sexta-feira, 29 de novembro de 2013



Contato (1997): uma nota pessoal

por Lucas Wagner

“Vocês formam uma espécie tão interessante. Uma mistura tão interessante. Vocês são capazes de sonhos tão lindos, e pesadelos tão horríveis. Vocês se sentem tão perdidos, tão desligados, tão sozinhos, mas vocês não estão. Veja, em toda a sua busca, a única coisa que encontraram que faz esse vazio suportável, é um ao outro”

 É sempre perigoso/assustador revisitar esses filmes que tiveram tanta importância em nosso crescimento emocional ou intelectual. Ainda mais quando determinado filme exerceu uma influência enorme não somente em um, mas nesses dois aspectos, como esse Contato teve comigo.

 Desde que assisti o longa pela última vez (há alguns anos), percebi-me tornando uma pessoa mais cética, cínica, pessimista e até mesmo mais agressiva. Assim, re-assistir esse filme era algo que vinha adiando, talvez por puro e irracional medo do que viria a encarar sobre o tanto que eu mudei. O medo vinha de talvez não conseguir acessar a pureza com que antes captava a mensagem que o astrofísico Carl Sagan (escritor do livro que deu origem ao filme, e uma das pessoas que mais admiro, mesmo não tendo acompanhado-o em vida) buscava passar.

  Medo que, felizmente, revelou-se alarme falso. O caso é que, nas duas horas e meia que resolvi me dedica novamente à essa odisseia, pude não apenas admirar com maior maturidade o longa em seus aspectos puramente cinematográficos e político-psico-sóciológicos, como pude explorar a mim mesmo, numa viagem intimista na qual pude, com enorme surpresa e alegria, encontrar certa pureza e inocência escondidas sob uma camada de dureza e racionalidade que ergui.

 Logo na abertura da obra, o diretor Robert Zemeckis investe num dos melhores plano-sequências da história do Cinema, afastando a câmera do planeta Terra para revelar um Universo infinito, silencioso, belo e assustador, terminando essa jornada com a câmera saindo do olho da protagonista Ellie Arroway ainda criança. O fascinante é que essa aberture resume a obra com perfeição, como que começando um artigo no qual seus realizadores vão discorrer sobre uma tese: a da pequenez absoluta do Homem no Universo, ao mesmo tempo em que ele é, em si mesmo, um Universo particular.

 Sabe...todos nós buscamos respostas. A verdade doída de que um dia vamos morrer é difícil de aceitar. Como assim tudo isso que eu vivo, que eu vejo, que eu sinto, vai ser eventualmente esquecido? Como é possível que as pessoas, ou melhor, que o mundo continue a existir depois que eu perdi um grande amor, ou que eu vi um amigo indo embora, ou tenha me encantado com o reconhecimento depois de tanto esforço? Como é possível que isso tudo não significa absolutamente nada no grande esquema das coisas?

  Por isso que buscamos desesperadamente uma espécie de verdade que possa, mesmo por um momento e de forma insatisfatória, nos consolar. Algumas pessoas buscam isso na Religião, e outras na Ciência. Mas será que alguma está, no fundo, certa? Pessoalmente, coloco minhas apostas todas na Ciência, mas os religiosos, no fim das contas, buscam a mesma coisas que os cientistas: as respostas para as grandes questões da vida, como “Por quê estamos aqui?”, “Para onde vamos?”, “Estamos sozinhos na imensidão do Universo?”, “Existe vida após a morte?”...

 E o que podemos fazer enquanto não encontramos essas respostas? Brigar, xingar, criar guerras e desconforto para o lado oposto? Por quê não fazemos dessa busca algo agradável? Nós temos algo maravilhoso: o contato com o outro. E esse outro vai nos destruir, vai nos fazer querer morrer, e eventualmente, vai embora como poeira ao vento. Mas esse outro também vai nos proporcionar a força necessária para conseguir enxergar esse “piscar de olhos de 80 anos ou menos” como algo especial e significativo.

