briga daquelas parecer algo inimaginável. Launen também apresenta inteligência ao encontrar as formas mais elegantes de viajar pelo filme, fazendo com que este deslize suave através de nossos olhos e ouvidos, ao empregar raccords sonoros belíssimos para costurar as sequências, como ao costurar o som de um rugido juvenil de Maybelle imitando um tigre em uma cena, para o ronco do motor de uma caminhonete em outra. Esses raccords sonoros também funcionam quando as canções da banda de Bluegrass dos protagonistas servem para viagens temporais, e às vezes, o mero som de um delicado acorde de banjo se torna a ligação para uma determinada outra sequência, em uma época diferente.

Alabama Monroe apresenta uma narrativa que ainda é capaz de surpreender o espectador justamente por ir contra o que os maiores clichês mandam, e consequentemente talvez seja complicado continuar essa análise sem o perigo de cair em alguns spoilers, e por isso o restante do texto deve ser lido apenas por quem viu a obra. E digo isso em função do que é o maior objetivo do filme: explorar o relacionamento de Didier e Elise antes e depois da morte de Maybelle. Funcionando como um casal dinâmico e perdidamente apaixonado, Didier e Elise apresentam um carinho e fascínio impressionantes em relação ao outro, sendo capazes de mudanças notáveis em suas vidas e, à princípio, personalidades tão distintas. Elise, por exemplo, é retratada pela linda Verlee Baetens como uma mulher sensível e bem humorada, mas o seu corpo tatuado apresenta traços de uma mulher forte que é capaz de reconstruir suas emoções de maneira criativa, como ao transformar as tatuagens de nomes dos ex-namorados em desenhos elaborados, apresentando uma predileção notável por caveiras e flores, representando assim seu caráter de mulher forte e sensível. Elise, no entanto, figura que não poderia parecer mais distante do country cantado por Didier, acaba entrando para a banda do amado, sendo uma adição fenomenal (a voz da moça é algo quase divino). Já Didier (numa bela atuação de Johan Heidenbergh), homem grandalhão mas sensível como um poeta, idolatra a namorada de todas as formas, e se acaba assustando-se ao ver toda sua vida mudada pela gravidez da parceira, logo arruma um jeito de se reorientar e construir uma nova vida a partir dessa variável.

Isso é o casal antes da morte da filha. Pois vê-los completamente massacrados e quebrados pelo luto é uma história bem diferente. A princípio, é tocante vê-los resistindo à tentação de sucumbir à explosões injustas um com o outro, que seriam tentativas irracionais de pôr ordem no caos que viraram suas emoções, e é devastador ver Didier repetindo para a esposa “Você só está querendo criar uma briga”, e logo depois ele mesmo sucumbindo à essa tentação. E assim cada um deles busca em crenças diferentes alguns confortos, seja Elise na religião ou Didier (um ateu) numa briga tardia e (naquele contexto) inútil contra a proibição de pesquisas com células-tronco (e seus argumentos são bem válidos, apesar de serem claramente um mecanismo de defesa). Aos poucos, ele vai quase perdendo a sanidade em sua fúria nessa causa, enquanto a antigamente feliz e doce Elise busca uma forma mais radical de cobrir uma tatuagem que agora não está em sua carne, mas em sua alma, e troca seu nome, como se assim pudesse mudar sua identidade, algo que ela, posteriormente, reconhece como inútil.

E se é frustrante para um ateu como eu ver o cineasta apoiando, no fim das contas, o lado da religião, Alabama Monroe ainda conseguiu me fazer imaginar se, afinal, Maybelle não se tornou uma estrela, depois de sua morte. Não no sentido que deixa Didier constrangido, ou seja, como se a filha literalmente virasse uma estrela, mas sim no sentido de que a luz de uma estrela que explodiu anos antes continua chegando aos olhos da humanidade: a luz de Maybelle continua a passar pelas vidas de seus pais durante muito tempo depois de sua morte...

