quarta-feira, 10 de dezembro de 2014


Análise:

Mapa Para as Estrelas (Maps to the Stars / 2014 / Canadá, EUA, França, Alemanha) dir. David Cronenberg

por Lucas Wagner

Os bastidores de Hollywood frequentemente são pintados em retratos que ressaltam sua artificialidade e a decrepitude das figuras que vivem no meio. De obras-primas como Cidade dos Sonhos a besteiras como Bling Ring, passando mesmo por admiráveis obras literárias como Abaixo de Zero, de Bret Easton Ellis. Em Mapa Para as Estrelas, é a vez do consagrado cineasta canadense David Cronenberg voltar seu olhar para esse ambiente, criando um retrato mordaz que não se entrega a sutilezas, sendo um prato cheio para o diretor explorar seu tema favorito: perversões.

O roteiro de Bruce Wagner desafia a construção de uma sinopse, dada a grande galeria de personagens que se imbricam numa trama intrincada que no fim das contas acaba se unindo, fazendo mesmo que as pontas soltas cumpram papel. Mas em linhas gerais, o tabuleiro é mais ou menos assim: a decadente atriz Havana Segrand (Julliane Moore) se desespera para interpretar uma consagrada personagem imortalizada por sua mãe, cujo fantasma assombra a mulher. Havana tem como assistente a jovem Agatha (Mia Wasikowska), moça com cicatrizes físicas e emocionais, que se envolve com o motorista de limusine Jerome (Robert Pattinson). De outro lado, temos o arrogante ator mirim Benjj (Evan Bird) passando por um precoce processo de recuperação das drogas, com sua dramática mãe, Christine (Olivia Williams) e seu frio pai, Dr. Stafford (John Cusack), uma espécie de terapeuta fajuto para celebridades.

Cronenberg constrói nesse universo uma estrutura farsesca que ressalta a artificialidade daquelas vidas, fazendo do filme uma sátira que se dedica de modo quase cruel ao humor negro, às vezes chegando em imponentes limites do aceitável (o que é um ponto positivo), como em um diálogo sobre namoros em meio a uma diarréia, ou ainda na inacreditável comemoração diante de um evento particularmente trágico. Essa farsa é pintada em cores fortes pela produção, apostando no amarelo e vermelho vivos, ao mesmo tempo em que um melancólico azul faz sua parte em cenas específicas (em geral envolvendo a piscina) ou mesmo o roxo da indumentária de Agatha, uma figura tão marcada pela morte, que se choca com o mundo de fajutas aparências criada pela família Weiss, ressaltado pela produção através de sua residência cercada de grandes janelas e portas de vidro. Enquanto isso, Cronenberg repete a estratégia visual de seu excelente Cosmópolis e faz constante uso de lentes grande-angulares para conferir um aspecto excêntrico em sua distorção das fronteiras dos quadros.

Mas se o que marca aquelas vidas é a artificialidade, há demasiada concretude no modo como outras pessoas, ligadas ou não àquele meio, se vêem afetadas por atos das “estrelas” que, egoístas até o seu cerne, carecem da qualquer senso crítico na compreensão de que suas atitudes podem (e vão) ajudar a desenhar a cartografia celeste de tantas outras vidas, seja de um fã ou mesmo de seus próprios filhos, criando assim uma constelação decrépita e falha. Não é a toa que o plano final do longa surja melancólico na imagem das mais “humanas” dentre aquelas figuras encontrando a única forma de liberdade que podem pensar sendo sobreposta ao mapa estelar que abre o filme, como se de qualquer forma, mesmo agora “livres”, aquelas figuras se vissem eternamente presas à constelação onde foram forjadas.

Não que as “estrelas”, por assim dizer, vivam em um universo de maravilhas. Pelo contrário: suas vidas são marcadas por intensa ansiedade diante da descartabilidade à qual se submetem ao fazer parte daquele meio, que cada vez mais parece reduzir o “tempo útil” ao ponto de atrizes de 16 anos tirarem sarro de uma atriz de 23 por conta de sua idade (“she is so menopausal!”), enquanto figuras como Havana se tornam caricaturas grotescas em seu desespero por sucesso, que parece sugar qualquer resquício de humanidade que lhe resta, o que, é claro, engorda a conta bancária do Dr. Stafford com sua pseudo-terapia misturada com espiritualidade e altas doses de auto-ajuda. Falando em espiritualidade, é notável como naquele meio até mesmo este elemento, supostamente tão íntimo, seja uma estratégia de venda, uma venda do único produto que tem: eles mesmos.

Assim, é compreensível que Cronenberg e Wagner tenham se imbricado no sobrenatural, ao inserirem fantasmas na narrativa que acabam por muito comunicar sobre as conseqüências dos atos daquelas figuras desenfreadas. No entanto, tal recurso poderia ser facilmente descartado, já que Mapa Para as Estrelas tem nos seus personagens concretos os mais sofridos fantasmas, desde Agatha, que se torna uma pálida sombra da mesquinhez de seus pais, fadada a repetir eternamente suas atitudes, ou mesmo Havana, para quem a criação de uma realidade possivelmente fajuta acaba se tornando sua realidade concreta, incapaz de aceitar a falta de drama que sua existência parece revelar e que, claro, poderia significar menos olhares impressionados para si.

Em um ano em que havia explorado a ligação entre o corpo e a tecnologia, assim como a possível dialética sado-masoquista implicada nesse sistema, no romance Consumidos, é notável como David Cronenberg entra em certa coerência em seus trabalhos ao novamente falar sobre a desconexão entre a matéria e o suposto “espírito”, criando um mapa para as estrelas que, diferente de uma pré-concepção que dita se tratar de uma rota para o estrelato, na verdade se refere à uma constelação isolada do resto do mundo, em perpétuo desespero.

- Textos meus de outros filmes dirigidos por David Cronenberg:




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