quarta-feira, 10 de dezembro de 2014


Análise:

Frank (Frank / 2014 / Reino Unido, Irlanda) dir. Lenny Abrahamson

por Lucas Wagner

Ao término da projeção, é bem provável que a primeira impressão que se tenha de Frank caiba na fala: “que filme peculiar”. A estranheza perpassa todo o projeto, tornando difícil encaixá-lo em rótulos. Ainda assim, o que não pode ser negado é que este filme dirigido por Lenny Abrahamson a partir de um artigo jornalístico de Jon Ronson é dotado de profunda maturidade emocional, na criação de uma obra tragi-cômica que acompanha o aspirante a músico, Jon (Domhall Gleeson), em sua jornada dentro da bizarra banda liderada pelo personagem título, que insiste em usar uma enorme cabeça de papel machê 24 horas por dia.

Desde a primeira cena, Abrahamson propõe de forma eficaz o equilíbrio entre o drama e o humor, ao apresentar Jon dentro de uma atmosfera melancólica, fria, ao mesmo tempo em que encontra a comédia intrínseca à sua incessante busca forçada por inspiração no cotidiano, situação que se torna mais trágica na medida em que o design de produção ressalta como a vida de Jon é impregnada pela música. Assim o filme se encontra, nesse espaço bastante equilibrado entre um humor melancólico e uma melancolia cômica, algo que persiste durante toda a projeção.

Mais do que fazer rir ou simplesmente comover, no entanto, o roteiro de Jon Ronson e Peter Straughn parece dedicado à exploração quase antropológica da vida dos membros da banda por parte do protagonista, que vai parar naquele ambiente quase que por acaso. Todos parecem possuir algum histórico de internação em hospitais psiquiátricos, e quando não possuem, a surpresa do espectador (e do protagonista) é palpável, já que a bizarrice daqueles sujeitos lhes parece inerente, ao mesmo tempo em que os roteiristas tem a delicadeza de, aqui e ali, dizer sobre as cicatrizes emocionais que compôem aquelas figuras, alcançando novamente a proeza de equilibrar-se entre o drama e a comédia, por exemplo, na figura de Don (Scott McNeary), com suas constantes tentativas de suicídios marcadas, provavelmente, por seu passado envolvendo sexo com manequins. Assim, é uma pena que Nana (Carla Azar) e Baraque (François Civil) sejam figuras unidimensionais cuja única característica é a estranheza, diferente dos outros membros da banda.

Como não poderia deixar de ser, no entanto, o foco do filme é o seu personagem título, que aqui ganha na decisão dos realizadores de tratá-lo como coadjuvante, permitindo que o vejamos a partir da ótica de outra pessoa (Jon), tornando-o assim ainda mais interessante, já que lhe conserva a aura de mistério. Pois Frank se torna uma figura magnética: imediatamente chamando a atenção devido à sua cabeçona falsa, o personagem vai aos poucos deixando tanto espectador quanto protagonista curiosos, ao mesmo tempo que cativados, já que Frank parece capaz de encontrar inspiração e poesia em qualquer elemento ao seu redor, sabendo descrevê-la de forma tocante e emocionada. No entanto, e o que é um dos elementos mais fascinantes sobre o personagem, é praticamente impossível dizer até onde vai sua genialidade e onde começa uma severa psicopatologia, e a posição de espectador imposta tanto a nós quanto ao protagonista torna essa ambiguidade ainda mais inquietante.

Pois, mesmo sendo uma criatura quase mágica, capaz de injetar vida em seus tristes companheiros, Frank é, em si, uma figura trágica, e é sintomático que, diante da óbvia pergunta envolvendo a razão de usar a cabeça falsa, responda algo sobre como o rosto humano é essencialmente grotesco, esquisito, sendo que ele mesmo parece enxergar com tanta doçura a natureza e o mundo ao seu redor; ou seja: ele romantiza o exterior, enquanto seu interior precisa ser coberto. Apesar da entonação calma, há insegurança naquela pessoa, algo que fica evidente no desejo que parece ter de ser reconhecido, sendo justamente no combate entre ser amado/querido e simultaneamente usar a Arte como meio de expressão de suas profundezas o que causa uma espécie de ruptura psíquica que corrói Frank, o leva a uma luta interna que o aliena mais de si mesmo. E assim, o excepcional Michael Fassbender merece aplausos pela que é, provavelmente, a mais delicada de suas performances, já que, mesmo sem poder usar o rosto durante a maior parte do tempo, o ator expressa ambiguidade a partir da própria postura de Frank, variando de uma posição robótica a ataques de animação quase maníacos que só podem revelar o grau de desajuste daquele sujeito, ao mesmo tempo em que sua voz sempre se concentra no tom calmo que, se por vezes representa sabedoria, outras acaba por revelar uma carência e insegurança tocantes.