 Somos todos pequenas crianças brincando de viver nesse pálido ponto azul chamado Terra, e todos perdidos na compreensão do plano maior, e só temos o companheirismo, a amizade, o amor e as nossas próprias emoções para poder saber viver.

 Assim, por ter me proporcionado novamente essa viagem dentre da beleza dos delicados sentimentos humanos, me fazendo refletir sobre sua grandiosidade e fragilidade, que mais uma vez não hesito em colocar Contato como uma das obras mais importantes para a minha inacabável formação emocional, intelectual e, é claro, cinefílica.

 Não me propus a escrever uma crítica cinematográfica sobre o filme, até porque deveria então abordar as infinitas camadas psicológicas, sociais, científicas e cinematográficas que a obra propõe. Quis apenas escrever uma nota pessoal sobre a importância desse longa para mim.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013



Análise Sobrenatural: Capítulo 2 (Insidious: Chapter 2 / 2013 / EUA) dir. James Wan

por Lucas Wagner

  Desde que se estabeleceu como um dos melhores nomes do Cinema de terror atual, o cineasta James Wan se consolidou no ramo de produção de longas que não apenas funcionavam como excelentes suspenses, mas também como homenagens cinefílicas que deliram os amantes da sétima arte. Assim, seu recente (e excelente) Invocação do Mal era uma mistura de diversas tendências e gêneros do horror, ao passo que Sobrenatural era um filme de terror dos anos 80 só que filmado em 2010. Em Sobrenatural: Capítulo 2 o maior acerto do diretor é não apenas criar uma excelente continuação, como ainda homenagear clássicos de forma orgânica e inteligente.

  Continuando a história do ponto em que filme original acabou (não escreverei sinopse por perigo de spoilers para quem não viu o anterior), Sobrenatural: Capítulo 2 tem sua força na construção da trama. De fato, percebe-se que os realizadores construíram uma mitologia complexa que, começando no primeiro longa, se completa apenas aqui, num enredo inteligente e que ainda instiga o espectador a indagar mais sobre aquele universo, especialmente por ir apresentando várias informações aparentemente desconexas ao longo da projeção, mas que vão se juntando numa significação intrincada e inventiva no todo da obra. Melhor ainda é a audácia de Wan e Leigh Whannell (o roteirista) de ousarem explorar possibilidades diversas que não são só interessantes, como também deixam o longa mais complexo na maior fluidez e dinamicidade do universo aqui ampliado, como nos jogos que fazem com o tempo ou com múltiplas dimensões. Sem contar que é admirável que os realizadores não abusem (embora usem) de flashbacks para explicar informações importantes do original, preferindo confiar mais na boa vontade do espectador de ter reassistido o longa anterior.

  Mais importante ainda é que essa trama permite perfeitamente que o filme se transforme em uma homenagem bem feita e orgânica (natural) à clássicos como O Iluminado, Psicose (“Mother”) e Vestida Para Matar (e ainda poderia ter sido de A Mosca, mas acho que os realizadores não prestaram muita atenção), revelando assim mais um acerto de Wan: ao mesmo tempo em que manteve a estética oitentista do primeiro, muda o estilo e a temática para que possa servir ao propósito de outro tipo de diversão cinefílica, uma homenagem à outras peças importantes da sétima arte, desta vez reverenciando longas específicos e não apenas tendências e períodos.

  No contexto de direção, James Wan continua crescendo, reforçando uma habilidade impressionante na construção de sequências de terror. Basta lembrar que o diretor inicia aquela que é uma das mais assustadoras cenas de filme de uma maneira sutil, mas já preparando o espectador para o que vem a seguir: quando, em um plano sequência, posiciona o corpo de uma fantasma (que logo desaparece) no fundo do campo e no ponto de fuga direito do quadro (o lado direito da tela e que chama mais atenção de quem assiste), o que nos alerta para o provável perigo sem, no entanto, nos esfregar isso na cara. Vale ressaltar, no entanto, que Sobrenatural: Capítulo 2 não apresenta o mesmo cuidado minucioso de Sobrenatural ou Invocação do Mal na construção do suspense, mas isso acaba sendo justificado pelo fato de estarmos, na verdade, continuando a ver um filme que começou no original.