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014



Análise:

Fruitvale Station – A Última Parada (Fruitvale Station / 2013 / EUA) dir. Ryan Coogler

por Lucas Wagner

No dia 1º de janeiro de 2009, não muito depois da virada do ano, o jovem Oscar Grand, de 22 anos, pai de família, foi morto pela polícia numa demonstração de injustificável violência. Incidente, digamos, infelizmente muito comum, já que não raro as autoridades se mostram mais brutas do que aqueles contra os quais deveriam “lutar”. Assim, o diferencial deste Fruitvale Station – A Última Parada é pegar esse evento “comum” e fazer com que verdadeiramente nos indignemos com a situação, já que passa a maior parte da projeção procurando desenvolver a personalidade de Oscar e sua relação com amigos e familiares, levando-nos a conhecer e nos importar com aquelas pessoas e que soframos com sua tragédia.

Oscar é retratado como um indivíduo batalhador, vivendo em um ambiente cujos frutos das tentativas de levar uma vida decente e longe da criminalidade raramente pagam o esforço. Negro e pobre, o protagonista já foi preso algumas vezes (provavelmente por posse/tráfico de drogas), o que o afasta de sua filhinha e de sua mulher, tornando a convivência familiar cada vez mais problemática, principalmente pela tendência a ser explosivo que o jovem tinha, não aceitando levar desaforos e se entregando a estados de fúria que o levam a agredir policiais (quando ficam em seu caminho) ou ficar encarando um homem que ofendeu a ele e sua mãe, se segurando para não pular no cara, e consequentemente ignorando a mãe que está na sua frente.

O que não impedia que o rapaz fosse corroído pela culpa, sendo capaz de atos admiráveis como esconder um saco com maconha antes de sua filha entrar no quarto e, mesmo sem dinheiro, fazer de tudo para agradar a mãe em seu aniversário (e é bonito que, ao perceber se passar da 00h, prontamente mande um sms parabenizando sua progenitora). Assim, Oscar pode até se envergonhar por seu estado deplorável e mentir sobre suas verdadeiras condições, mas é um sujeito admirável e tridimensional, algo que o roteiro quase estraga ao apostar numa visão por vezes açucarada do jovem, incluindo sequências tolas como a que quase chora por um cachorro ferido. E se o protagonista funciona apesar desse tratamento, muito se deve à performance de Michael B. Jordan, cujo carisma e dedicação permitem um peso dramático ideal à Oscar e seu desejo de mudança.

Mas o mais interessante em Fruitvale Station é o modo com que o diretor/roteirista Ryan Coogler consegue enxergar as pessoas envolvidas no réveillon de 2008 para 2009. Sem se importar com opção sexual, cor de pele ou status social, todos aqueles indivíduos são engolfados por um senso de união que surge principalmente em eventos festivos como esse. Perto da 00h, presos em um metrô, essas pessoas se unem em uma euforia admirável e, mesmo quando Oscar identifica um sujeito mal encarado (possivelmente de seu passado de crimes), a tensão que surge quando esse remexe em sua mochila é prontamente apagada quando revela duas pequenas caixas de som que vai permitir que todos os passageiros curtam uma música. Sentimento de aconchego que o próprio espectador sente, embora ainda esteja tenso pela abordagem que o diretor usou de iniciar o longa com o vídeo de arquivo do crime e apostar numa câmera inquieta o tempo todo.

Esse senso de humanidade, fora o estágio em que nos encontramos no conhecimento de Oscar e seu relacionamento com a mulher, permitem que a agressividade dos policiais seja ainda mais deplorável, já que a culpa do evento que chamou a atenção da polícia provavelmente caiu nos ombros de Oscar e seus amigos apenas por sua cor de pele (mas é admirável que o roteiro humanize um dos policiais quando este se assusta ao perceber a dimensão dos atos dele mesmo e de seus colegas). Desse modo, o asco provocado pela atitude dos policiais é aterrador, e prova disso é que, se o longa abre com a cena de arquivo real do crime, a cena “fictícia”, filmada para esse filme, causa muito mais impacto e revolta, por agora termos uma visão mais tridimensional do ocorrido.

