terça-feira, 16 de dezembro de 2014


Análise:

O Homem Mais Procurado (The Most Wanted Man / 2014 / Reino Unido, Alemanha, EUA) dir. Anton Corbijin

por Lucas Wagner

-No fim, todas essas vidas perdidas, todos os cômodos vazios... tem um propósito? Você já se fez essa pergunta?
-Já. Mas acabo chegando sempre na mesma resposta.
-E qual é?
-Fazer do mundo um lugar melhor.

O fato de tal resposta, parafraseada de um diálogo deste O Homem Mais Procurado, ser tão pouco convincente faz perfeito sentido dentro da carreira literária de John Le Carré, quem escreveu o romance de onde esse filme é adaptado. Com dezenas de livros em seu currículo, a grande preocupação do escritor sempre girou em torno de um minucioso estudo do que verdadeiramente constitui a vida de um espião, descartando o falso glamour da profissão e mostrando-a em cores menos charmosas, com indivíduos sufocados por uma existência marginal de si mesmos, obrigados a viver sob concessões e um constante estresse ligado ao perigo sempre iminente, a ambiguidade de suas relações e uma onipresente burocracia, característica de qualquer orgão governamental.  

O roteiro de Andrew Bovell, dirigido por Anton Corbijin, tem a trama embasada no aparecimento de Issa Karpov (Grigoriy Dobrygin) em Hamburgo, um imigrante ilegal de origem chechena e muçulmana, provindo da Rússia, que causa alvoroço nos escritórios da Inteligência alemã e norte-americana, em especial pelo fato dessa chegada, e sua ligação com uma misteriosa conta bancária, balançarem complexas redes de operações secretas já há muito montadas. Nesse contexto, o espião Gunther Bachman (Philip Seymour Hoffman) organiza seus contatos e informantes para manipular o jogo e conseqüências desencadeados por tal chegada, ao mesmo tempo em que sobrevive ao seu próprio meio.

Gunther que, aliás, é perfeito exemplo de um protagonista criado por Le Carré, já que divide características basais com figuras como Leamas ou George Smiley, apresentando uma competência ímpar no seu trabalho, alinhavada por um cinismo e certo senso de humor (no caso de Leamas, maldoso), além de gentileza, que mascaram o que na verdade é uma existência profundamente depressiva. Pessoalmente, ao ver o rosto de Hoffman ao longo do filme constantemente lembrei-me de uma passagem do romance Por Quem os Sinos Dobram, onde Hemingway descreve o rosto de um personagem como sendo “modelado com resto de material coletado sob as garras de um leão velho”. E não é para menos, pois toda a performance desse genial ator compreende em explorar um homem cuja superfície já apresenta fissuras de um terremoto interior que, se ainda não o impede de fazer seu trabalho, é suficiente para expressar-se em constantes cigarros e um óbvio alcoolismo, além de uma voz grossa e profundamente rouca, arrastada, como se falar já tivesse se tornado um ato que exige esforço, assim como qualquer relação sua travada com o mundo exterior.

É intrigante ainda que Hoffman insira diversos momentos de silêncio contemplativo entre as mais íntimas falas de seu personagem, deixando que a inarticulação de seus sentimentos digam muito mais sobre a dimensão de seu sofrimento do que as palavras poderiam fazê-lo. Um sofrimento que tem origem em diversas variáveis, desde um histórico de culpa, a solidão e embates constantes e estressantes com colegas de trabalho, a burocracia inerente à espionagem e ainda a própria confusão desorganizada de sua profissão (algo refletido pelo design de produção de seu escritório), mas, mais além disso, é um sofrimento próprio de um homem que talvez já conheça demais da vida que leva para se entregar a alguma espécie de otimismo ou ainda mesmo a certa ignorância que pode vir como benção para realizar seu trabalho, já que, justamente por ser um sujeito crítico e inteligente, Gunther é capaz de enxergar pontos de vista diversos e como eles se constituem em seus próprios sentidos (até mesmo quando se trata de terrorismo), o que o incapacita a uma aderência cega a seus objetivos e às ideologias de seu meio.

O que, se por um lado é uma cruz, por outro é um dos fatores que o levam a ser tão competente em sua área, já que o torna um homem mais capaz de assumir posturas diversas para convencer seus informantes a agirem de acordo com suas necessidades, mesmo que essa atitude já exija um esforço por parte do protagonista. E um dos grandes prazeres em assistir o filme consiste em enxergar esse jogo de manipulação, sendo intrigante o processo de despersonalização pelo qual passam figuras fortes e imponentes como Annabel Richter e Tommy Brue (respectivamente, Rachel McAdams e Willem Dafoe, ambos excelentes) sob a pressão de suas obrigações enquanto informantes envolvidos em um jogo de informações.

Mas O Homem Mais Procurado se torna um exercício ainda mais fascinante ao se mostrar uma obra madura nos termos políticos, demonstrando uma compreensão dos delicados fios que sustentam a complexa rede que é a política internacional, tendo que se equilibrar em termos de efetividade e imagem, sendo a própria agência de Inteligência uma ferramenta suja porém necessária para que esse equilíbrio seja (parcamente) sustentado. Dentre outros aspectos, isso se evidencia plenamente na ambiguidade da atitude envolvendo a caçada a Abdullah (Homayoun Ershadi), além do fato de que o filme ganha em complexidade e maturidade humanas por nos aproximar do personagem de Karpov, tornando-o um indivíduo tridimensional em sua dor, permitindo que o compreendamos o suficiente para ter uma ideia do grau de frieza exigida pelo serviço de espionagem ao lidar com seus “meios para fins”. Além disso, o longa demonstra, assim como outras adaptações e romances de Le Carré, como o meio da espionagem é escorregadio, sendo qualquer um, qualquer um, um possível inimigo ou, na melhor das expectativas, um elemento a ser descartado quando não mais precisado.

Mesmo que não tão visualmente evocativo ou mesmo complexo como O Espião Que Sabia Demais (adaptação anterior de um romance de Le Carré), O Homem Mais Procurado é uma obra tensa em sutilizas, funcionando como um estudo de personagem e de universo extremamente eficaz, e uma despedida digna de um dos melhores atores que já passou por esse planeta.


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