sexta-feira, 26 de dezembro de 2014


Análise:

Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit / 2014 / Bélgica, Itália, França) dir. Jean-Pierre e Luc Dardenne

por Lucas Wagner

Depois de enfrentar um severo episódio depressivo que a levou a ser afastada do trabalho, Sandra (Marion Cotillard) percebe que o pessoal de seu serviço fez uma votação para decidir entre sua continuidade na empresa ou um bônus de 1.000 euros no salário de cada um. Obviamente perdendo para o bônus, Sandra conta com a ajuda do marido para, em um final de semana, convencer seus colegas de trabalho a dispensar os 1.000 euros para que ela continue no emprego que tanto necessita. E é nessa história tão pequena em amplitude que os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne criam uma narrativa delicada e sutil que consegue dizer muito sobre a natureza humana através de atitudes prosaicas.

Descartando o uso de trilha sonora musical e optando por longos planos que centram-se nos seus atores, nem mesmo procurando alguma abordagem visual que torne a narrativa mais complexa, os Dardenne alcançam certo naturalismo no projeto ao atentar para seus personagens se comportando de forma perfeitamente comum, enfrentando dificuldades cotidianas raramente vistas no Cinema, desde a dificuldade de cortar uma torta enquanto se fala ao telefone até o inconveniente de chegar em uma casa e perceber que tem que voltar mais tarde, já que o dono não está. E é justamente por esse naturalismo que os cineastas impedem que seu filme se torne por demais enfadonho, pois, mesmo já sendo naturalmente episódico, a obra consegue maior dinamismo ao mostrar Sandra enfrentando pequenos e variados problemas para entrar em contato com seus colegas; além disso, os irmãos demonstram habilidade em inserir elementos ao longo da projeção que são um tanto inesperados e tornam a narrativa mais imprevisível.

E não é pela falta de recursos visuais mais rebuscados que a direção decai, já que os diretores não apenas apresentam segurança em sua trama enxuta e objetiva, mas conseguem ser sutis na manipulação visual do projeto, algo percebido, por exemplo, na residência de Sandra, repleta de detalhes coloridos e felizes característicos de uma casa com crianças pequenas, mas que entram em direto choque com o rosto sempre deprimido da mulher, causando uma sensação estranha no espectador mais atento. Os irmãos ainda investem em planos significativos onde conseguem criar tensão a partir de um quadro fechado do rosto da protagonista durante vários segundos em uma importante cena no final, ou mesmo planos que são sensíveis ao filmar a alegria esporádica de personagens que parecem sempre tristes, como nas duas cenas envolvendo o rádio do carro.

Mas é a partir da atenção dos diretores dedicada às reações dos colegas de Sandra a seu pedido que Dois Dias, Uma Noite consegue se tornar um sincero estudo da natureza humana. As reações são severamente variadas, mas os Dardenne não se contentam em apenas mostrar os colegas como ou anjos ou demônios, mas conseguem estabelecê-los como pessoas complexas, multifacetadas, que, mesmo quando agem de forma extremamente rude e arrogante, parecem evidenciar camadas a mais em sua atitude. Ninguém ali quer ferir Sandra, e muitos se sentem incomodados com “terem” que optar pelo bônus. Ora, pouco tempo antes nem existia tal bônus, o que torna ao menos sintomático que de repente tantos funcionários se vejam imprescindivelmente necessitados dele. A vergonha em não conseguir deixar passar a oportunidade de um lucro a mais, mesmo que isso resulte em perdas ainda mais severas para Sandra, é evidente, mas a ganância é também real, ao ponto de um deles chegar a pedir que a protagonista “tente ver da perspectiva dele”.

Não há pessoas boas ou ruins dentre aqueles colegas, apenas indivíduos que, muitas vezes, tem o oportunismo natural que grita contra o bom senso ou empatia por outro ser humano, por mais que sintam certa culpa. E nesse sentido, não apenas a abordagem dos Dardenne é essencial, como também a performance de todos os atores secundários, responsáveis por conferirem dimensão àquelas pessoas em seus poucos minutos em tela. Assim, mesmo um aperto de mão dado às pressas é um sintoma do evidente desconforto de certo personagem, ao mesmo tempo em que a mulher deste (perdoem-me, não sei o nome dos atores e não me lembro do dos personagens) consegue um sutil momento de irônico humor quando, com toda sua postura rígida e aversiva à Sandra, sendo completamente arrogante a ela (mesmo que de forma indiscretamente indireta), oferece alguma bebida à protagonista quando não a vê mais como ameaça.

E para que este estudo funcione, é essencial que possamos simpatizar com Sandra, algo efetivado em uma sublime performance de Marion Cottilard, talvez no que é um de seus melhores papéis. Com uma postura levemente encurvada como sinal de uma pessoa que está a sucumbir ao seu próprio peso, Cottilard compõe Sandra com uma expressão constantemente fatigada, triste, com as pálpebras parcialmente fechadas, e consegue ser bem sucedida ao demonstrar a dimensão da dor da mulher na sua luta por não chorar, o que evidencia um medo profundo de que esse comportamento a leve novamente à depressão. Ao mesmo tempo, é tocante perceber como a mulher vai ganhando certa “vida” a partir de cada esforço bem sucedido em sua empreitada, enquanto é notável que cada “fracasso” venha como um golpe muito mais pesado do que seria para uma pessoa “não-depressiva”, e é fascinante como Cottilard consegue expressar todas essas múltiplas facetas, fazendo um uso constante, por exemplo, de recursos como sua voz, que surge entrecortada e carente de ar em diversos momentos, evidenciando a extrema dificuldade da mulher com o que lhe é exigido, uma dificuldade que vai diminuindo com a prática, em mais um sinal da maturidade profissional de Cottilard.

Com um final inteligente ao deixar clara a visão dos Dardenne diante do ser humano ao mesmo tempo em que permitem uma perfeita conclusão ao arco dramático de Sandra, Dois Dias, Uma Noite é um filme feito por pessoas maduras para pessoas maduras. Logo, não espera-se que seja apreciado por todos.

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