Correndo um pequeno risco de fracassar devido à sua abordagem levemente melodramática (sequências como Oscar e sua filha correndo em câmera lenta são lamentáveis), Fruitvale Station – A Última Parada ainda assim consegue se sustentar como um belo filme já que nos tira de nossa posição de espectadores reclamões que adoram criticar situações que pouco entendem, para nos dar a oportunidade de, conhecendo a personalidade da vítima, nos indignarmos com propriedade diante do absurdo de violência atual promovido por autoridades.

domingo, 12 de janeiro de 2014



Análise:

Ninfomaníaca – Volume 1 (Nymphomaniac: Volume 1 / 2013 / Dinamarca, Alemanha, Bélgica, Reino Unido, França) dir. Lars Von Trier

por Lucas Wagner

Lars Von Trier é um diretor com uma notável inteligência cinematográfica, que permite que crie estratégias visuais fascinantes em vários de seus filmes, mostrando-se sábio em como transmitir ideias ao espectador através de símbolos visuais no mínimo geniais. O que o impede de ser um cineasta à altura de sua inteligência é uma visão de mundo arrogante e parcial, demonstrada em seus filmes não através de um pessimismo calculado e cínico como o de um Michael Haneke (diretor de Amor) ou John Houston (de Relíquia Macabra), mas através de um pessimismo extremista que chega a ser até tolo. Para exemplificação, basta enxergar a solução para os problemas de Nicole Kidman em Dogville ou como a visão de que apenas a depressão permite real acesso à Verdade, em Melancolia.

O que tinha animado minhas perspectivas frente à esse Ninfomaníaca era que o diretor focasse suas energias em criar um estudo de personagem e não alguma reflexão que envolvessem suas visões de mundo. Assim como grandes cineastas à exemplo de Park Chan-Wook em Segredos de Sangue, Darren Aronofsky em Cisne Negro e David Lynch em Twin Peaks: Fire Walk With Me e Estrada Perdida, Von Trier volta seu olhar para um tema poderoso, complexo e irresistível: a sexualidade feminina. Conhecendo a habilidade do diretor em criar símbolos e desenvolver personagens ambíguos, era normal esperar desse seu novo filme uma obra repleta de nuances e observações sutis e complexas em torno do desenvolvimento da sexualidade, do vício em sexo e da perversão. Infelizmente, onde geralmente mais acerta, aqui é onde Von Trier tropeça, enchendo a primeira metade desse seu épico de cerca de cinco horas de duração com uma obviedade absurda e completa falta de sutileza/elegância na construção de seus símbolos.

Pois ao estruturar seu longa a partir de flashbacks da tal ninfomaníaca, Joe (Charlotte Gainsbourg – dona de um dos sotaques mais lindos que conheço) contando sua história para o desconhecido Seligman (Stelan Skarsgard), Von Trier cria entre os dois diálogos cultos e por vezes interessantes que, se por um lado acabam por conter algumas boas observações da projeção, por outro servem como via de escape para que o diretor despeje todos os simbolismos e os mastigue para o espectador, tirando toda a beleza que poderia existir.

E há alguma beleza em alguns desses simbolismos. Ninfomaníaca – Volume 1 enxerga o sexo e o erótico de forma a coloca-lo lado a lado com diversos eventos naturais e até artísticos. Apesar de encher a paciência ao buscar oferecer sempre algum insight (muitas vezes forçados), o roteiro de Von Trier é relativamente eficaz ao fazer comparações de parceiros sexuais de Joe, e da própria protagonista, com animais selvagens, e até mesmo a atividade de pesca em certo momento serve (ou deveria servir) como metáfora para a caça de Joe e sua amiga, B., à homens em um trem. E por mais que seja pueril ao clamar por uma forçada comparação de certos parceiros de Joe com a sequência de Fibonacci, o paralelo traçado com uma obra de Bach confere ao sexo um caráter artístico pelo menos interessante no momento em que os elementos que constituem a música encontram um correlato na vida e atividades da protagonista.

