sábado, 8 de novembro de 2014


Análise:

Boyhood – Da Infância à Juventude (Boyhood / 2014 / EUA) dir. Richard Linklater

por Lucas Wagner

Richard Linklater é um artista fascinante que constantemente surpreende com ousadas empreitadas. A trilogia iniciada por Antes do Amanhecer fornecia profundas reflexões sobre relacionamentos a partir do uso do próprio tempo entre as produções como fator basal, ao passo que Waking Life (assim como O Homem Duplo) se utilizava de uma animação deveras peculiar para traduzir os mais complexos conceitos filosóficos. E enquanto Jovens, Loucos e Rebeldes divertia pela contra-cultura e mesmo pelas “contra-convenções nostálgicas”, Tape era um angustiante drama psicológico cujo cenário se “limitava” a um quarto de hotel barato. E a lista poderia seguir solta, podendo citar as peculiaridades de obras-primas como Bernie, Escola de Rock ou Slacker.

Mas o caso é que esse seu novo filme, Boyhood – Da Infância à Juventude, revela-se uma jornada surpreendente até para os termos de seu realizador. Filmado durante 12 anos, o projeto acompanha o personagem Mason Junior (Ellar Coltrane) desde sua infância, passando pela adolescência até chegar à sua vida adulta, quando deixa a casa da mãe e ruma à faculdade. Mais do que um filme com uma trama específica, no entanto, estamos tratando de uma obra que é feita de momentos. Momentos estes que, aos poucos, constroem Mason e modificam o ambiente a sua volta.

Construído com sensibilidade, Boyhood permite a identificação de qualquer espectador por mostrar momentos que são facilmente compartilhados por qualquer ser humano, justamente pela naturalidade de seu conteúdo. Seja presenciar uma tenebrosa briga entre os pais e sonhar que tudo ficará bem, e até mesmo momentos repletos de gostosos frios na barriga, como tomar uma cerveja sendo menor de idade (e a hesitação pontuada por Coltrane é tocante) ou dividir um cigarro de maconha entre amigos. Para além disso, o filme investe em momentos com essa mesma naturalidade mas marcados de um lirismo fascinante, facilmente esquecido diante do caos do cotidiano, como uma descontraída caminhada com uma garota especial durante toda uma noite até onde a escuridão se choca com a luz diferencial de uma manhã. E é interessante ainda como o longa foge do maniqueísmo barato e opte pelo realismo ao mostrar Mason, mesmo apaixonado pela namorada, flertando distraidamente com uma colega de trabalho.

Mas ainda que possua essa naturalidade que permita certa universalidade, Boyhood evita ser um filme coming of age comum e nega ao espectador momentos primordiais na vida de qualquer jovem (como seu primeiro beijo ou primeira transa) e prefere aproveitar o tempo para desenvolver melhor o que é peculiar à Mason. Pois, mais do que falar sobre crescer, amadurecer, Linklater se preocupa em criar um estudo de personagem na melhor definição no termo, já que presta atenção, com admirável cuidado, a como a interação de Mason com seu mutável ambiente (o que inclui as pessoas com quem convive) vai modelando seu comportamento ao longo dos anos.

O modo como Mason passa do garotinho com o pragmatismo típico de uma criança (“Por que não entregou ser dever de casa?” “Porque a professora não pediu”) para o adulto barbado e poético, com incontáveis idéias atoladas na garganta, não surge a partir de sua própria “força de vontade”, mas de diversas variáveis que incluem: o fato de ter assistido aulas de sua mãe (uma professora de Psicologia) e aprendido sobre figuras como B.F Skinner e John Bowlby; ter tido enorme influencia pelas ideias humanistas de um pai romântico e repleto de carinho; ter sido ensinado a escutar rock e música country, com toda a poesia que acompanha as letras dessas canções. Ainda, para compreender como, de um menino tagarela, passa a ser um jovem progressivamente introspectivo até conseguir, aos poucos, expressar mais sua opnião, é necessário levar em conta fatores como a constante mudança de lares, ver sua mãe se entregando a homens violentos e desrespeitosos ou mesmo seu pai, outrora tão cheio de ideais e sonhos, se entregar a uma existência familiar que a princípio lhe pareceria alienante, eventos esses que deixariam qualquer um confuso quanto a como se comportar, ou mesmo se expressar, adequadamente.