  Assim, Wan adota mais uma vez o estilo de “trem-fantasma” (que comentei em meu texto sobre Invocação do Mal), investindo num suspense intenso e em um exagero e violência notáveis nas situações, onde perigos brotam de todos os lados, e são mais intensos ainda por serem baseados não apenas em efeitos especiais, mas em figuras com uma maquiagem assustadora que lembra fotografias antigas e desgastadas. E, é claro, a maravilhosa trilha sonora de Joseph Bishara que continua a encantar com o uso do órgão e de uma trilha de cordas para aumentar a tensão, ao mesmo tempo em que remete à clássicos de terror pelos tons assonantes e estridentes, além de arroubos sonoros.

  Já no desenvolvimento dos personagens, o roteiro de Whannell busca aproveitar o ótimo trabalho já feito no original, e aqui aposta no conhecimento e afeto que já desenvolvemos com aquelas figuras, o que faz com que o elenco mantenha o mesmo nível de qualidade do anterior. Quem ganha destaque mesmo é o competente Patrick Wilson, que aqui foge do tipo simpático que sempre cria, para poder compor Scott no lado “assassino endemoniado” que surge, representando bem o tumulto interno de um personagem que possui diversas camadas, sendo que a maior habilidade do ator é conseguir representar todas essas camadas com uma diferenciação e entrega ideias, num trabalho que adequadamente remete à performance de Jack Nicholson em O Iluminado. Já Rose Byrne acerta ao continuar trabalhando Renai como uma mãe dedicada e sofredora em seu amor pela família tão turbulenta. Quem consegue se sair mal é apenas a dupla de “profissionais paranormais” (na falta de um termo melhor), que aqui, como em outros filmes de Wan, surgem apenas como alívios cômicos, em piadas forçadas e desagradáveis.

  Errando feio apenas ao não resistir à tentação de criar uma ponte para uma possível continuação, Sobrenatural: Capitulo 2 é uma obra admirável em diversos âmbitos: é um terror assustador, uma homenagem bem feita e é o desenvolvimento de uma mitologia fascinante. Um excelente filme.

--Análises minhas de outros filmes dirigidos por James Wan:
·         Invocação do Mal


sexta-feira, 15 de novembro de 2013



Crítica Blue Jasmine (Blue Jasmine / 2013 / EUA) dir. Woody Allen

por Lucas Wagner

  Em toda a sua longa carreira, o cineasta Woody Allen pareceu particularmente interessado em investigar o caos que compõe os sentimentos e relacionamentos humanos, muitas vezes utilizando-se de um viés cômico, e outras um mais melancólico. Assim, Blue Jasmine revela-se uma exploração tragicômica de diversas figuras sentimentalmente ambíguas, mas é principalmente um angustiante estudo de uma personagem destruída.

  Com roteiro do próprio Allen (como sempre), o longa tem como protagonista Jannette, que trocou seu nome por um mais chique: Jasmine (Cate Blanchett). De rica e poderosa, frequentadora de uma sociedade de classe alta, Jasmine passa a mulher pobre e psicologicamente debilitada, que é obrigada a morar com a irmã bem mais humilde, Ginger (Sally Hawkins).

  Jasmine seria um caso clínico interessantíssimo para estudar em Psicologia. Mulher completamente desadaptada, Jasmine prefere viver em seu próprio mundinho, sempre virando a cara para o que possa se revelar aversivo, o que nem sempre é algo feito conscientemente pela personagem. Mentindo até a alma para garantir sua imagem, Jasmine parece correr sempre de uma auto-análise, e é essa completa desestrutura que ela tem para se enxergar e se comportar de forma adequada ao ambiente que serve como elemento definitivo para que ela sucumba à um colapso nervoso quando fica impossível virar a cara para a realidade.

