sexta-feira, 18 de outubro de 2013


Crítica A Espuma dos Dias (L' Ecume des Jours / 2013 / França) dir. Michel Gondry

por Lucas Wagner

  O cineasta francês Michel Gondry possui grande talento para desenvolver projetos com uma estética peculiar que, sempre tendendo ao surrealismo, possuem certa dinâmica e excentricidade que enriquecem suas obras. Nesse ponto, o diretor alcançou resultados visuais marcantes em trabalhos como Sonhando Acordado (2005) ou, especialmente, na obra-prima Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), seu melhor filme. Mas nesse seu novo longa, A Espuma dos Dias, Gondry consegue o trabalho visual mais fascinante de sua carreira até então, criando uma obra cuja maior virtude está justamente na força de suas imagens que conseguem realizar uma impactante transição no projeto: de comédia surrealista, este passa a drama expressionista.

  O roteiro do próprio Gondry com Luc Bossi, baseado no romance homônimo de Boris Vian, conta a história de um casal apaixonado e recém-casados, Colin (Romain Duris) e Cloe (Audrey Tautou). Durante a lua-de-mel, Cloe contrai uma doença rara causada por uma planta que passa a crescer em seu pulmão, o que mobiliza Colin, antes um bon-vivant, a buscar trabalho para pagar pelo tratamento da esposa.

  A Espuma dos Dias se passa em um universo onde a lógica e a proporção não tem lugar, e onde Gondry nos arremessa logo nos minutos iniciais, nos surpreendendo com alimentos que se movimentam por vontade própria, um rato (um homem gordo vestido de rato) que passeia e se diverte na casa de Colin, uma TV que interage com o mundo externo, sapatos que agem como cachorros, etc. Dentro desse contexto, Gondry abandona qualquer pretensão de sentido, e mergulha seu filme na insanidade total, com uma trama de fundo que guia a projeção (Colin conhecendo Cloe), mas mais focado no puro nonsense, do qual ele consegue retirar uma dose absurda de humor bizarro que só ficaria mais engraçado se assistido sob efeito de maconha. É impossível não pensar nisso nas cenas de danças “bip bop” malucas onde as pernas das pessoas crescem desproporcionalmente, ou na (genial) sequência envolvendo uma competição de patinação no gelo. Além disso, as loucas invenções vistas ao longo do projeto são divertidíssimas, como o “pianocoquetel” (piano onde o toque de notas cria mistura de bebidas) ou os áudio-livros em forma de comprimidos.

  Aqui, Gondry aproveita para brincar ainda mais ao inserir certa metalinguagem no projeto que, de uma forma amalucada, é bem sucedida ao ressaltar o caos de tudo: vemos diversos escritores, em filas, escrevendo frases em máquinas de escrever que viajam de mão em mão, continuamente, resultando na história que assistimos. Acertando ao não buscar lógica nem em diálogos básicos, Gondry acaba, no entanto, errando ao inserir uma subtrama envolvendo o personagem Chick (Gad Elmaleh) que não faz sentido nem na falta de sentido do filme.

  Felizmente, Gondry acerta a mão na hora de trabalhar a relação entre Cloe e Colin. Apesar de, no roteiro, o romance dos dois ser mostrado de forma resumida e atropelada, Gondry capricha ao filmar os dois juntos com uma profundidade de campo reduzidíssima que embaça o fundo do quadro, isolando-os em um universo particular. Os passeios bucólicos dos dois também contribuem para esse sucesso e, principalmente, a sequência do casamento, que acerta na poesia de mostrá-los como que “nadando” enquanto os convidados estão andando normalmente.

  Tal trabalho é importante para que o filme faça aquilo que o faz ser ótimo e não só divertido: se transformar em um pesado drama expressionista. A doença de Cloe e a preocupação de Colin só teriam repercussão para o espectador caso nos importássemos com eles. E assim, a mudança do longa é gradual, e Gondry vai encontrando maneiras geniais de fazer essa transição. Observem como a casa de Colin e Cloe vai ganhando uma camada de musgo, sujeira e podridão, talvez como representação da deteriorização do pulmão de Cloe. Além disso, ambientes como o do hospital, escuros e podres, com paredes descascadas e canos que cospem sangue, vão se tornando comuns.

  Aliás, o design de produção de A Espuma dos Dias é simplesmente primoroso. O modo com a casa do casal vai se transformando em quase uma mansão mal assombrada é assustador, onde os ambientes abertos e simétricos vão dando lugar a ângulos estranhos e passagens estreitas. A fotografia do longa também merece aplausos sinceros (além de uma indicação ao Oscar) por começar a projeção optando por cores fortes e claras, coloridas, e depois ir deixando a imagem quase monocromática, até chegar ao absoluto preto e branco, numa representação clara do estado interno de destruição dos personagens. O uso da violência também é curioso pois, se no início era hilária (a citada cena de patinação no gelo), depois adquire conotação macabra (as mutilações na fábrica). A própria trilha sonora, antes animada e esquisita, agora fica opressiva.

  E é conseguindo impactar tanto com essa mudança de tom que Gondry é extremamente bem sucedido em derrubar até o mais forte dos espectadores (e assim, a rima visual das duas cenas de Cloe demonstrando estar sentindo mal adquire tom trágico quando percebemos não ser mais fingimento). O humor vai sumindo gradualmente, e o clima de tragédia vai nos dominando, até estarmos tão afundados naquela atmosfera de tristeza que nem percebemos a mudança na hora, de tão bem feita que é.

  Isso se deve muito à grande habilidade do diretor de traduzir emoções em imagens. Assim, quando Colin recebe notícia pelo telefone de que Cloe estava sentindo mal, as paredes ao seu redor começam, literalmente, a se fechar; outro exemplo é ao percebermos que Nicolas (Omar Sy) não apenas sente que envelheceu oito anos em dez dias, mas literalmente envelhece, com direito a cabelos brancos e rugas. E é por isso que A Espuma dos Dias consegue ser tão bem sucedido ao transgredir a metalinguagem e colocar Colin como um dos escritores da história (nas filas que comentei mais acima), desesperado para escrever mais dela, mas impedido pela rotação caótica da mesma, que passa por diversas mãos em questão de segundos, naquela que é a melhor cena da obra.

  Com um elenco forte, A Espuma dos Dias é ainda mais eficiente. A bela Audrey Tautou nos conquista novamente com seu charme e doçura, investindo numa performance parecida com sua inesquecível atuação em O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (2001) para criar Cloe como uma criatura apaixonante e sensível. Romain Duris representa muito bem a transformação de Colin de bon-vivant charmoso (ressaltando sua doce insegurança) para pura carne sustentada por ossos destruídos pela depressão. Omar Sy repete o carisma de seu Driss no ótimo Intocáveis (2012) para criar o camarada fiel Nicolas. E o próprio Michel Gondry acerta numa performance excêntrica e divertida como o médico de Cloe.

  Representando um retorno à boa forma de Gondry depois do pavoroso Besouro Verde (2011), A Espuma dos Dias é uma experiência bizarra, alucinógena e insana que consegue nos abraçar no seu doce surrealismo apenas para depois nos esmagar no mais grotesco expressionismo, resultando num longa corajoso como poucos.
  

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