Como já dito, o problema é que nada disso pode ser deduzido ou percebido pelo próprio espectador, já que Von Trier mastiga essas observações e deduções nos diálogos, conferindo à Ninfomaníaca um caráter insuportavelmente didático. Não raro Seligman interrompe o fluxo de ideias de Joe para fazer uma correlação de sua história com a pesca, a música, ou o que quer que seja, obrigando o espectador à uma expressão de impaciência que parece ser reflexo do próprio sentimento de Joe diante daquelas interrupções. E como se isso não bastasse, o diretor/roteirista se entrega à diálogos expositivos que martelam ideias já claras, como na repetição de Seligman de sua observação de que Joe se enxerga como uma criatura deturpada. A obviedade da direção chega ao extremo quando, num dos oito capítulos aqui narrados, Von Trier opta por uma fotografia totalmente em preto e branco (diferente do resto do filme), numa expressão mais do que óbvia do estado emocional da protagonista diante daqueles eventos específicos, e que só servira para deixar hipsters de "barraca armada". Não há aqui, em nenhum mísero momento, um pingo do brilhantismo do Von Trier que teve a audácia de criar um cavalo chamado Abraão, carregando uma mulher depressiva, que não consegue atravessar uma mera ponte de um riacho, num dos simbolismos mais sublimes de Melancolia.

Os melhores momentos da direção de Ninfomaníaca – Volume 1 não são senão os que o diretor consegue transmitir ideias a partir das imagens, sem precisar martela-las. Vide, por exemplo, a abertura do filme, que mergulha o espectador num insuportável silêncio diante de uma tela preta (nos fazendo afundar dentro daquele universo), depois corta para diversas imagens melancólicas e sombrias envolvendo neve e orifícios escuros, acompanhadas de um design de som que ressalta o barulho suave de água de encontro à uma superfície, e surpreendentemente depois somos engolfados pelo som pesado da banda metal alemã Rammstein. Aqui o que vemos é a sobreposição daquela imagem taciturna pela explosão de um som violento que representa o tumulto interno de sua desesperada protagonista. Assim também, as cenas de sexo são bem filmadas justamente pela precariedade de cortes na maioria delas, representando assim experiências enfadonhas, contrastando com uma experiência sexual realmente antecipada pela protagonista, no fim desse Volume 1, que surge quase poética pelo modo como o diretor viaja pelos corpos dos atores, em cortes elegantes sempre sensuais. Também é curioso ver o talento pouco explorado de Von Trier para o humor negro ser aqui mais desenvolvido, em cenas realmente engraçadas como a fantasia de Joe dando aula, ou, em especial, a hilária sequência envolvendo a personagem de Uma Thurman.

Se, no entanto, uma das coisas mais apreciáveis no citado Segredos de Sangue era justamente as estratégias visuais criadas por Chan-Wook para desenvolver a sexualidade e perversão de India Stoker, em Ninfomaníaca – Volume 1, Von Trier gasta todas as suas metáforas nos diálogos, e toda a trajetória sexual de Joe é narrada e detalhada por uma narração em off que, pelo menos até onde vai esse Volume 1, faria muito bem ao longa caso não existisse.

Mas é possível encontrar alguns elementos curiosos no desenvolvimento de Joe, como a relação fria que mantinha com a mãe (que pode ter tido alguma influência na sua auto-imagem negativa) e o contato maior que tinha com o pai, pessoa bem mais próxima e interessada pela filha (que pode ter auxiliado na sua fixação por homens). Infelizmente, Von Trier presta pouquíssima atenção à esses detalhes, restando apenas algumas poucos elementos que salvam Joe como personagem, já que sua própria natureza é interessantíssima: ao mesmo tempo em que demonstra quase uma sociopatia na falta de sentimentos, é palpável que existe pelo menos uma consciência de que ela deveria se sentir culpada por tudo o que fez.