  Diante disso, é até irônico que ela ambicione (pelo menos é o que ela diz) se tornar designer de interiores, o que é curioso se lembrarmos que outra das mais problemáticas personagens de Allen tinha essa mesma profissão, a Eve do trágico Interiores, de 1978. É irônico porque, como essa outra personagem, Jasmine não tem qualquer capacidade de enxergar seu próprio interior, e parece procurar na decoração de um ambiente externo a falta de estrutura de seu ambiente interno. Com seu colapso nervoso, Jasmine se fecha de maneira mais preocupante ainda, e começa a estabelecer não diálogos com interlocutores, mas sim monólogos delirantes sobre sua finada vida como rica. Mais sintomático ainda é quando ela literalmente começa a falar sozinha, olhando pro espaço vazio à sua frente e repetindo diálogos que aconteceram no passado, como mecanismo de defesa contra um presente aversivo. Assim, é perdoável que Allen tenha optado por uma estrutura toda em flashbacks, já que isso encontra sentido narrativo de forma orgânica nos delírios de volta ao passado da protagonista, além de ser uma estrutura que serve para resguardar uma importante revelação no terceiro ato.

  E é Cate Blanchett a grande rainha do filme. Dona de uma carreira repleta de performances memoráveis (O Aviador, Não Estou Lá, Notas Sobre Um Escândalo, etc), Blanchett consegue um de seus melhores trabalhos (senão o melhor). Abraçando com vontade a antipatia dessa personagem, a atriz em nenhum momento aposta numa atuação mais doce ou que tente redimir Jasmine de alguma maneira. Realmente, é uma pessoa detestável e com quem ninguém suportaria conviver na vida real. Ainda assim, é surpreendente que Blanchett consiga permitir que nós nos compadeçamos dela, e isso principalmente pelo fato de a atriz investir em sutilezas que denunciam todo o dano interno da protagonista, como na tremedeira involuntária que passa a ser quase constante a partir da metade da projeção, ou ainda através do estado quase catatônico que assume quando paralisa seu olhar num ponto fixo no horizonte ou quando começa a repetir seus diálogos do passado. E é divertido ainda que a atriz sempre mantenha a cabeça erguida, representando a tentativa de Jasmine de “manter a classe” mesmo quando no fundo do poço.

  E Allen também merece elogios no tratamento da personagem. Sem buscar suavizá-la, o direotr/roteirista acerta ao criar momentos intimistas que permitem que o espectador se aproxime da protagonista, como quando ela chora um choro doído porém aliviado depois de receber o telefonema de um possível namorado. Ainda, o diretor é hábil ao conseguir fazer com que o espectador perceba a clara distância das duas vidas de Jasmine através da fotografia de Javier Aguirresarobe, ou da direção de arte (a casa da irmã e sua antiga mansão) e a escolha de localizações, que antes eram ambientes luxuosos e limpos e depois passam a ruas sujas e movimentadas. O uso da trilha sonora também é altamente eficaz. Abusando do jazz (como de hábito), Allen evita o silêncio angustiante de outros dramas seus (Interiores, Setembro, A Outra, etc) e usa os sons de saxofones e baterias tanto em momentos mais cômicos como nos mais dramáticos/pesados, como se ressaltando o caos de tudo que estamos vendo. No geral, o diretor mantém seu estilo de sempre, com diversos planos sequências discretos, além de closes e primeiros planos reveladores.

  Mas como disse no primeiro parágrafo, Woody Allen volta a explorar o caos dos relacionamentos humanos através de uma coleção de personagens extremamente ambíguos que se comportam de forma aparentemente desordenada, mas que na verdade só estão agindo de acordo com os sentimentos. Assim, Ginger é uma figura fascinante ao demonstrar diversas facetas na sua relação com Al (Louis C.K.) e Chili (Bobby Cannavale): ela viaja desde a excitação sexual pelo segundo (musculoso) até o interesse pela estabilidade prometida pelo primeiro (gordo e feio), e faz isso de forma natural (ponto para a atuação de Sally Hawkins), realmente sentindo diversas e complexas emoções. Já Chili é um personagem extremamente complexo no seu comportamento contrastante, violento e apaixonado, numa atuação impecável de Bobby Cannavale. Enquanto isso, Louis C.K. (comediante genial cujo seriado, Louie, tem grande inspiração nos filmes de Woody Allen) consegue interpretar muito bem um sujeito com auto-estima alta (diferente da auto-crítica que constantemente faz em seus stand-ups), e Alec Baldwin acerta na frieza da performance do ex-marido de Jasmine, ao passo que Peter Sarsgaard acerta ao transformar Dwight num sujeito melancólico na falta que ainda parece sentir da finada esposa. Todos esses personagens ressaltam, à sua própria maneira, o universo caótico dos sentimentos humanos, em subtramas lindamente escritas por Allen.