É notável que ao longo da projeção o abismo entre Frank e Joe se torne mais claro, e para isso, o arco dramático vivido pelo protagonista é multidimensional o suficiente para que nós mesmos (espectadores) acabemos por nos afastar daquele sujeito que, a princípio, era nosso elo de ligação com a realidade para acompanharmos aquele “universo paralelo”. Pode ser que Joe aspire à carreira musical, tenha construído toda sua vida em torno dessa única perspectiva; porém, como vamos descobrimos, a Arte como meio de expressão não é seu objetivo. O que ele quer é ser alguém famoso, ter seu nome escrito nos livros de História, e assim, misturado com uma boa dose de imaturidade, podemos perceber o mal que Joe acaba por fazer àquele grupo em que entra, justamente por fazer todas as perguntas erradas, e ser corroído por um profundo sentimento de inveja. Basta observar, por exemplo, quando revela-se agressivo diante de uma bela canção composta por Don, ao invés de parabenizar o colega, ou ainda, de forma mais intensa, diante de um ato musical quase no fim do filme. Sua inspiração, diferente da de Frank, vem forçada, vem do simples desejo de ser visto, desejo refletido no constante uso de redes sociais, buscando alguma espécie de visibilidade em uma vida invisível.

Mas é nesse ponto que o longa se torna uma melancolicamente madura reflexão sobre o fazer e o apreciar artístico. Para isso, novamente Fassbender se mostra ponto-chave do projeto, usando os poucos momentos sem a cabeçona para criar uma figura que foge de qualquer espetáculo, que, na expressão vazia, nos olhos caídos fitando o chão, nas pálpebras baixas que acompanham o movimento de um corpo que parece lutar para não sucumbir à gravidade, se transforma numa carcaça parcamente sustentada por ossos. Sim, Frank é fascinante, tocante e intrigante. Mas esse é o artista, que usa de seus abismos de dor para colocar algo na realidade, e a nós (assim como a Jon) é dado o presente de poder confortavelmente regozijar em suas melodias.

Jon faz as perguntas erradas, como já foi apontado, pois na verdade é a partir de uma profunda ignorância artística e humana que ele tem essa obsessão em saber o que há por baixo da cabeçona. O que há por baixo não poderia ser outra coisa senão um mosaico de feridas mal cicatrizadas, e é aqui que Clara (Maggie Gylenhaal) se transforma em uma personagem tão humana, e podemos enfim compreender a ligação entre ela e Frank: Clara não tenta tirar a máscara... ela sussurra cuidado, carinho e conforto por baixo dela, e talvez isso seja mais importante do que uma curiosidade mórbida em escavar alguém. Pois essa dor romantizada do artista é nada mais, nada menos, que um embuste, apreciável apenas por aqueles que a veem de fora, pois, para o artista em si, são como mãos a lhe agarrar a garganta, sendo a expressão através da Arte talvez a única chance de respirar, e ainda assim é um respiro doloroso na medida em que seu efeito anestésico está intrinsecamente ligado à exploração da própria dor.

Assim, nos conectamos e desconectamos de Jon ao longo de sua jornada, o que é admirável na medida em que nós, mesmo enquanto espectadores, podemos fazer parte do que estamos assistindo. E se nos desconectamos dele, é justamente porque, como ele mesmo percebe um pouco mais tarde, passamos a compreender que aquela banda liderada por Frank é uma família, e, bem, talvez não devêssemos meter o bedelho por lá.

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