Enfim, Ninfomaníaca – Volume 1 mostra um Von Trier mais covarde, que não confia na inteligência de seus espectadores e entrega uma obra carente de maior sutileza, não chegando aos pés de trabalhos seus como Anticristo (seu único filme realmente impecável, apesar de que, mesmo com as ressalvas que fiz, eu goste de Dogville e Melancolia). Apesar de tudo, fiquei curioso para acompanhar o resto da jornada erótica de Joe, pois é justamente em sua última cena que Volume 1 realmente conseguiu me prender a atenção. Esperemos...

*Aqui vai, de brinde, uma zoeira da qual eu e outros críticos/estudantes de Cinema fizemos parte, nos divertindo às custas desse novo filme de Lars Von Trier:






sábado, 11 de janeiro de 2014


Análise:

O Lobo de Wall Street (The Wolf Of Wall Street / 2013 / EUA) dir. Martin Scorsese

por Lucas Wagner

Jordan Belfort destruiu a vida de diversas famílias inocentes ao deliberadamente convencer pessoas a comprar ações, garantindo à elas uma riqueza incomensurável que, é claro, era apenas um truque para tomar seu dinheiro e ficar cada vez mais rico. Sem nunca lhe passar pela cabeça o mal que poderia estar fazendo, ele se vangloriava de ser capaz de enganar essas pobres pessoas, e entrou numa vida insana baseada em sexo e drogas, buscando apenas o que poderia ser mais prazeroso, sendo inclusive estupidamente inconseqüente, o que levou à sua ruína. O Lobo de Wall Street, cinebiografia de Belfort dirigida por um dos maiores Mestres do Cinema que já existiu, Martin Scorsese (também um de meus mais caros mentores), não busca ser um melodrama que lamuria sobre os crimes de seu protagonista, mas é sim uma viagem insana de três horas de duração que nos leva a adentrar na vida desse homem, conhecendo seu estilo de vida e o universo em que vivia.

Acompanhando uma história sob o ponto de vista de um verdadeiro monstro que nunca aparentou o mínimo sentimento de culpa pelos seus crimes, O Lobo de Wall Street poderia facilmente se tornar um longa moralmente repreensivo e insuportável, já que é impossível não sentir repulsa pelas atitudes de Belfort (DiCaprio). Mas se o filme funciona, e funciona maravilhosamente bem, é por dois motivos principais: a abordagem de seu tom e de seu protagonista e grupo de amigos/comparsas.

Em questão de tom, Scorsese, o roteirista Terence Winter e todo o espetacular elenco, acertam justamente ao conferir uma abordagem descaradamente cômica, explorando todo o potencial de humor que poderia ser extraído do material. Demonstrando todo seu já comprovado talento para o humor negro, Scorsese não se inibe na hora de mergulhar seu filme no puro ridículo do absurdo das situações aqui vistas, conseguindo arrancar gargalhadas ao invés de um senso de inverossimilhança. À guisa de exemplo, fica a (genial!) sequência em que Belfort e seu amigo Donnie (Jonah Hill) ficam sob efeito atrasado de uma poderosa droga, e Scorsese os acompanha em uma longa e embaraçosa sequência com um crescente de absurdos, inclusive cocaína sendo comparada ao espinafre de Poppaye (!), e, num toque de gênio do design de som, ressaltando o som do desenho animado que passa na Tv. Essa, mais a hilária sequência envolvendo um naufrágio, são exemplos perfeitos que mostram a entrega total do diretor à um humor nonsense (mas por vezes sutil), cujo objetivo não é outro senão garantir um tom de farsa que ridiculariza os personagens e aquele universo.