  Com um senso de humor adequadamente sutil (a velhinha falando sobre como são especiais os dias em que faz colonoscopia é um perfeito exemplo), Blue Jasmine é no geral uma obra profundamente dolorosa, que teria sido ainda melhor se tivesse acabado uma cena antes do que acabou, já que reforçaria ainda mais o caos imprevisível dos sentimentos. Ainda assim, o plano final é perfeito pela melancolia massacrante com que lança o espectador para fora do cinema, permitindo que a tragédia da história de Jasmine continue ressoando em nossas cabeças durante um bom tempo.

-Críticas minhas de outros filmes dirigidos por Woody Allen: -Para Roma, Com Amor

sábado, 9 de novembro de 2013


Crítica The World’s End (The World’s End / 2013 / Reino Unido) dir. Edgar Wright

por Lucas Wagner

  A chamada Trilogia “Sangue e Sorvete” (ou Trilogia Cornetto) lançou o que hoje é um dos mais interessantes cineastas da atualidade, o britânico Edgar Wright, além de apresentar a excelente dupla de comediantes Simon Pegg e Nick Frost. Assim, é natural que esse último capítulo, The World’s End, tenha gerado tanta expectativa entre cinéfilos do mundo todo (inclusive este que vos fala). E posso dizer, muito feliz, que o filme cumpre perfeitamente essas expectativas, sendo tão inteligente, divertido e empolgante como os dois capítulos predecessores, Chumbo Grosso e a obra-prima Todo Mundo Quase Morto.

  Novamente escrito por Wright e Simon Pegg (que interpreta o protagonista dos três filmes), o longa trata do reencontro de cinco amigos de infância, arduamente reunidos por Gary King (Pegg), para tentar realizar o desafio de, em uma noite, beber em todos os pubs de sua pequena cidade natal até chegar no último, o The World’s End, empreitada que tentaram uma vez, quando jovens, e falharam. Porém, esse desafio pode ser maior ainda, agora que a cidade parece tomada por alienígenas.

  Os filmes da Trilogia “Sangue e Sorvete”/”Cornetto” são, em sua base, homenagens/paródias de gêneros consagrados. Em Todo Mundo Quase Morto, eram os filmes de zumbis de George Romero (diretor do clássico Noite dos Mortos-Vivos), ao passo que em Chumbo Grosso o alvo eram os longas policiais da década de 90. Aqui, obviamente, são os filmes de invasão alienígena, mas mais particularmente o clássico Vampiros de Almas, além de diversos trabalhos do diretor John Carpenter. Mais interessante é notar a inteligência de Pegg e Wright ao aprofundarem mais no significado desta homenagem. Assim como em Todo Mundo Quase Morto eles criaram uma metáfora social através dos zumbis (como Romero fazia em seus filmes), em The World’s End compreendem que Vampiros de Almas trazia uma crítica à sua época (o Macartismo).Assim, Pegg e Wright criam uma trama repleta de camadas críticas e sociais que enriquecem enormemente o trabalho.

