sexta-feira, 14 de junho de 2013



Crítica Segredos de Sangue (Stoker / 2013 / EUA, Reino Unido) dir. Park Chan-Wook

por Lucas Wagner

  Na filmografia do cineasta Park Chan-Wook o mal exerce um poder magnético extraordinário que suga os protagonistas para fora da pureza, engolfando-os num conforto que não pode ser encontrado senão nas trevas. Era assim para Oh Dae-Su, que em Oldboy passava de homem de família (mesmo com seus óbvios defeitos) para um fantasma guiado pelo sentimento de vingança, e também era assim para Park em Mr. Vingança, para quem a dor da morte da filha só podia ser anestesiada pela tortura dos responsáveis. Mais fascinante ainda é enxergar esses aspectos nas personagens femininas do diretor, já que nelas a sensibilidade se mescla com o profano de uma forma a gerar uma combinação libidinosa cheia de veneno, como podemos enxergar em Geum-ja, a protagonista de Lady Vingança (melhor trabalho do diretor), cujo mergulho nas trevas foi mais profundo do que esperava, ou ainda Tae-joo, que em Sede de Sangue era uma mulher para a qual o sexo e a violência tinha uma inegável ligação. Pois nesse Segredos de Sangue, primeiro filme fora da Coréia do Sul realizado pelo diretor, mais uma vez o profano massacra a pureza, desta vez no corpo de uma adolescente que, assim como Tae-joo, encontra no sexo e na violência uma liberdade para seus demônios internos mais assustadores.

  A adolescente é India Stoker (Mia Wasikowska), que acaba de perder o pai (que era também seu melhor amigo) em um acidente automobilístico. Depois da tragédia, seu misterioso tio, Charlie (Matthew Goode), vai passar um tempo morando com ela e sua mãe, Evelyn (Nicole Kidman). O que decorre acaba sendo uma estranha ligação entre tio e sobrinha que pode gerar diversas consequências obscuras.

  Assumindo um tom sombrio desde os momentos iniciais, Segredos de Sangue parece até um de filme de terror, já que a própria casa em que vive India parece uma mansão mal-assombrada que esconde em cada canto algum mistério. Nesse sentido, acabamos vendo uma representação do interior da protagonista, que parece, para si mesma, um mistério sombrio. Moça taciturna, tímida e que odeia ser tocada, India parece pouco se interessar pelos outros, preferindo se focar no barulho de uma casca de ovo se quebrando do que numa conversa (e assim, a sonoplastia do longa é impecável ao ressaltar diversos sons ambientais que se impõem ao som das pessoas), e encontrando conforto, aparentemente, no lugar mais obscuro de sua casa. Reconhecendo o potencial sociopático da garota (como Harry com Dexter no seriado Dexter), seu pai parecia tentar controlar seus impulsos agressivos através da atividade da caça (“às vezes, um mau menor pode prevenir algo muito pior”, é algo que ele dizia), empalhando os diversos animais atingidos pela filha. Mas esse controle se perde com sua morte, e a figura do tio se torna ao mesmo tempo um objeto de fascínio e de repulsa, por ela reconhecer, mesmo que inconscientemente, os perigos que essa pessoa, ou o que ele representa, se mostra para ela, ou seja, uma completa liberação de fantasias perversas que ela mantinha encaixotada dentro de si. O simbolismo da chave que ela carrega é, nessa perspectiva, digno de aplausos.

  Toda essência do longa se baseia no desabrochar de India para sua violência e sexualidade inerentes, e assim, Chan-Wook realiza um trabalho impecável numa direção extremamente complexa e repleta de simbolismos que ajudam a estabelecer a luta interna da protagonista. Certos enquadramentos e modos de filmar do diretor assumem uma significação profunda, como aquele em que India está tocando piano e Charlie intervém, e o que vemos é apenas a figura de India enquanto Charlie está coberto pela tampa do instrumento e assim vemos no lugar dele o reflexo da garota na tampa polida; ou ainda, quando a protagonista se encontra em um gira-gira e acompanhamos seus movimentos, que imediatamente assumem um aspecto fantasmagórico. Diversos raccords criados pelo cineasta ainda contribuem para a criação de significados, como aquele em que o fechar do freezer com “algo dentro” se transforma no fechar da caixa de lápis da menina; ainda, aqui existe constantemente o jogo de poder representado por quem fica num plano superior à outra pessoa. Assim como em Lady Vingança o preto e o vermelho-sangue pareciam cobrir a pureza representada pela brancura da neve, aqui uma aranha se torna um símbolo para a dialética da maldade e do sexo de Chan-Wook: India deixa que o inseto suba por suas pernas calmamente, como se não a incomodasse e, em um sonho, essa aranha entra na sua saia, no meio de suas pernas. O cinto que era de seu pai passa a ser usado por seu tio, e se torna uma representação de uma arma e de um pênis. O quarto de sua mãe não é todo vermelho-sangue por acaso, mas encontra sentido na imagem de sensualidade que ela assume para a filha. Ainda, os sapatos que a protagonista recebe de presente desde pequena tem um código de cores todo especial: branco, preto e branco de novo; e não é a toa que a cor básica do figurino de Charlie seja um marrom escuro avermelhado, como que numa mistura do preto (as trevas) e o vermelho (o sexo), e que os saltos (sapatos de mulher adulta) que India usa no final tenham essa mesma cor e, no solado, seja completamente vermelho. E nem precisaria comentar a significação da flor branca que recebe um jorro de sangue em certo momento.

