sábado, 15 de março de 2014


Análise:

Ninfomaníaca – Volume 2 (Nymphomaniac: Volume II / 2014 / Dinamarca, Alemanha, França, Bélgica, Reino Unido) dir. Lars Von Trier

por Lucas Wagner

Naquele que é o melhor e mais definidor momento de Ninfomaníaca– Parte 1, a protagonista Joe, frente a um triste e angustiante evento, não demonstra as respostas esperadas, como choro e pesar. Ao invés disso, ela fica sexualmente excitada, sua vagina ficando molhada enquanto seu rosto continuava impassível e seco.Joe se condicionou tanto a usar o sexo como forma de contato com o mundo exterior, que também é só a partir de orgasmos que ela consegue expressar alguma coisa, ou mesmo sentir, o que, infelizmente, é insatisfatório por si só, e leva a protagonista a buscar alguma forma de sentir que a torne mais plena, ao mesmo tempo em busca afirmar-se como pessoa.

Logo, por mais mal aproveitada que tenha sido como personagem, Joe é uma figura complexa e interessante, e se na primeira parte dessa sua “odisseia sexual”, o diretor e roteirista Lars von Trier tinha falhado quase totalmente na tentativa de explorar a sua psicologia, ele faz um trabalho bastante superior nesse Volume 2, não só no desenvolvimento da protagonista, que inclusive sofre notáveis modificações frente ao visto anteriormente, mas também numa direção mais sutil e inteligente, conseguindo extrair reflexões não só interessantes como também importantes.

Ainda assim, seu filme está à milhas de distância da perfeição, já que o cineasta continua cometendo muitos erros semelhantes aos de Volume 1, só que numa menor intensidade. Se lá o que tanto irritava era o tom didático da narrativa, destruindo basicamente qualquer beleza que os simbolismos traziam justamente por martelar seus significados através dos diálogos, aqui é basicamente a mesma coisa, além do fato de von Trier insistir, principalmente através do personagem Seligman (Stellan Skarsgard), em devaneios intelectuais fora de hora cujo único objetivo aparente é mostrar os conhecimentos culturais do diretor. Felizmente, em Volume 2 os devaneios não se afastam tanto da narrativa a ponto de sugerir uma ligação do sexo com a sequência de Fibonacci, e surgem até mesmo com sentido, principalmente quando encontram coerência com a narrativa como um todo e aparecem em momentos adequados, como é a discussão sobre pedofilia, que, além de bem pensada, é eficiente por ligar-se com a própria tese do filme. Em outros momentos, mesmo com coerência narrativa, von Trier peca em discussões pedantes como aquela em que Seligman explica, didaticamente, a história da Igreja Ocidental e Oriental, e suas diferenças, com um objetivo de ligar, porcamente, a jornada de Joe à uma comparação religiosa (e não é só aqui que o filme tenta isso).

É curioso, no entanto, como von Trier parece ter consciência do caráter didático da obra, e das críticas que lhe foram feitas nesse sentido no Volume 1, e aqui chega a brincar com essa característica do filme, como quando Seligman avisa o tanto que sua história vai parecer uma aula, ou ainda quando, num momento fenomenal, Joe termina de ouvir um devaneio particularmente besta de Seligman (como os piores do primeiro filme) e diz: “Essa foi, com certeza, a sua digressão mais fraca”. Claramente estamos vendo um pedido de desculpas do diretor pelo seu próprio pedantismo, e eu não me surpreenderia se cenas e diálogos como esses que descrevi tenham sido gravados depois do lançamento de Volume 1.E se isso não redime totalmente o cineasta, é porque ele continua errando, mesmo cônscio e mesmo brincando com o fato de estar errando; às vezes ele erra até nas desculpas, como ao tentar justificar a chatice de Seligman pelo fato de este ser virgem; e não, não estou de zueira. Em outros momentos, von Trier não resiste e faz auto-homenagens, como ao colocar a música Lascia Ch’io Pianga em um momento praticamente idêntico ao prólogo de seu Anticristo, quando tocava a mesma música; mas até que isso não incomoda. Além disso, o inesperado bom humor do primeiro filme é mantido com qualidade, como na cena envolvendo as colheres ainda no início da projeção.

Como já dito, von Trier volta a mostrar maior sutileza na direção, e toma decisões evidentemente inteligentes. Isso fica claro, por exemplo, na bela (ahem) cena em que Joe leva uma surra sadomasoquista de K (interpretado de forma extremamente complexa por Jamie Bell, que inclusive merecia um texto a parte apenas para ser discutida a perfeição de seu trabalho), e consegue, enquanto apanha, mover sua pélvis de modo a estimular seu clitóris, sentindo então prazer e dor ao mesmo tempo, e von Trier acerta ao tirar o som diegético dos golpes e investe numa música sacra e doce, num ótimo exemplo de subjetividade “mental”. Outros momentos surgem com simbolismos sutis e intrigantes, como o brinco de P que lembra uma forca, criando uma rima com o momento em que Joe observa uma árvore torta (representação de sua personalidade?) e se posiciona de um modo que lembra o enforcamento; essa ligação de elementos encontra um sentido narrativo que é revelado com o decorrer da projeção e ganha múltiplas interpretações.