  A verdadeira genialidade de The World’s End esta em justamente saber adequar o contexto crítico advindo da homenagem cinematográfica à questões em que Wright já demonstrou preocupação e interesse, particularmente em Todo Mundo Quase Morto e Scott Pilgrim – Contra o Mundo. Wright parece se interessar pela temática do jovem-adulto (ou adulto) tentando se adaptar à uma sociedade pré-estabelecida, sendo obrigado a assumir responsabilidades e abrir mão de prazeres antes tão queridos em sua imaturidade. Se em Scott Pilgrim tal adaptação era vista com bons olhos, Todo Mundo Quase Morto trazia uma complexidade maior na ambiguidade da questão dos benefícios dessa adaptação. Ambiguidade essa que retorna em The World’s End, que acerta ao não assumir um lado. Afinal, a vida dos amigos “maduros” de Gary não é tão grande coisa assim, mas parece sem cor, segura e certinha demais, ao passo que a animação e loucura de Gary não é lá muito saudável, já que a realidade é dura com aqueles que se prendem ao passado. Mas onde é que está o erro então? Como devemos conduzir nossa vida? E é aqui que o longa busca uma complexidade ainda maior do que nos outros trabalhos de Wright.

  O que enfrentamos é na verdade uma sociedade doente. Por que será que o considerado correto é se adaptar à normas e regras do que é “certo”? Até onde fazer o “certo” é o mais saudável? Afinal, não é a toa que crises existenciais sejam algo tão frequente naqueles que chegam na média dos 40 anos. A sensação de que a vida deveria ser algo a mais, de que nos foi feita uma promessa quando éramos jovens, e que essa promessa se revelou uma mentira (algo que é dito quase literalmente em um dos melhores diálogos do filme). Em nome do progresso, nos rebaixamos à uma existência monótona que joga fora todo o amor, o desejo e a paixão (outro diálogo literal). Assim, os alienígenas do filme são uma clara metáfora para a sociedade adulta (não é a toa que em certo momento eles são comparados à professores), que na tentativa de “educar” (ou adaptar) acabam é extirpando a humanidade que nos era cara, nos condenando à uma vida repleta de arrependimentos e ligada no passado.

  Como se não bastasse, a complexidade temática dessa comédia apocalíptica alcança ainda maior abrangência ao abrir caminho para diversas discussões que, no entanto, exigem maior número de visitas ao longa. É interessante que seja na cidade onde cresceram que esse grupo de amigos agora esteja enfrentando tamanho risco de vida, como se metaforicamente enfrentassem o desconhecido de uma cidade que mudou com o envelhecimento. Também, a caminhada deles pela cidade, quando voltam adultos, revela diversos cidadãos envelhecidos (indo contra a lembrança jovial que eles tem de lá) e alguns jovens bem diferentes do que eles foram (e assim, a tomada que mostra os amigos descendo uma rampa no caminho contrário de alguns adolescentes é particularmente interessante). Wright e Pegg também acertam ao lembrar de alguns tristes efeitos da globalização, como no fato de os pubs, tão singulares e charmosos antigamente, agora estarem se "starbuckzando", se padronizando. Os efeitos da alta tecnologia também não são esquecidos, e todas essas questões são perfeitamente incluídas na metáfora geral dos alienígenas.

  Mas The World’s End, mesmo tratando de questões sérias, não deixa de ser um filme de comédia e ação extremamente eficaz. Edgar Wright possui um estilo inconfundível e insano, com cortes rápidos, chicotes (movimento rápido da câmera de um lado para outro) e movimentos malucos com a câmera, sob um som que traduz essa velocidade, além de uma inventividade técnica sublime. Durante a metade inicial da obra, Wright se mostra até mais tímido do que o habitual, mas isso é narrativamente adequado, e é alterado quanto mais a trama ganha velocidade, e o diretor nos delicia com sequências de luta espetaculares e estupidamente bem coreografadas e engraçadas (Gary tentando beber sua cerveja enquanto luta é genial!), além de brilhantemente filmadas, em planos longos que conferem um tom de continuidade ideal, além de uma leve aceleração das imagens, dando um toque ainda mais louco e divertido. Em questão de humor (físico e verbal), The World’s End pode não ser tão hilário como os filmes anteriores do diretor, mas com certeza garante muitas risadas. Para completar, a trilha sonora de Steven Price (o mesmo de Gravidade) está fantástica, inventiva e frenética como deveria ser, ao passo em que Wright demonstra o mesmo bom gosto na seleção de músicas já existentes, como no toque de gênio ao incluir um momento ao som de Alabama Song, de The Doors.

