quinta-feira, 6 de novembro de 2014


Análise:

Interestelar (Interstellar / 2014 / EUA) dir. Christopher Nolan

por Lucas Wagner

2001 – Uma Odisséia no Espaço, Contato e Gravidade iniciam com uma visão do planeta Terra visto do espaço. Já Interestelar abre com a melancólica imagem de uma estante empoeirada repleta de livros sendo gradualmente soterrados por poeira...

A comparação é inevitável. Todos são filmes que não apenas apresentam um louvável embasamento científico, mas que se utilizam de sua trama de ficção científica para promover profundas reflexões acerca do Homem, sua finitude, complexidade, fraquezas e também sua tenacidade. Mas enquanto os três primeiros começam diminuindo o ser humano ao mostrar seu cárcere em um pálido ponto azul no Universo, o último mistura melancolia e esperança quando mostra a chave para o futuro da humanidade, que reside no conhecimento, sendo gradualmente consumida pelo fruto da ignorância que tanto marca sua passagem por aqui. E é essencialmente sobre isso que Christopher Nolan aqui tanto fala: esperança por uma espécie fadada à autodestruição mas que tem na Ciência sua mais poderosa ferramenta para conseguir sobressair-se.

O citado embasamento científico da obra consegue alicerçá-la em um universo temático perfeitamente realista, onde até os mais absurdos dos eventos recebe uma explicação científica palpável. É bacana ainda que esse embasamento se estenda, como os citados filmes no primeiro parágrafo, à ausência de som no vácuo do espaço, com Nolan, assim como Cuarón em Gravidade, extraindo efeitos dramáticos desse recurso, dando mais impacto e angústia a uma sequência de perseguição ou a uma explosão do que se as filmassem pelas vias mais comuns, ou mesmo ao apenas permitir que sejamos engolfados pela imensidão do Universo.

No entanto, o mais gratificante é observar como Nolan não apenas apresenta conceitos científicos tão fascinantes como wormwholes, singularidade, relatividade, buracos negros, etc, como ainda explora a fundo cada um, movendo a narrativa de modo que possa envolvê-los ao todo da trama, intrincando-a gradualmente quanto mais esses conceitos se manifestam fisicamente aos personagens. Aliás, é curioso como o filme nunca parece almejar ser um espetáculo visual, mas apresente efeitos especiais perfeitamente funcionais quanto aos objetivos de servir como veículos para as teorias que explicitam visualmente.

Mais importante do que esse embasamento, no entanto, é o claro respeito que Nolan tem pela Ciência e o método científico, algo ressaltado pela educação que o protagonista, Cooper (Matthew McGonaughey), procura dar a seus filhos, sempre buscando fazer com que não aceitem as explicações mais óbvias para os eventos que lhes chamam a atenção, mas investigá-los a fundo a partir de uma minuciosa coleta e análise de dados. Nesse sentido, é notável como a Terra onde vivem os personagens é uma com particular desprezo pela Ciência (como fica claro na cena no colégio), como se ela fosse uma entidade maldosa separada de seus pesquisadores, e não uma rica ferramenta que muitas vezes foi mal utilizada pelo Homem. O que Cooper, claramente mais instruído, busca ressaltar, são as possibilidades que são abertas pelo método científico, inclusive para o futuro da espécie, e não o que esta, tão dotada de estupidez, já fez de errado usando a Ciência. O filme, basicamente guiado pelo sentimento de esperança no conhecimento, respeitando seus alcances, por isso só já merece aplausos.

Termos esses que acabam por calcar Interestelar em uma narrativa fundamentalmente racional, o que não significa que o filme não funcione como drama humano. Aliás, é essencial que ele assim funcione. Dessa forma, é importante como Nolan dedica um bom tempo para estabelecer as relações afetivas e o companheirismo de Cooper com os filhos, algo vital para que seu arco dramático, assim como o de seus filhos, surta os devidos efeitos. Mas o mais rico nesse ponto da obra é quando o roteiro dos Nolan (Jonathan também trabalha aqui) entrelaça os aspectos emocionais dos personagens com o comportamento predominantemente racional que lhes é exigido enquanto cientistas. O choque ganha perspectivas até mesmo de cunhos éticos e morais, e discussões envolvendo a necessidade de uma postura objetiva mesmo quando profundos relacionamentos afetivos estão em jogo nunca soam gratuitas, mas são desenvolvidas com adequada sutileza, evitando qualquer tipo de resposta fácil.

A visão de Homem apresentada por Interestelar, então, é sempre justa, no sentido em que sabe dar-lhe devido valor sem exaltá-lo ao ponto da ignorância. O que seria denominado “fraqueza” humana não é mais do que sua necessidade de contato interpessoal, ou mesmo o Amor, algo que engrandece a espécie ao mesmo tempo em que a leva a se dar um significado que, no “grande esquema do Universo”, não existe. Um dos grandes trunfos do filme reside justamente em sua capacidade de explorar como o ser humano, submetido a algumas das mais fascinantes e indomáveis leis da Física, se comporta. E aqui entra novamente o seu mérito na exploração dos conceitos que propõe: como seria a reação de uma pessoa ao ver um rosto humano depois de anos de isolamento nos confins do Cosmo? Como seria saber que uma hora de sua vida, em determinado ponto do Universo, representa sete anos na vida de uma pessoa que você tanto ama? Não é a toa que o personagem Romilly se torne uma espécie de sombra de si mesmo enquanto espera, por 23 anos, que seus companheiros retornem de uma viagem que não chega a durar uma hora.