  Pois não é senão na profunda descoberta e aceitação de sua própria sexualidade perversa que India mergulha, e encontra prazer orgástico em momentos chave, como quando, depois de um ato de violência, se masturba chorando e gemendo ao mesmo tempo, ou ainda quando seu tio começa a tocar piano com ela, e os cortes e planos de Chan-Wook em determinados movimentos da garota não transmitem outra ideia que não a do gozo. Nesse mesmo momento ainda, é fascinante que ela esteja tocando uma música melancólica e sensível e Charlie intervenha com tons fortes e opressores, e que ainda tenhamos vários vislumbres da parte das teclas do piano que se encontra dentro do instrumento e cujo preto absoluto encontra contraponto na brancura da parte externa dessas. O interesse da garota no desenrolar da relação entre Charlie e Evelyn ainda explora a relação desta com a mãe: ao vê-la se entregando ao tio, e menina tenta imitá-la, inserindo nessa empreitada um elemento agressivo ao morder violentamente a boca do menino com quem se envolve. O relacionamento dela com sua mãe vem carregado de uma grande tensão, e há vários motivos para isso; um deles pode ser ciúmes da mãe por ter tido seu pai, e assim busca imitá-la ao mesmo tempo em que tenta agredi-la. Nesse sentido, o fato de India procurar a mãe em certo momento em que se sente vulnerável e demonstrar carinho é extremamente revelador.

  O fato é que, no fundo, India se torna um mosaico de identidades, que acabam por compor a dela própria, como fica representado no seu figurino: cinto do pai, saia da mãe, sapatos do tio. Assim, seus atos no clímax do longa não vão contra a lógica de mergulho ao profano tão presente nos trabalhos de Chan-Wook. Muito pelo contrário: ao “eliminar certo elemento no final” (quem viu o filme entenderá mais claramente), India não busca desconectar-se de suas trevas, agora não mais escondidas, mas sim tomá-las para si, abraçá-las sem reservas e incorporá-las totalmente à sua identidade, sem precisar de uma ponte de ligação para isso. Se pensarmos bem, é curioso que Segredos de Sangue assuma uma posição até levemente diferente dentro da filmografia do diretor, mesmo não contradizendo a lógica de seus trabalhos anteriores, como já comentei: se Oldboy, Lady Vingança, Sede de Sangue, etc, traziam certa moralidade (que nunca vinha exacerbada, mas sim como ironia dramática), este novo trabalho do diretor não enxerga o mergulho no profano como algo ruim, torturante, mas como algo libertador, e repleto de uma sensação de prazer orgástico que não poderia existir senão pela entrega total de India ao seus demônios interiores.

  Todo o processo de construção do filme é dialético ao, na montagem, trazer diversas cenas que podem parecer desconexas (as imagens de India e o pai caçando; a mãe aparecendo num flash num sonho; etc), mas que vem em momentos específicos para ajudar a construir toda a significação essencial que discorri nos parágrafos anteriores. E ainda, o elenco contribui com força para o sucesso do trabalho de Park Chan-Wook: Mia Wasikowska corporifica India em seu aspecto fantasmagórico e no prazer que podemos entrever em suas feições em vários momentos, ao mesmo tempo em que a atriz é competente ao mostrar o medo que a menina muitas vezes sente de si mesma; Matthew Goode interpreta Charlie de maneira ambígua, elegante e sempre misteriosa, deixando-o ainda mais complexo por optar por optar, em um flashback, por uma estratégia de atuação completamente diferente da que vinha adotando; já Nicole Kidman desenvolve com perfeição absoluta todas as infinitamente complexas camadas de Evelyn, que tanto exercem influência na filha. Para completar, a trilha sonora do genial Clint Mansell confere um tom ainda mais macabro e sombrio à atmosfera do longa, optando por tons dissonantes em momentos-chave, enquanto a já comentada sonoplastia constantemente influencia positivamente nas interpretações do longa, transmitindo determinadas percepções subjetivas de India (o barulho insuportável das conversas quando ela entra na sala de sua casa, depois do enterro do pai; os sons de uma transa – imaginários – quando ela vai guardar o sorvete no freezer; etc).

  Constantemente flertando com o surrealismo (como em seus outros trabalhos), Park Chan-Wook entrega um filme de caráter inegavelmente erótico, cuja complexidade só pode ser totalmente desvendada com várias visitas ao longa. Mais uma vez, na impecável filmografia do cineasta, somos atraídos para o obscuro e para o profano, como seus atormentados personagens, e nos sentimos magnetizados por isso, ao mesmo tempo em que assustados.

3 comentários:

  1. Caraca, adorei sua análise do filme! Também gostei muito dele. A fotografia é realmente de encher os olhos e a trama é muito boa.

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    1. Muito obg!
      O filme é de fato excelente, e Park Chan-Wook é um dos melhores cineastas da atualidade. Agora vamos esperar ansiosos pelo próximo filme dele :)

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  2. Excelente analise. Muito boa. Filme é fantástico.

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