sexta-feira, 27 de março de 2015



Análise:

Clown (Clown / 2014/ EUA, Canadá) dir. Jon Watts

por Lucas Wagner

Clown consegue a façanha de ser profundamente perturbador ao mobilizar o espectador de formas divergentes enquanto lentamente o arrasta para uma história que, mais do que apenas geradora de sustos, apavora até a espinha. Além de, é claro, servir de mais argumentos para que eu possa afirmar que palhaços não são nada legais...

Baseado em um trailer falso feito apenas de “brincadeira” em 2010, o roteiro de Christopher D. Ford e do, também diretor do longa, Jon Watts, Clown conta a história de um pai, Kent McCoy (Andy Powers), que, no desespero para arrancar sorrisos do filho em seu aniversário, se veste com uma antiga fantasia de palhaço encontrada em um baú no porão de uma antiga casa. O problema é que a fantasia é amaldiçoada, possuindo seu usuário com um espírito de um antigo demônio...

Interessante que o filme consiga um equilíbrio entre um tom farsesco e outro mais denso, sério. Os temas cartunescos trazidos pela trilha instrumental de Matthew Veligdan ratificam essa dubiedade, e o retrato de “família excessivamente feliz” que os realizadores pintam dos McCoy no início consegue o duplo efeito de soar falso e explicitar um carinho intra-familiar que será importante para que os eventos posteriores na narrativas alcancem relevância dramática. E, mesmo com esse retrato, que pode parecer afastar aqueles personagens do “mundo real”, é notável que estes se comportem como figuras racionais, com dificuldades naturais na aceitação de uma situação tão absurda como a que acabam envolvidos, o que corrobora para um clima de tensão advindo de própria agonia de ver pessoas comuns “dando murro em ponta de faca” em um contexto onde a lógica não se aplica.

Logo, percebe-se que uma das coisas mais perturbadoras em Clown diz respeito à própria dificuldade que o espectador pode encontrar para se mobilizar quanto ao que está assistindo: o filme se trata de uma bobagem que finge se levar a sério ou de uma história de horror que flerta com o drama familiar e brinca de ser besta? Tal indefinição só pode resultar em um efeito incômodo eficaz para uma obra desse tipo. As duas abordagens são usadas pelos realizadores, que inclusive sabem utilizar-se de meios visuais para validar ainda mais essa dificuldade. O diretor de fotografia, Matthew Santo, faz um bom uso das locações afetadas pelo inverno para aproveitar para adotar uma paleta de cores baseada no cinza que atribui um tom melancólico que não corresponde com eventos tão bobos do início da trama e nem com os citados tons farsescos que esta inicialmente assume. Ainda, os ligeiros créditos iniciais reforçam a ambiguidade ao mostrar imagens rápidas de crianças sorrindo e brincando, além do título em fontes coloridas, que pulam entre si em cortes bruscos/secos que incomodam. Ainda tecnicamente, Clown possui um primoroso trabalho de maquiagem na transformação do amoroso e feliz Kent no aterrorizante palhaço demoníaco, enquanto o figurino merece aplausos nos estágios da degradante fantasia, que aos poucos começa a parecer uma verdadeira pele, com detalhe para os abdominais que ganham contornos nítidos com a progressão da possessão.

Porém, o mais interessante é que o filme consiga aos poucos puxar o espectador para uma mobilização séria, esvanecendo o incômodo advindo da indefinição do “estilo” do longa para uma angústia que tem como causa a própria narrativa, a começar pela aterrorizante transformação a lá A Mosca que Kent vai sofrendo. E, ao se preocupar em validar o drama humano vivido mesmo em meio àquela bizarrice toda, os realizadores permitem que o projeto ganhe relevância emocional, sendo consequentemente mais assustador, e assim, ver um cara amoroso como Kent ir gradualmente se transformando em uma criatura “instintual” assassina, consciente do processo e sem poder evitá-lo, é doloroso, ainda mais pela doce performance de Andy Powers (e vale ressaltar que Eli Roth, que assume o papel do palhaço nos estágios mais avançados da possessão, aterroriza com seu tom de voz calmo, lento, grave e frio). Mas é Laura Allen que galga degraus para se tornar a verdadeira protagonista do filme, conseguindo evidenciar sentimentos profundos de culpa, amor, proteção e confusão na sua composição de Meg McCoy, que se vê posta a provas ainda mais angustiantes do que o próprio Kent, já que ela ainda mantém o controle de si e, mais do que isso, se vê responsável pela proteção da família por um ser que é e não é de sua família.

Usando a violência gráfica não exagerada o suficiente para servir apenas como gore, mas equilibrada em sua expressividade para funcionar como demonstração da seriedade da situação, além de gradual em suas exposições (algo coerente com a estratégia narrativa comentada no parágrafo anterior), Clown ainda aposta na afronta a elementos culturais para se tornar mais aterrorizante. Quando demoniza de uma maneira intensa e fisicamente grotesca a figura “divertida” do palhaço, os realizadores encontram uma forma (clássica, é verdade) de incomodar no nível básico do inocente sendo corroído pela maldade, uma situação já extensivamente explorada pelo Horror (vide o romance It, de Stephen King, ou o filme The Babadook) mas aqui exacerbada pela comentada progressão de seriedade da obra, que promove a sensação de um mergulho gradual nas trevas, e também porque Kent é uma pessoa muito “legal” para ser acometido por tamanha desgraça, sendo que o mesmo pode ser dito pela agonia de ver uma família tão harmoniosa sendo despedaçada daquela forma. Além disso (ah, sim, quem não viu o filme, pule pro próximo parágrafo), ao lidar ostensivamente (inclusive por meio visual) com assassinatos de crianças, o filme atinge até mesmo o mais insensível dos espectadores.

Funcionando como um curioso exercício narrativo nessa empreitada de jogar com a mobilização racional e emocional do espectador, Clown acaba derrapando um pouco ao apostar em alguns desgastados clichês no terceiro ato, mas possui atrativos o suficiente, além de ser genuinamente assustador, para merecer créditos.


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