O design de produção também tem seus momentos de destaque, como no estabelecimento de K, com suas cores frias (azul e cinza) evidenciando a impessoalidade do personagem. Enquanto isso a fotografia também tem momentos de brilhantismo, como na bela cena do nascer do sol, bem no fim do filme, quando um tom azulado de amanhecer vai iluminando os personagens e criando um eco com a metáfora poética do feixe de luz que, com dificuldade, consegue alcançar um pedacinho do muro em frente ao apartamento de Seligman.

Em relação à protagonista, sua jornada ganha contornos mais complexos e tridimensionais, e é interessantíssimo ver os percalços que Joe percorre para tentar se encontrar como pessoa, passando de sentimentos de culpa até aqueles de afirmação de seus desejos, numa coexistência ambígua de elementos desconexos. É interessante ainda o modo como von Trier troca as atrizes da Joe nova para a mais velha, num intervalo de apenas três anos na história: enquanto o personagem de Jerome continua interpretado pelo mesmo Shia Labeouf nesse espaço de tempo, Joe deixa de ser a bela e jovem Stacy Martin para ser a esquelética e frágil Charlotte Gainsbourg, numa representação dos sentimentos e estados psicológicos da personagem. O problema que impede que a protagonista cresça mais está na inexpressiva performance de Gainsbourg, uma atriz geralmente competente (vide seus trabalhos em Anticristo, Melancolia, O Jardim de Cimento, 21 Gramas, etc).

Mas Ninfomaníaca acerta principalmente na sua tese final, quando parece discursar sobre como a jornada de Joe é admirável por se tratar de uma mulher buscando afirmar seus prazeres e sua independência, numa época em que, surpreendentemente, personagens fracas e dependentes de machos como Bela Swann de Crepúsculo e Anastasia de Cinquenta Tons de Cinza ainda causam identificação por parte de várias mulheres/meninas. Como Joe diz em certo momento: “A sexualidade é a maior força no ser humano”. O modo como ela busca abraçar esses seus “instintos” e sua fome por prazer, indo contra dogmas sociais que insistem em dizer como ela está errada, é importante por ser uma mulher agindo não de maneira tradicional e machista, mas aceitando que sua sexualidade não é motivo de vergonha ou nojo, mas sim é algo perfeitamente natural e saudável. E se ela mesma às vezes tem dúvidas e culpa em relação a seus sentimentos, é porque ela também está inserida num contexto social tão machista que, mesmo em mulheres liberais, pode causar certo estrago. Pois se esse filme fosse protagonizado por um homem heterossexual certamente várias das cenas aqui consideradas obscenas e pesadas não teriam tanta repercussão.

Mesmo com esses elementos e reflexões admiráveis e tão importantes, Volume 2 cai quando, no terceiro ato, Seligman e Joe mastigam muitas dessas observações para o espectador, como se von Trier estivesse inseguro se seria ou não devidamente compreendido. Além disso, determinado triângulo amoroso quase no fim da obra é uma regressão absurda para um filme que tinha tomado contornos tão mais complexos, inserindo um elemento de sentimentalismo irritante, chegando ao ridículo quando Joe joga uma caneca na parede gritando “Ah! Esse sentimentalismo!!!”, parecendo uma dessas meninas que ficam chiando no Facebook por causa de seus sentimentos. Mas confesso que a rima visual com os números da sequência de Fibonacci do início do Volume 1 e que retornam quase no fim de Volume 2 é curiosa e inteligente, por estabelecer uma ligação entre duas personagem que evidencia um vislumbre no futuro de uma delas. Infelizmente, mesmo os efeitos anestésicos dessa rima caem por terra quando von Trier não resiste e abusa de seu trabalho forçando uma conclusão pessimista, algo feito pelo puro choque.

Aos trancos e barrancos, Ninfomaníaca é um esforço ambicioso e importante nessa época em que estamos vivendo. Pode ser um trabalho inferior na carreira de seu cineasta, mas tem elementos, principalmente nesse Volume 2, que fazem valer a pena o ingresso. Infelizmente, o Volume 1 tem que ser assistido antes da segunda parte. Não fosse por isso, eu até gostaria de revisitar o trabalho de Lars von Trier.

*Minha análise de Ninfomaníaca – Volume 1:

  

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