O caso é que o ser humano é uma criatura infinitamente minúscula que tem a arrogância de achar-se importante no Universo. E não é importante. Evidência disso é que, por mais que tenha sorrido, amado, chorado, o que quer que seja, por uma pessoa amada, esse amor não passará pelo crivo de uma lei científica. Pelo contrário: abrir mão da objetividade em prol dos sentimentos pode ser sua ruína, turvando seus horizontes de um modo que possa se convencer da validade de um argumento irracional, vide a discussão entre Cooper e Amelia (Anne Hathaway) em certo ponto. A Razão pode ser facilmente obliterada pela mera necessidade de contato com outra ou (em caso extremos) qualquer pessoa, sendo apenas um dos elementos dos quais, vendo-se privado, faz o ser humano perder a sanidade.

Mas nem sempre é assim. Na verdade, pode ser diferente. Interestelar é, afinal, uma obra de esperança. Como salienta o personagem de Dr. Mann (Matt Damon), é justamente a intensidade emocional que trás a figura de um rosto amado que pode servir de estimulação necessária a feitos incríveis. Pois podemos ser egoístas e mesquinhos, além de arrogantes, mas também somos capazes de sobrepor-nos a nós mesmos e encaramos as tais leis da Física, submetermo-nos a excruciantes provas em prol de atos que nem sempre se referem a nós mesmos ou mesmo àqueles mais próximos de nós. As possibilidades de alcançarmos um status de “seres de cinco dimensões” residem justamente na Ciência e em seu uso adequado, o que não vem sem sacrifícios, e talvez não exista outra espécie com alguma tenacidade capaz disso, além do Homem.

Chega a ser sintomático que Interestelar adquira uma perspectiva de Odisséia em seu cerne, no sentido de ser uma jornada exterior que, a partir de certo ponto, se torna interior, intimista. Assim como o astronauta Bowman em 2001 alcança o infinito apenas para encontrar a si mesmo, Cooper atravessa buracos negros para, no fim das contas, encontrar um sistema ordenado que o moverá intimamente, pois de outra forma não poderia, jamais, fazer o que deve fazer para salvar a humanidade de seu declínio final. E nesse esquema, Cooper é um protagonista nolaniano por excelência, no sentido em que é marcado por um comportamento obsessivo. Só que dessa vez, diferente de outros trabalhos do cineasta, sua obsessão é pelo conhecimento e pelo afeto que sente, tornando-o uma figura humana, demasiado humana, em suas contradições e complexidades, por mais que nunca deixe de ser racional. McGonaughey entrega, então, uma performance essencial para o sucesso do filme, já que sem a intensidade sutil com que demonstra o amor de Cooper pelos filhos, sua admiração pela Ciência, e seus próprios desesperos ontológicos ao se submeter ao Cosmo, provavelmente seu personagem não seria tão comovente.

Aliás, não só McGonaughey brilha, mas todo o elenco, construindo personagens tão tridimensionais quanto possível. Hathaway faz de Amelie uma figura forte, mas melancólica pelos sentimentos que mal consegue esconder. Jessica Chastain trás intensidade à amargura de Murphy, assim como concretude para seus ambíguos sentimentos em relação ao pai. Matt Damon tem sua melhor performance em anos. Michael Caine cria Dr. Brann como uma figura extremamente trágica nos riscos que assume, onde a implacabilidade da realidade há muito o impediu de sonhar. Já David Gyassi, como o citado Romilly, amassa qualquer um com seu olhar desconsolado.

Também é belo notar como, depois de três filmes bombásticos que lhe proporcionaram uma fama de diretor de ação, Christopher Nolan se embrenhe em uma obra de quase três horas de duração e sem qualquer sobressalto, mas guiada com constante melancolia, algo refletido por uma linda trilha instrumental de Hans Zimmer, que também corta os efusivos temas de suas outras parcerias com o diretor para aqui emular sentimentos de solidão e também de mistério, chegando até mesmo a lembrar John Williams. Ainda assim, o longa não carece de sequências intensas, e Nolan mais uma vez revela-se um primor ao coadunar eventos em espaço-tempos diferentes, formando uma montagem dialética construída com cuidado e melhor analisada com mais visitas ao longa. Além disso, se o diretor ficou conhecido por suas tramas bem amarradas, Interestelar é constituído de pistas que, inteligentemente, são plantadas ainda no início do filme para construir significados complexos com o decorrer da projeção, fazendo um uso excepcional de uma temática que envolve realidades cósmicas tão diversas.

Obra que certamente crescerá com o tempo, Interestelar é uma ficção científica que emula romances de nomes como Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, ambos do século XX, e alguns dos maiores gênios do gênero. Só que, ao invés do medo do século passado onde a Ciência tinha demonstrado capacidades assustadoras de destruição, aqui vemos a esperança colocada nela de único veículo de salvação de uma espécie repleta de possibilidades, mas inerentemente minúscula.

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