  À tudo isso se adiciona um elenco impecável. Eddie Marshal, Paddy Considine e Martin Freeman (o Bilbo de O Hobbit, e Watson do seriado Sherlock) estão perfeitamente adequados como, respectivamente, Steven, Peter e Oliver, mostrando a gradual insanidade e leveza que eles vão adquirindo ao longo da projeção, enquanto Rosamund Pike representa muito bem o papel feminino do longa, Sam, e que mais uma vez (como em todos trabalhos do diretor) representa a voz da razão entre um grupo de machos claramente confusos. Pierce Brosnan empresta um enorme charme numa composição ideal como o ex-diretor da escola, principalmente no trabalho de voz, que transmite zombaria e pomposidade; falando em trabalho de voz, Bill Nighy (um dos colaboradores habituais do diretor) surpreende em um diálogo interessante. Já Simon Pegg está ótimo como sempre, compondo Gary King como um sujeito ao mesmo tempo cômico e comovente em seu apego ao passado, mas é Nick Frost quem dessa vez rouba a cena numa performance mais complexa do que o habitual, criando um Andrew ambíguo e tridimensional em sua seriedade e na transformação que vai sofrendo ao longo do filme.

  Exemplo raro de longa de ação/comédia preocupado não apenas em divertir mas também em fazer pensar, The World’s End é mais um acerto no currículo até agora impecável de Edgar Wright, como eu já disse, um dos cineastas mais interessantes da atualidade. Mas bem que eu queria mais filmes “Sangue e Sorvete”...
  

sexta-feira, 8 de novembro de 2013


Crítica Capitão Phillips (Captain Phillips / 2013 / EUA) dir. Paul Greengrass

por Lucas Wagner

  Capitão Phillips se insere bem na filmografia do cineasta Paul Greengrass, cujos melhores trabalhos (Voo United 93 e Domingo Sangrento) buscam retratar eventos reais e aterradores numa perspectiva realista e visceral. Assim, esse seu novo filme representa uma experiência intensa ao narrar a captura e cativeiro do comandante de navio mercante, Richard Phillips, por piratas nos mares da Somália, em 2009.

  Indubitavelmente um dos maiores nomes do Cinema de ação atual, Paul Greengrass emprega aqui a mesma brutalidade visceral que já acostumamos a ver em seus trabalhos (para quem não sabe, são dele Supremacia Bourne e O Ultimato Bourne). A câmera nervosa, com diversos closes e rack focus (mudar o foco das lentes durante uma tomada), e planos inclinados, permitem um clima de tensão extremamente eficaz, conferindo adrenalina constante à obra, ainda mais pela montagem frenética (porém compreensível) que investe em cortes rápidos e bruscos, agregando certa crueza/rudeza à obra que combina com a violência vista aqui. Nessa perspectiva, a excelente trilha sonora de Henry Jackman acerta em tons intensos e brutos, investindo muito em sons que lembram tambores e certos toques de guitarra elétrica, além de tons eletrônicos; mais importante é a inteligência com que Greengrass usa o material composto por Jackman: o diretor usa os trechos da trilha em momentos específicos e ideais para a construção do tom perfeito de cada cena, como por exemplo, quando os piratas começam a subir no navio pela escada lateral, e Greengrass corta a música que estávamos ouvindo, e investe numa que é apenas silêncio quebrado por sons de batidas ritmadas isoladas.

  O talento do cineasta para a construção do suspense também fica em constante evidência na obra, em diversas sequências intensas como aquelas que precedem o embarque dos piratas, ou ainda toda a “negociação” no terceiro ato. Ainda, uma das maiores virtudes do roteiro de Billy Ray reside na confiança que apresenta na inteligência do espectador, já que não busca martelar explicações sobre as estratégias de seus personagens ou linhas de ação. Estratégias essas que se revelam extremamente inteligentes e enriquecem o enormemente a obra (a sequência do "tour" pelo navio com os piratas é de tirar o fôlego). Além disso, os piratas são uma ameaça palpável e assustadora, e nunca duvidamos de que são capazes de usar violências para atingir seus fins.

