quinta-feira, 25 de setembro de 2014


Análise:

Coherence (Coherence / 2014 / EUA) dir. James Ward Byrkit

por Lucas Wagner

Existe aquela velha máxima que alguns cinéfilos e cineastas adoram, romanticamente, repetir: câmera na mão e ideia na cabeça. Ao invés de criar um visual arrojado para o projeto, o foco dessas criativas produções de baixo orçamento está nas ideias, e o improviso muitas vezes reina. Essa ficção científica Coherence é um ótimo feito nesse sentido recentemente, representando ainda um excelente ponta-pé para a carreira do diretor e roteirista James Ward Byrkit, que já tinha trabalhado no roteiro da inesquecível animação Rango.

Sem revelar nada que comprometa as melhores reviravoltas presentes no projeto, a trama poderia ser resumida da seguinte forma: ocorre um jantar entre velhos amigos na mesma noite em que um cometa passa bem próximo do planeta Terra, sendo visível no céu noturno. Durante essa passagem, a energia acaba em todo o bairro, deixando luz apenas em uma isolada casa a alguns quarteirões de distância. A partir disso, uma série de perturbadores eventos tem início, em especial quando os personagens percebem estar lidando com uma situação envolvendo universos paralelos.

Por motivos de redução de custos de filmagem, o diretor rodou o projeto em sua própria casa, e, aliás, a própria premissa de ficção científica partiu de necessidades financeiras, já que o cineasta gostaria de “fazer uma sala de jantar parecer maior do que uma sala de jantar”. As ideias envolvendo universos paralelos trazidas para o projeto ampliam em complexidade e drama o parco espaço físico, que diretor e equipe souberam usar com inteligência.

A começar pela forma como desenvolvem a relação entre os amigos no início da obra, e como, aos poucos, vai apresentando informações que introduzem a narrativa em sua temática sem, no entanto, atropelar o desenvolvimento dos personagens ou soar deveras óbvio em atender suas necessidades narrativas. Assim, os amigos conversam tranquilamente sobre diversas coisas (e a fotografia de Nic Sadler acerta nos tons quentes e aconchegantes, assim como os móveis e objetos de cena transmitem a mesma sensação), muitas delas envolvendo suas histórias, besteiras, piadas, e apenas pontualmente tocando em temas importantes para a trama de ficção científica.

Quando esta definitivamente começa, a tensão se instala, em especial pela maneira brusca como os amigos são interrompidos em sua reunião, e essa mesma brusquidão só funciona por já termos sido preparados por pistas que, de leve, introduziam maior suspense, como os celulares quebrados ou a falta de internet. Ward Byrkit (o diretor) então se mostra bem sucedido ao conseguir imprimir uma atmosfera de tensão crescente, com a narrativa se tornando cada vez mais angustiante quanto mais os personagens vão se tornando cientes, ou ao menos fazendo suposições, sobre a situação em que estão implicados. Além disso, a obra ganha ao criar um clima de paranóia que em muito remete a clássicos como O Enigma de Outro Mundo ou Vampiros de Almas, quando a confiança dos personagens (e a nossa também) sobre a natureza e intenções de várias daquelas pessoas começa a ser testada. No entanto, Coherence ganha ainda mais complexidade nesse âmbito do que nas outras obras citadas, pois aqui os possíveis “impostores” (ou “visitantes”) na casa não tem, a priori, intenções malignas, mas são seres humanos tão confusos quanto seus companheiros (ou adversários).

A trama em si prima pela inteligência. Coherence é uma ficção científica mais focada em desenvolver ideias, e assim a obra fascina ao brincar com conceitos de múltiplas realidades e do famoso experimento “mental” do gato de Schrödinger. Só é uma pena que algumas vezes esses conceitos não sejam introduzidos de forma mais orgânica, mas sim envolvendo muletas narrativas como a protagonista (Emily Baldoni – lindíssima) que já pesquisou o assunto, ou o personagem de Hugh que, por glória de deus, tem um livro no carro que fala sobre essas questões, além de ser irmão de um físico teórico. Mas isso acaba pouco importando por sermos completamente fisgados pela trama, nos tornando cada vez mais interessados com as reviravoltas e suas implicações presentes no roteiro, com o filme se tornando um delicioso “mindfuck” que qualquer espectador vai se perceber regozijando ao, às vezes sem intenção consciente, decifrar. Além disso, corrobora a inteligência de Ward Byrkit ao introduzir, ao longo projeção, diversas pistas para eventos futuros, transformando o projeto num quebra cabeça que o espectador vai montando.

Interessante também observar o esforço do diretor/roteirista em transformar cada um dos personagens em indivíduos tridimensionais. No entanto, não é sempre bem sucedido, e se Mike é um sujeito complexo e fascinante, Lee comove com sua delicada passividade e Laurie se mostra muito mais proativa do que o esperado, outros personagens são consideravelmente desinteressantes, como o galã bocó Kevin ou a própria protagonista, Emily, cujos dilemas amorosos acabam apenas por irritar, apesar de justificar boas cenas.

Porém, a meu ver, o mais interessante de Coherence é o fato de não raro flertar com questões existenciais envolvendo as implicações de um encontro com universos paralelos. Isso faz o longa aprofundar-se mais do que o esperado no seu próprio tema, mas também é algo que Ward Byrkit faz de maneira irregular. Pois existem subtramas como aquela que envolve o temor de Mike despertado pela existência de um outro “eu”, que acaba retroagindo em seu próprio comportamento e assim afetando a trama como um todo. Mas também, há diversas oportunidades tristemente desperdiçadas, e quando Emily cita as possibilidades de autoconhecimento que tal situação implica (ou poderia implicar), só pude lamentar que o filme descarte a ideia com a mesma rapidez que a propôs.

Enriquecido por uma conclusão eletrizante, Coherence é um empreendimento nobre e muito eficaz, mais uma prova de que o mais importante em uma ficção científica (ou em qualquer gênero, diga-se de passagem), são as ideias e o modo como as trabalha. Então, mesmo que não seja tão fascinante quanto alguns “primos” como Triângulo do Medo ou Donnie Darko, é certamente divertido o suficiente para valer a visita.

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