terça-feira, 4 de março de 2014


Análise:

A Grande Beleza (La Grande Bellezza / 2013 / Itália, França) dir. Paolo Sorrentino

por Lucas Wagner

Fazer Arte é um ato doloroso por definição, já que parte da tentativa de elaboração de sentimentos que, muitas vezes, revelam-se puro caos. Mas é também irresistível, e uma forma de tentar elaborar uma compreensão particular do mundo que ninguém mais pode dar ou compreender. E é sobre a natureza da Arte e sua decadência atual que versa o cineasta Paolo Sorrentino nesse seu estupendo A Grande Beleza, uma obra que ainda consegue fazer lembrar Roma e 8 ½ (um de meus filmes favoritos), dois grandes longas de Federico Fellini.

Do primeiro, Sorrentino pega a visão de transformação, ao comparar o passado grandioso com o presente vergonhoso, e do segundo pega elementos do personagem principal: um artista (lá um cineasta, cá um escritor) que não consegue encontrar elementos para compor sua nova obra, e assim mergulhamos na cabeça de um homem brilhante em suas profundas reflexões e andanças pelo bizarro composto que é ele mesmo, buscando fazer sentido de si e do caótico mundo ao seu redor.

Caótico que é, por sinal, uma palavra perfeita para definir o universo de A Grande Beleza, que não é senão aquele dos grandes meios artísticos. Pois hoje em dia, o fazer Arte, ou até mesmo apreciá-la, se tornou uma espécie de masturbação intelectual de pessoas inseguras e confusas, que a usam como uma defesa para sua própria insignificância, tentando, através de citações arrojadas e discursos elaborados, mostrar-se como alguém “relevante”. Isso fica muito claro quando o protagonista, Jep Gambardella (Toni Servillo), retruca para sua convencida amiga os motivos pelos quais tudo o que ela falou sobre seu trabalho e sua vida não passam de farsa (numa cena que inclusive insita a questão: uma obra de Arte ganha mais valor por tratar de algo externo e “relevante” como política e perde quando trata de algo íntimo como exploração das próprias percepções?). Sorrentino já escancara sua tese logo no início de seu filme, quando vemos imagens contemplativas acompanhadas por música sacra, mostrando grandes esculturas e peças arquitetônicas de Roma, e logo depois corta para uma longa sequência em uma festa de artistas famosos, regada a álcool, drogas e puro sexo. Aliás, sexo que é o único objetivo desses “intelectuais”, que aqui citam Marcel Proust não com o intuito de discutir sua obra e seu significado, mas para mostrar-se superior e conseguir tirar a calcinha de alguém. Há nessa sequência também um plano significativo onde uma mulher seminua dança dentro de um cubículo fechado por um vidro transparente, e enquanto o público de fora a observa dançando, ela aprecia a si mesmo através do reflexo que o vidro lhe proporciona.

E nem precisa ir muito longe para encontrar esse tipo de gente carente de atenção. Na verdade é só entrar no feed de notícias do Facebook e ver alguma postagem citando Clarice Lispector ou Mark Twain, que acompanham fotos de meninos em academia ou bebendo, ou de garotas empinando suas bundas na frente do espelho. Somos todos passageiros de um barco que navega águas turbulentas e, como tão lindamente diz Jep, porque não aproveitamos essa situação para conversar e brincar? A insistência de martelar para o mundo (e para si) sua própria importância, não só irrita, como ainda desperta nojo e pena.

Dentro desse caótico meio, Jep se insere como um indivíduo que só publicou um romance em toda a sua vida, não conseguindo voltar a escrever por não ter encontrado algo como uma “grande beleza”, que faça valer a pena ser eternizada no papel. Mas uma coisa que fica sempre muito clara é o sofrimento de Jep, que assim como Guido de 8 ½, não consegue organizar o seu caos interior para trabalhá-lo através da Arte. No caso de Jep é não apenas essa organização, mas algo que valha a pena escrever sobre. Assim, somos levados através de passagens belíssimas em que Sorrentino viaja através dos pensamentos de Jep, empreendendo até mesmo uma visão surrealista como o oceano no teto. Passeamos na infância de Jep, na época da perda de sua virgindade, nas memórias de uma antiga paixão, e podemos sentir um pouco da carga que os sentimentos despertados por essas lembranças tem para ele.