Coadunando para essa ridicularização, os realizadores acertam em cheio ao tratar o protagonista e seu grupo de amigos como adolescentes debilóides e imaturos, desde a abertura do longa que, depois de mostrar uma sóbria propaganda da Sttraton Oakmont (empresa de Belfort), corta para seus funcionários, e presidente, brincando de “atirar o anão ao alvo” (isso mesmo). Acompanhando o grupo de amigos através de suas bebedeiras, orgias, uso compulsivo de drogas, Scorsese e Winter amortecem o impacto dessas pesadas cenas (mas não deixa de retratá-las em suas dimensões) por encará-los sob um viés infantilizado nas suas brincadeiras e conversas fúteis, como quando, numa aparentemente séria discussão de negócios, o tópico é o planejamento do tal jogo de “atirar anões ao alvo”, com comentários tão tolos e juvenis que só poderiam ser fruto da cabeça de adolescentes imbecis (e quando não conseguem conter a risada diante da bronca que um deles leva do pai, o que vemos é uma situação com a qual nos identificamos completamente de nossa época adolescente irresponsável), representando assim a abissal futilidade daqueles indivíduos. Vale ressaltar que Scorsese não desvia sua câmera dos momentos mais moralmente deploráveis e repreensíveis, assim não tentando alienar o espectador, mas sim fazer com que este adote o ponto de vista dos envolvidos, e não do próprio diretor ou de qualquer um de fora daquelas situações.

Tal abordagem infantilizada fica evidente, e se faz mais necessária, no seu protagonista. Jordan Belfort é um pilantra filho da mãe, egoísta e nojento, e aqui essas características nunca são mascaradas pelos realizadores, muito pelo contrário. Mas Belfort é retratado como uma pessoa com grande espírito empreendedor que aprendeu como ganhar dinheiro mas, como um adolescente mimado que nunca amadureceu apropriadamente, já que ganhou muito dinheiro quando ainda muito jovem, acaba por se ver como um verdadeiro dono do universo a quem tudo é possível e algo como limites é desconhecido. Mesmo que aparente um sentimento de culpa ao ser deixado pela primeira esposa, Belfort em poucos dias já se vê completamente revitalizado, ao mesmo tempo em que, numa tentativa fracassada de tirar agentes do FBI do seu pé, acaba por ofendê-los e (sim) jogar lagostas neles, numa representação de alguém que não sabe lidar muito bem com frustações, construindo uma personalidade completamente irresponsável mesmo quando diz respeito à salvar a própria pele.

Ao acompanharmos a mudança de Belfort desde o início de sua carreira até a sua falência, somos capazes compreender ainda mais a dimensão do estrago que aquele universo causou no rapaz. Jovem, com 22 anos, Belfort tinha um senso de fera ambiciosa latente, mas era idealista, acreditava poder fazer dinheiro e ajudar outros a ganhar dinheiro; mas ao usar o que aprende em seu primeiro trabalho em Wall Street (usando como modelo o insano e deturpado Mark Hanna – numa performance hilária de Matthew McConnaughey) para criar seu caminho rumo ao sucesso, Belfort cresce rápido demais, perto de pessoas tão inexperientes no ramo que fazia com que ele parecesse um deus. Assim, é curioso que a equipe da Sttraton Oakmont acabe funcionando como uma grande e deturpada família, já que, justamente por ser jovem, ambicioso e caçador de diversão, o corretor de ações é bem sucedido ao criar um ambiente de trabalho de sucesso, mas notavelmente descontraído. E é esse senso de família/afeto (muito mais forte do que ele tem com a mulher e filhos) e o conhecimento de como Belfort cresceu no ramo que nos permite compreender o carinho que ele desenvolve por sua empresa e seus amigos, o que acaba por humanizá-lo e tornar levemente compreensíveis algumas de suas mais inconseqüentes ações, que acabam por destruí-lo.