  Falando nos piratas, o tratamento que Greengrass e Ray dão à eles é adequado. Apesar de não serem tão humanos, frágeis e comoventes como os terroristas de Voo United 93 (e que nunca deixavam de ser ameaçadores também), os piratas aqui vistos transmitem toda a violência necessária, mas com o decorrer do projeto, vão revelando toda a insegurança e fragilidade deles mesmos, se transformando não tanto em vilões, mas em mais vítimas da situação que eles mesmos criaram. Para isso, o ator Barkhab Abdi tem uma atuação exemplar como Muse, revelando camadas de líder imponente, infantilidade e insegurança que são palpáveis para o espectador. Na verdade, dentre os piratas, o único erro reside na pavorosa atuação de Faysal Ahmed como Najee, que, estupidamente caricata, se baseia numa gritaria constante e num arregalamento extremo dos olhos para criar um tom de ameaça.

  Mas muitos dos acertos de Capitão Phillips estão mesmo em seu protagonista. Encarando um afastamento gradual em relação à família devido à linha de trabalho que escolheu, Phillips é um homem sério, rígido e inegavelmente frio. Não procura enturmar mais com os marinheiros do que somente com um educado “bom dia”, e não hesita em interromper um momento de lazer deles de maneira brusca sugerindo que deveriam terminar logo suas refeições. O que é compreensível, em vista da carga de estresse que vem enfrentando em casa. Aliás, a sequência inicial do longa é impecável por Greengrass e Ray conseguirem evidenciar tão bem a dificuldade do casamento de Phillips e sua mulher, principalmente pela sutileza de mostrá-la chegando de última hora no carro para ir com o marido até o aeroporto, dizendo um resignado “ok”, como se estivesse fazendo um esforço para realizar uma tarefa que antes podia ser natural. Também é um ótimo toque da direção de arte enfeitar a cabine de Phillips com fotos da família, além de fazê-lo beber de uma caneca com foto de sua mulher e filhos, ilustrando a importância que eles tem para o capitão, o que deixa seu afastamento ainda mais melancólico e trágico. Mas se esses elementos são interessantes no desenvolvimento do personagem, infelizmente acabam servindo mais como uma curiosidade à parte na sua composição, já que à trama referente aos piratas pouco importa essa parte familiar, mas sim outras característica do protagonista, como a sua frieza, inteligência estratégica e resiliência.

  E é com esse material que Tom Hanks entrega uma das melhores e mais poderosas performances do ano. Abraçando a frieza e rigidez do capitão (características raras dentre os personagens habituais do ator), Hanks assume uma disciplina absoluta que é evidenciada em detalhes sutis, como na mania de arrumar os óculos, que vai se tornando quase que um tique nervoso ao longo da projeção. O ator evita grandes arrombos emocionais durante a maior parte do tempo, e prefere trabalhar no controle que Phillips busca manter, para poder comandar e controlar a situação desesperadora em que se encontra. O autocontrole do capitão também às vezes tropeça, algo que Hanks ilustra perfeitamente numa entonação de voz diferenciada ou através de uma rigidez muscular mais evidente e óbvia (denunciando seu nervosisimo). Mas a grande perfeição da atuação de Hanks está mesmo é no terceiro ato, no processo de desestruturação psíquica devido à própria fadiga psicológica pela qual o personagem passa, obrigando-o a agir de forma dissonante de como vinha agindo até então. Tal processo se completa na sua última cena, que é não só um dos maiores momentos da carreira de Hanks, como também o maior motivo do ator merecer ser entupido de prêmios até a alma: o choque dele, a sensibilidade e o desespero tão demasiadamente humanos em sua fragilidade e comoção, fez com que uma lágrima me escorresse de um dos olhos, numa reação sincera da minha emoção diante de tão perfeito talento.

  Assustador, empolgante, impactante e extremamente intenso, Capitão Phillips preenche os critérios para ser mais uma obra de valor dentro de uma carreira admirável como a de Paul Greengrass, mesmo não sendo o seu melhor trabalho. E a última cena do capitão vale tudo e um pouco mais. Tom Hanks é um gênio.