sábado, 28 de março de 2015


Crítica:

Vício Inerente (Inherent Vice / 2015 / EUA) dir. Paul Thomas Anderson

por Lucas Wagner

Quem lê ou assiste Vício Inerente procurando algo meramente parecido com “coerência” pode se sentir irritado, já que esse provavelmente é o critério errado para apreciar tanto o romance de Thomas Pynchon quanto esta adaptação roteirizada e dirigida por Paul Thomas Anderson. Se, no entanto, o espectador se deixar levar pela vibe do projeto, pode acabar se divertindo, pois, mais do que funcionar como narrativa de mistério ou estudo de personagens, a obra busca captar a atmosfera cultural dos EUA nas décadas de 60/70, o que, inevitavelmente, o leva a se transformar num exercício de aleatoriedade.

A trama tem início quando o detetive particular Doc Sportello (Joaquin Phoenix) recebe a visita de sua ex-namorada Shasta Fay Hepworth (Katherine Waterstone), com um pedido de ajuda quanto a um esquema de conspiração e crime que ela se viu envolvida com o novo namorado e a esposa deste. A investigação, no entanto, leva Doc a encontros com figuras bizarras e redes de crimes mais profundas do que esperava.

Vício Inerente tem uma estrutura típica de um noir, além de elementos característicos do gênero. Se a investigação de Doc começa como algo relativamente simples, aos poucos se descortina conexões bizarras e complexas contingências que revelam uma conspiração muito mais profunda do que inicialmente se acreditava, com policiais corruptos e grandes figuras milionárias envolvidas, os diferentes casos mostrando uma ligação essencial, e todas as pessoas parecendo ter duas caras. A figura da femme fatale, essencial em qualquer noir, a propósito, funciona como grande motor para o protagonista, e Shasta é um exemplo impecável, com Katherine Waterstone emprestando à personagem um caráter sedutor e sombrio, mas com camadas de melancolia e fragilidade que podem ser sinceras ou apenas meios de manipulação psicológica.

No entanto, no fim das contas, a intrincada trama simplesmente não faz sentido, e cabe na metáfora da sopa, onde o enredo engrossa mas em nada acrescenta ao projeto como um todo. As coincidências entre os casos soam rasas e até mesmo forçadas, as justificativas por trás dos objetivos e das ações pouco convencem, personagens desaparecem rapidamente sem dizer a que vieram enquanto outros aparecem demais sem ter uma ligação explícita com o fio principal da história, assim como diversas pontas ficam soltas no final, sem falar em elementos que são jogados na narrativa como aparentemente importantes e depois são deixados de lado. Pode parecer uma crítica negativa, mas passa longe disso. É esse nonsense o ingrediente secreto de Vício Inerente. É como se realmente acompanhássemos uma história difícil através dos olhos e ouvidos de um cara que, sempre que possível, está fumando um baseado, inalando gases anestésicos ou usando algum outro tipo de entorpecente. Todas as ligações, contingências e coincidências da obra parecem fruto de pura paranóia, e o fato de que não só Doc mas todos os personagens se comportam do mesmo jeito, alicerçam o longa numa atmosfera geral de fritação.

Paul Thomas Anderson reconhece isso e estrutura sua direção nesse sentido. A montagem com fusões lentas, as cenas em slow-motion com a narração “astrológica” (sério) ao fundo, os longos planos abertos com lentos closes e os igualmente arrastados travellings traduzem a sensação de letargia típica da maconha, que corrobora com diálogos literais do romance que hora parecem simplesmente desorientados e outras vezes trazem insights poéticos que ocasionalmente revelam perspicazes digressões filosóficas. Ainda, é curioso como alguns personagens (mais especificamente Coy Harlingen e Shasta Fay) ganham um aspecto alucinatório em suas aparições e desaparições inesperadas, sem que sua veracidade seja questionada por Doc, já que é um sujeito por demais acostumado com delírios e alucinações (genial o momento em que escreve um alerta de “Paranóia” em seu bloco de anotações quando conversa com um cliente). E por mais que Anderson se entregue à diversão de sequências desvairadas e hilárias como aquela envolvendo Doc, o dentista e Japonica Fenway, ele ainda mostra-se sensível o suficiente para conferir o ar de devaneio tristonho aos episódios de recordações de Doc sobre Shesta, em especial aqueles em que o diretor usa ao fundo Harvest e Journey Through The Past, duas das mais melancólicas canções de Neil Young, sendo belo como essa última perdura durante um bom tempo quando pára de tocar no flashback como trilha sonora e continua como som diegético (origem no ambiente) na linha narrativa principal através de rádios, como se fossem fantasmas da memória de Doc influenciando o presente.

Traduzindo bem a desorientação filosófica e cultural desse período histórico, Vício Inerente explicita inarticulações ideológicas de forma sempre dinâmica e descontraída, e aqui, negros e arianos são capazes de deixar aspectos basais de sua rixa histórica para se juntarem ao encontrar “algumas visões em comum sobre o governo do país”, e o hater de hippies “Big Foot” Bjorsen (Josh Brolin) tem sua primeira aparição em cena como um hippie num comercial de imóveis. Falando nesse personagem, um brutamontes que age como manda-chuva, é sintomático como em certo momento fica explícita sua submissão à esposa, que aparenta ser a verdadeira “chefe da casa” num momento histórico onde as definições de papéis de gênero vinham mudando. O filme respira contracultura de uma forma descontraída, cool, e o próprio ambiente dos personagens parece derretido em suas bases, incoerente, e basta observar como Doc usa um consultório médico alugado para atender seus casos, num uso unicamente funcional do estabelecimento sem considerar as consequências imagéticas que isso pode ter. O tema do filme é o seu momento histórico, um momento de transições ideológicas onde nada ainda parece concretizado o suficiente para fazer o mínimo de sentido. É como se a própria época parecesse uma lombra, indefinida e ondulada em suas percepções incoerentes e impalpáveis. Daí a essencial falta de coerência do projeto. Esse é o seu núcleo.

Numa das melhores sequências do filme, com o caráter de devaneio que percorre diversos momentos da projeção, vemos uma replicação da Santa Ceia com Coy Harlingen (Owen Wilson) no centro e hippies ao redor, enquanto comem pizza. É uma representação que resume o filme: com descontração, explora a atmosfera daquela cultura permeada por drogas, trocando o sagrado clássico pelo hedonismo do nonsense.

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