Mason Junior é um ser humano extremamente complexo, justamente devido a todas essas contingências. E é pelo embasamento intelectual e afetivo que recebe de seu rico ambiente que o protagonista acabe por se tornar um sujeito demasiado cônscio, o suficiente para lhe causar certa aflição ontológica por reconhecer que tudo aquilo que os outros fazem e que lhe chega como eventos aversivos, não são feitos por maldade, mas que o próprio comportamento humano é severamente ambíguo. É notável que, depois de tanto tempo calado com essas angústias, ele as despeje para uma garota cujos principais predicados residem no fato de ser bonita, e não inteligente ou compreensiva. Uma tentativa, observada sabiamente por Linklater, demasiadamente comum de um jovem do sexo masculino de buscar em um rostinho bonito uma rota de salvação.

O que é tão fascinante nesse ponto da história, em que Mason namora com essa garota, Sheena, é que os dois são pólos opostos: ele um intelectual romântico e ela uma moça ligada em Facebook. E o próprio interesse dele por ela partiu do ponto de vista físico. Mas aqui entra a sensibilidade de Linklater: isso não importa para que o relacionamento dos dois constitua uma interação tão bonita de mútua construção, e diálogos ricos que evidenciam maturidade e bom humor por ambos, mesmo que de perspectivas tão absolutamente distintas. Mais do que isso: o relacionamento acaba, com toda a parcela de dor e amadurecimento que isso acarreta, e toda a poesia retratada no lirismo de fotos artísticas com a moça como musa, é findada pelos mais estúpidos dos acontecimentos. Como é a vida em si: espúria até os limites do aceitável.

Com essa atenção dedicada à construção do ambiente de Mason, Linklater consegue a proeza de criar uma lista de personagens tridimensionais, cujas características influenciam completamente uns aos outros. Assim, além de contar uma história de juventude, o diretor fala sobre o processo de envelhecer, sobre a angústia de ver os filhos crescendo e se dizer, com enorme dor, que pensava que “haveria mais” na vida. A sabedoria do diretor é tanta que novamente foge das facilidades da ficção e, mesmo com personagens que aparentemente se fixam em estereótipos, escapar de seus mais comuns limites. Exemplo disso fica claro no pai do protagonista, que mesmo sendo evidentemente um adulto sonhador demais para seu próprio bem, é um pai excessivamente carinhoso, presente, o que se torna essencial para Mason se destravar com ele, como geralmente faz. Aliás, mesmo quando “careta” (caindo em outro estereótipo), é capaz de lindas e sábias reflexões. Ou seja: Linklater o tempo todo nos fala sobre a mutabilidade do comportamento humano e a impossibilidade de fechá-lo em simples clichês. Para mais exemplos basta olhar Samantha (irmã de Mason) ou a citada Sheena.

Essa narrativa atenta aos detalhes do Tempo ainda prima pela sutileza, apostando no figurino ou em objetos de cena (como os diferentes carros do pai) para representar as mudanças psicológicas sofridas por aquelas pessoas. Ainda é lindo o modo como o desenvolvimento de um comportamento problemático é aqui narrado, quando um sujeito alcoólatra é filmado primeiro bebendo escondido e depois fazendo isso na mesa de jantar. Para completar, Linklater se revela um gênio ao conseguir impedir que a narrativa se torne esquemática e a transforme num processo fluído de desenvolvimento, selecionando cenas na montagem não por um processo simplesmente lógico, mas a partir de instantes que se mostram precisos para o desenvolvimento dos personagens ao longo dos anos.

Para finalizar, se em Antes da Meia-Noite o cineasta já havia demonstrado como usa sua própria experiência e amadurecimento enquanto ser humano para enriquecer o conteúdo de sua Arte, adotando uma filosofia mais empírica do que as (maravilhosas) discussões intelectualizadas de seu Waking Life, aqui, mais do que nunca, podemos perceber a influência desse processo de crescimento. Desde que começou a filmar o longa, em 2002, passou por muita coisa em sua vida, e seria impossível que tudo isso não marcasse o desenvolvimento do projeto. Então, enquanto Mason vai se entregando a filosofias marcadas por sua experiência e pelo que enxerga daqueles com quem convive, podemos entrever o próprio Linklater mais uma vez usando a Arte para explorar suas angústias existenciais.

Indubitavelmente um dos melhores filmes do ano, Boyhood é um enorme marco mesmo na carreira de um cineasta já tão fascinante, com um olhar maduro como poucos para perceber todos os rasgos que fazem uma vida da tapeçaria humana, e como são justamente eles que nos fazem crescer. Em suma: uma obra-prima para todos os méritos.

- Textos meus de outros filmes de Richard Linklater:



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