Jep que, interpretado de forma genial, divertida, melancólica e charmosa por Toni Servillo, é uma figura fascinante em todos os sentidos. Ele compreende a mediocridade do meio artístico, mas ao mesmo tempo faz parte dele, e não porque é arrastado, mas faz isso de bom grado. É um personagem nostálgico e sensível à sua própria maneira (vide a pergunta que responde no primeiro diálogo que trava com o espectador), que observa a destruição do mundo ao seu redor tentando entendê-lo, captá-lo, encontrar algo nele (e em si mesmo) que justifique ser traduzido em palavras.

O que Jep não entende é que as “grandes belezas” não estão distantes, em algo metafísico ou macrossocial. Está na poesia do envelhecimento do rosto humano, na observação da beleza de um animal, ou ainda na simples constatação de que uma desconhecida tem o mesmo nome de uma personagem de Dostoiévski. E se citei exemplos vistos no filme, peço licença ainda para extrapolar o material disponibilizado por Sorrentino, e dizer que essa “grande beleza” pode ser sentida com toda a força do mundo no ato de segurar a delicada mão de uma garota especial para você, brincando distraído com o peculiar anel que tem em seu indicador, ou ainda quando observamos a beleza de um dia chuvoso. O escritor russo Joseph Conrad certa vez escreveu que “o mundo dos vivos encerra maravilhas e mistérios suficientes que agem sobre nossas emoções e nossa inteligência de maneiras tão inexplicáveis que quase bastariam para justificar a concepção de vida como um estado de encanto”. O cotidiano é repleto de histórias tão espetaculares, sentimentos tão profundos, atos tão heróicos, e o passado é tão cheio de nostalgia e pontas soltas, que toda uma história poderia ser criada a partir de um simples olhar. Basta uma sensibilidade que permite desnudar o que tudo isso significa para si. E Jep tem toda a capacidade do mundo para isso, mas seu maior obstáculo é ele mesmo, por talvez subestimar a sua própria importância, ou também a relevância de tudo o que o cerca, já que o excesso de estímulos acaba por anestesiar suas percepções.

Pois o fazer Arte tem sua essência não só no encontro das “grandes belezas”, mas como elas nos afetam e nos tocam, e como podemos expor esses sentimentos a outros seres humanos, buscando um amparo para o nosso profundo desamparo. E assim, ver uma garotinha sendo usada como produto por seus pais, que a obrigam a pintar um quadro na frente de estranhos, se torna não só uma crítica (os pais usando Arte apenas pelo dinheiro) mas também algo belíssimo quando percebemos que a pintura dela está se transformando num reflexo de si, da fúria que sente frente à falta de respeito de seus pais, e quando a raiva passa e ela começa a organizar as caóticas cores que jogou na tela, o que vemos é uma artista usando sua angústia para organizar seus anseios e confusões, criando uma obra belíssima e profundamente íntima. Aliás, não seria Arte o que a freira de 104 anos aqui faz, quando sobe uma Escada Santa? Não é isso para ela uma realização que contém níveis pessoais profundos e significativos? Nesse sentido, a insistência da mulher de 42 anos em ser stripper também não é Arte?

Com sua belíssima trilha sonora e planos elaborados, por vezes insanos e muitas vezes contemplativos, Paolo Sorrentino cria em A Grande Beleza um filme que tem a Arte como tema, contemplando sua destruição atual frente a uma sociedade que, em seus excessos, perde a sutileza que essa tão bela ferramenta proporciona. Afinal, quando o objetivo passa a ser apenas financeiro (“Qual a sua profissão?”, “Ser rica”) e para conseguir “status”, é como se escarracem em todo o sofrimento esculpido na escrita, na música, na tela, ou onde quer que seja. E por isso vivemos num mundo em decadência, onde “as grandes belezas” parecem sempre invisíveis. Afinal, como poderiam ser vistas se a maior parte da população está cega?


Nenhum comentário:

Postar um comentário