domingo, 8 de março de 2015


Crítica:

Kingsman: Serviço Secreto (Kingman: The Secret Service / 2015 / Reino Unido) dir: Matthew Vaughn

por Lucas Wagner

Stardust, Nem Tudo é o Que Parece, Kick Ass, X-Men Primeira Classe... desnescessário dizer como a própria existência de um Matthew Vaughn já me faz feliz. Seus filmes conseguem a proeza de soarem descomprometidos ao ponto do farsesco e ainda assim serem levados a sério, seja por seus ricos personagens ou por uma trama que se torna mais densa sem, no entanto, perder a leveza característica. É um Cinema que se adequa a normas ao mesmo tempo que possui consistência própria. E Kingsman, seu novo trabalho, apesar de levemente inferior aos títulos anteriores, ainda é um empreendimento típico de Vaughn, e conta com um caráter deliciosamente subversivo que confere um sabor a mais ao projeto.

Baseado nos quadrinhos de Mark Millar e do próprio diretor, o longa conta a história de uma curiosa agência de serviço secreto (Kingsman) composta por perfeitos cavalheiros que, ao mesmo tempo em que promovem um ferrenho processo seletivo para novos membros (entre os quais está o protagonista, Egsy) tem que lidar com megalomaníacos planos do bilionário Valentine (Samuel L. Jackson).

Jamais escondendo o fato de servir como homenagem aos clássicos filmes de espionagem, especialmente aqueles protagonizados por James Bond, o roteiro de Vaugnh e Jane Goldman (parceira habitual do cineasta) investe em diálogos ou situações com contornos metalingüísticos, como quando Hart afirma gostar mais dos antigos filmes de espionagem, pois os novos são sérios demais, algo que, saído da boca de Colin Firth, ganha dimensão extra, dado o fato de o ator estar em O Espião Que Sabia Demais. A trama ainda ganha em criatividade ao burlar, mesmo que para fins cômicos, o caráter inacreditável das agências de espionagem comumente vistas nesse tipo de filme, que não parecem sofrer com cortes de verbas ou a burocracia de outros orgãos governamentais, e faz dos Kingsman uma agência independente formada por homens que tentam manter a tradição de um antiquado cavalheirismo britânico num mundo que vem perdendo as boas maneiras.

O mais curioso, porém, é o fato de o roteiro constantemente subverter suas tendências e criar uma estrutura incongruente em si mesma, algo como Vaughn havia feito referente aos filmes de super-heróis em Kick Ass. Aqui, temos cavalheiros que não hesitam em falar palavrões mesmo em contextos “inapropriados” ou ainda a presença do vilão interpretado com talento por Samuel L. Jackson, que contrapôe uma postura megalomaníaca típica dos clássicos de Bond com um estilo swag e uma língua presa que fragilizam ainda mais uma figura que consegue ser ao mesmo tempo ameaçadora e inocente, algo que sua repulsão à violência ou o design de produção de sua mansão (que comentarei mais adiante) reforçam muito eficientemente. Além disso, as mulheres no longa conseguem espaço sem servirem como meros símbolos sexuais ou interesses românticos dos homens, e apesar de Roxy (Sophie Cookson) infelizmente ser progressivamente apagada, a antagonista Gazelle (Sofia Boutella) demonstra muitas vezes mais determinação e pulso firme que o vilão Valentine, inclusive dominando-o em diversos momentos, numa postura diametralmente oposta das personagens femininas dos clássicos que o longa homenageia.

Mas, se já é esperada que certa adaptação gradual seja feita para se adequar à estranheza típica dos filmes do diretor, Kingsman parece exigir ainda mais força de vontade por parte do espectador, que é obrigado a aturar um primeiro ato em grande parte vergonhoso, onde mesmo o descarado descomprometimento do projeto não consegue salvar. Assim, além das (inicialmente) forçadas sequências de ação onde seus personagens, mesmo os “comuns”, parecem se comportar como se tivessem anos de treinamento em artes marciais, o longa desperdiça a oportunidade de explorar o processo seletivo dos espiões, algo que começa bem quando, no primeiro teste, já tem um participante aparentemente morto, estabelecendo um sentido de perigo que não sobrevive durante o processo como um todo, que vai se tornando um tanto aborrecido. Felizmente, a narrativa ganha com o passar do tempo, em especial devido à excelente montagem e à direção firme de Vaughn, mais uma vez bem sucedido em atingir um gradual senso de urgência na trama e no arco dramático dos personagens.

Kingsman ainda se revela um trabalho visualmente cuidadoso. O design de produção dos diferentes ambientes ganha tanto em eficiência como em contribuição ao desenvolvimento dos personagens. A citada mansão de Valentine, por exemplo, possui ameaçadores corredores de pedra, coloridos muitas vezes pelo vermelho típico desse vilão, ressaltando um caráter infernal ao mesmo tempo em que o detalhe das várias obras de arte envolvendo pandas é genial ao sugerir uma natureza mais gentil ao personagem enquanto ainda reforça seus discursos envolvendo o planeta em decadência (sendo o panda um animal em extinção). E se o aconchegante lar de Egsy do início se torna um verdadeiro entulho com o passar dos anos, o escritório de Hart fascina com as reportagens de celebridades coladas na parede, que acaba contribuindo para a faceta de perfeita discrição e eficiência desse tão interessante personagem, orgulhoso pela invisibilidade aparente de seus trabalhos. Ainda, o longa conta com dois planos pensados com precisão quando, em frente a um espelho, Egsy observa o fracasso circular de sua vida, seja com o elemento de uma foto sua na Marinha, a princípio, e depois um terno jogado no chão.

O visual do longa se mostra mais ambicioso na medida em que tece um triângulo entre Egsy, Valentine e Hart. O estilo swag que o protagonista tem no início dá lugar às vestimentas sóbrias e elegantes à lá Hart que completam seu arco dramático (pontos para o figuro), ao mesmo tempo em que é difícil evitar a comparação entre o exterior do complexo habitacional onde Egsy mora no início com as estruturas fisicamente semelhantes espalhadas pela praia onde se encontra a mansão de Valentine. É como se, visualmente, os realizadores abrissem margem a uma reflexão acerca de seu herói, que no início é comparável não apenas ao estilo de Valentine, mas também com seus princípios (que no fundo, no fundo mesmo, não são tão malignos assim) e sua inocência infantil, enquanto aos poucos vai assumindo a confiança e a polidez típica do personagem de Firth.

Recheado com as habitualmente intensas sequências de ação de um filme de Matthew Vaughn, Kingsman se permite um mergulho ao cartunesco ainda mais evidente do que nos trabalhos anteriores do diretor, a violência se tornando tão exagerada que possibilita que encaremos o pesado humor negro do longa com descompromisso, o que permite que este seja extremamente eficiente ao levar a risadas mesmo em piadas excessivamente gráficas e/ou ultrajantes, causando, inclusive, certo sentimento de culpada catarse em sequências como aquela em que a cabeça de numerosos milionários explodem como fogos de artifício, ou (a minha favorita) quando um grupo de fanáticos religiosos conhecem seu “criador” antes do esperado, sob o delicioso solo de Free Bird.

Com um elenco rico ao trabalhar o melhor possível seus personagens (sendo Colin Firth e Samuel L. Jackson os que mais se destacam), Kingsman é mais um ponto alto na carreira de seu diretor, e confesso mal poder esperar por uma possível continuação.

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