A partir desse material, Leonardo DiCaprio investe num trabalho de entrega total. O ator é extremamente competente ao conferir à Belfort um caráter de fome, por dinheiro, por drogas, por sexo, usando e abusando de uma energia inesgotável e furiosa, já que DiCaprio em nenhum momento deixa que o protagonista pareça menos insano do que uma bomba constantemente explodindo. Não que o trabalho do ator seja baseado apenas nas explosões de personalidade, mas ainda consegue fazer um trabalho de voz sublime, muitas vezes fazendo com que a voz falhe como a de um pré-adolescente (confirmando o que vinha discutindo nos parágrafos anteriores) e, num momento comovente, quando se vê contra a parede diante de tudo o que conquistou e construiu, adota uma cadência de voz rouca, baixa e chorosa, dando a impressão de que está lutando contra todas as células do seu corpo para fazer determinado discurso na frente dos funcionários. Belfort tem orgulho de tudo o que conquistou, e ganhar dinheiro não é senão uma outra e poderosa droga na qual é viciado, e DiCaprio compreende isso imensamente bem, permitindo que compreendamos toda aquela fúria e energia e (por que não?) desespero que movem Belfort rumo à limites tão absurdos.

Com esse caráter satírico, o longa foi taxado de defensor das ações de Belfort, como que mostrando uma vida repleta de prazeres. O que, é claro, só pode ser fala de pessoas que não enxergam o absurdo grotesco da existência daqueles indivíduos e realmente acreditem que uma vida dessas seria de todo prazerosa, e não deturpada. Como busquei deixar claro nesse texto, aparentemente o próprio Scorsese parece enxergá-los com reprovação, devido ao tom de farsa e à infantilização dos personagens, e, em certo momento, parece enxergar Belfort como um verdadeiro verme desprezível quando este se arrasta pelo chão, completamente entorpecido.

Scorsese faz de O Lobo de Wall Street quase que um irmão de alma de seus inesquecíveis Os Bons Companheiros e Cassino, usando do mesmo estilo livre e frenético que tanto encantava nesses filmes. Mergulhando num universo imoral e aversivo (como nas obras citadas), o diretor cria plano complexos que acompanham toda a energia insana das ações que se desenrolam, auxiliado pela maravilhosa, frenética e dinâmica montagem da sua habitual parceira Thelma Schoonmaker, que enche o filme de imagens diversas que acompanham a narração, alcançando o milagre de impedir que a obra fique confusa e conseguindo o efeito de transformar aquele mundo do mercado de ações em uma verdadeira selva ou, como diz o próprio protagonista, num hospício. Embalando o filme com seu particular bom gosto na seleção de uma trilha blues e rock n’ roll, Scorsese faz ainda com que a narração de DiCaprio aqui soe tão genial quanto a de Ray Liotta em Os Bons Companheiros e de De Niro/Joe Pesci em Cassino, com Belfort hora narrando os eventos, hora questionando suas ações (chegando mesmo a xingar a si mesmo, indignado) e hora se fazendo perguntas sobre como deve agir, o que acaba tendo o efeito de nos aproximar do personagem, já que estamos vendo o mundo por seus olhos. Esse estilo livre ainda permite uma alternância entre uma narração em off e momentos em que o ator fala diretamente para a câmera, e por vezes, uma sequência pode começar com a narração em off e terminar com DiCaprio falando olhando para a objetiva. Essa liberdade ainda possibilita que Scorsese brinque com as possibilidades de cada cena, como a “telepatia” entre Belfort e o banqueiro Jean Jaques Saurel (Jean Dujardin - brilhante), brincadeira essa que acaba ressaltando o caráter de víbora por trás das máscaras de afabilidade daquelas pessoas.

O Lobo de Wall Street é, então, uma viagem cinematográfica de três horas extremamente deliciosa de assistir, já que é guiada por um gênio do Cinema que sabe exatamente o que está fazendo. E, mesmo que Jordan Belfort não seja um personagem tão complexo e fascinante como outros que povoaram a carreira de Scorsese (como Travis Brickle, Jake La Motta, Teddy Daniels, Frank Pierce, Jesus Cristo, etc), ele é tridimensional o suficiente para permitir que o último plano do longa faça perfeito sentido, ao evocar o rosto de diversas pessoas miseráveis que poderiam servir como presas indefesas e, é claro, a droga favorita do nosso protagonista.