sábado, 27 de setembro de 2014


Análise:

Sin City 2: A Dama Fatal (Sin City: A Dame To Kill For / 2014 / EUA) dir. Robert Rodriguez & Frank Miller

por Lucas Wagner

Sin City – A Cidade do Pecado, de 2005, merecidamente foi ganhando um respeito crescente ao longo dos anos já que, além de funcionar como um verdadeiro pulp fiction, trazia para as telas do cinema uma autêntica atmosfera noir mixada com as peculiaridades da linguagem de HQs. O resultado foi um espetáculo visual de tirar o fôlego, um exercício narrativo digno de nota que sempre vale a pena revisitar. Nove anos depois e sua continuação, A Dama Fatal, chega às telas, com muitos dos elogios voltados ao primeiro filme podendo ser justamente aqui repetidos, apesar de que essa continuação em nada se esforce para criar algo novo em relação ao que já vimos.

O que acaba não sendo tão problemático assim. A Dama Fatal é tão, ou mais, visualmente arrebatador do que o seu antecessor, e a obra já mereceria aplausos pela sublime beleza estética de seus planos e sua fotografia. Novamente filmando em green screen, os diretores Robert Rodriguez e Frank Miller (também responsável pela graphic novel que inspirou o filme) apostam no preto e branco como estratégia visual para corroborar na criação de uma atmosfera de film noir que remete a clássicos do gênero ao mesmo tempo em que a obra continua ganhando singularidade ao misturar essa característica com os predicados visuais que tanto marcam o universo das HQs. E assim, certas peculiaridades dessa mídia ganham destaques sutis, como nos óculos de grau que parecem refletir uma forte luz branca.

Mais importante é como o filme recria nuances próprias do universo dos quadrinhos, algo que fica evidente em cenas como a que Marv (Mickey Rourke) luta para relembrar uma perseguição e, enquanto a câmara gira ao seu redor, vemos dois carros em miniatura perseguindo um ao outro. Fora que, por fazer parte do mundo das HQs, justifica-se exageros gráficos que, de outro modo, pareceriam deslocados. Completa essa imersão nos quadrinhos o fato de os diretores continuarem buscando adaptar a narração em off dos personagens para a estrutura sucinta e funcional das HQs, sendo bem sucedidos aqui, muito embora à esse A Dama Fatal falte a poesia de falas do seu antecessor como: “Seu corpo treme ao vento como uma folha seca em uma árvore morta”. Uma pena.

Porém, os “nervos poéticos” de Rodriguez e Miller afloram na beleza infernal de detalhes visuais aqui concebidos, alguns com uma tremenda força simbólica, como a piscina de Ava (Eva Green), cujo vapor de água quente é deveras perceptível, reforçando o tom mitológico de sua figura, ao mesmo tempo em que o design de produção acerta basicamente na criação de cada metro quadrado desse universo, e que ganha nuances próprias em detalhes como aqueles que compõem a casa de Nancy (Jessica Alba), onde o papel de parede com temas floridos se encontra severamente rasgado, destroçado até. Além disso, “beleza infernal” é uma expressão também cabível para os planos criados pelos diretores, que muitas vezes extravasam os limites físicos para fins metafóricos, e já que citei a casa de Nancy, é fascinante como seu quarto consegue se transformar em uma enorme cova sepulcral em certo momento do terceiro ato.

O mais fascinante em Sin City, no entanto, continua a ser a forma como são utilizadas as cores nesse universo em preto e branco. Aparecendo como pontos isolados, as cores hora são usadas apenas para fins estéticos (como a imagem de tirar o fôlego da sombria Basin City iluminada por parcos pontos coloridos) e hora com fins simbólicos, assim como foi feito no longa anterior. No geral, quando voltadas a metáforas, as cores referem-se a fortes emoções, ou mesmo sensações, envolvendo luxúria, repugnância, medo ou simplesmente maldade. Algumas vezes, os motivos são simplesmente fetichistas, como as ruivas sempre evidentemente ruivas, mas está valendo. Com tudo o que poderia falar sobre as cores nesse texto, escolho comentar os olhos e a boca de Eva Green. Desde sua primeira aparição, a linda mulher exibe com os carnudos lábios desenhados por um forte batom vermelho, enquanto o resto de sua figura fica no básico preto e branco. Ora, o vermelho já vai remeter à paixão destrutiva de Dwight (Josh Brolin) por ela, ao mesmo tempo que é uma cor de alerta sobre essa mulher em quem não podemos confiar. Mas é apenas a partir de um momento estratégico da narrativa que seus olhos ganham uma forte coloração verde, que vai lembrar o tema da morte e o cerne maligno dessa mulher (afinal, os olhos são as “janelas para a alma”).

Aproveitando que falei das mulheres, essa continuação perde um pouco de característica de mundo controlado (por vezes subliminarmente e outras descaradamente) por pessoas do sexo feminino altamente manipuladoras. No entanto, a história envolvendo Ava compensa bem nesse sentido, tanto pela personagem em si quanto por trazer de volta o conceito da parte da cidade governado por mulheres independentes. Mas, voltando à Ava: essa é uma figura absolutamente aterradora, fascinante e sedutora, e é palpável o nível de ameaça representado pela mulher, algo que os diretores ressaltam ao mostrar a facilidade com que ela destrói a vida de um homem sem nem perceber (e se percebe então...). Para isso, a atuação de Eva Green está irretocável, conseguindo usar toda sua beleza e imponência física para criar a figura mefistotélica que, afinal, é Ava.

Estruturalmente, A Dama Fatal também não decepciona, novamente contando três histórias independentes pontuadas por leves elementos em comum. Mas essa continuação ousa um pouco mais ao apresentar as tramas envolvendo Johnny (Joseph Gordon-Levitt) e Nancy e interrompê-las em momentos tensos, nos deixando atiçados ao utilizar a estratégia narrativa de “causa e conseqüência”, para então iniciar-se na trama envolvendo Ava e Dwight. Além disso, é curioso como as três histórias se passam em distintos períodos no tempo (uma inclusive antes do primeiro filme) e que os diretores sejam delicados ao expor essas informações. Interessante também como foram incluídos elementos sobrenaturais que cabem perfeitamente nesse universo demoníaco, e assim, o detetive Hartigan (Bruce Willis) volta não como alucinação de Nancy, mas como um verdadeiro fantasma amaldiçoado. Contribuindo para essa noção surreal, é bacana que certos elementos fantásticos e até farsescos se façam presentes, como o funcionamento do complexo habitacional onde cresceu Marv. É uma pena, no entanto, que esse personagem, tão fascinante no filme de 2005, aqui seja usado basicamente para falhos fins cômicos.

Sin City 2: A Dama Fatal novamente é um mergulho em um universo amaldiçoado e aversivo, com personagens malditos condenados a viver chafurdando na própria miséria, na violência, sem a mínima possibilidade de redenção. Aliás, quem é que quer redenção?

E se isso tudo pode ser dito também sobre o primeiro filme, tanto melhor.

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