domingo, 3 de março de 2013



Crítica filme “Upside Down” (Upside Down / 2013 / França, Canadá) dir. Juan Solanas

por Lucas Wagner

  Algumas histórias batidas usadas pelo Cinema, Literatura e Dramaturgia podem ficar interessantes de novo dependendo da “roupagem” que estiverem usando. Se “Romeu e Julieta” já é uma história chatinha e clichê, de amor impossível e idealista, o diretor e roteirista Juan Solanas conseguiu transformar essa fórmula sheakesperiana em algo interessante e criativo, cheio de ideias que nos fazem querer sempre pensar mais sobre o funcionamento do fascinante universo que criou. E, é claro, há todo o romance apaixonado e utópico digno dos trágicos amantes de Sheakespeare.
                                             
  Em uma realidade alternativa, desde o início do Universo, dois planetas que orbitam o mesmo sol, só que possuem gravidades opostas, fundem uma parte de si com o outro, criando uma espécie de “mundo duplo”, com a parte de cima e a parte de baixo. Há leis físicas que são particulares de cada um desses mundos e definem, em parte, o modo de vida e organização das civilizações opostas. Uma dessas leis físicas mostra que cada um desses mundos possui uma gravidade própria, que “puxa” o indivíduo de determinado mundo para o seu mundo de origem. Assim, se alguém “de cima” estiver “em baixo”, sem obstáculo algum (como uma pedra, por exemplo) vai “cair para cima”. E, se forçar a barra para algum objeto ou pessoa pertencente à um mundo para ficar no mundo oposto, esse vai, em menos de uma hora, entrar em combustão.

  Enfim, Adam (Jim Sturgess) pertence ao “mundo de baixo” e, quando moleque, conhece Eden (Kirsten Dunst), habitante do “mundo de cima”. Os dois se apaixonam loucamente e vivem um romance “diferente” até a sua adolescência, encontrando modos pouco confortáveis de se manterem perto um do outro, num ponto de onde as atmosferas dos dois mundos se encontram. Um evento trágico acontece que os separam ainda mais, levando Adam, 10 anos depois, a perseguir uma possibilidade de reencontrar Eden, algo que fará mesmo que desafiando as próprias leis físicas daquele universo bizarro. O maior problema, no entanto, é que Edith perdeu a memória no evento que os separou.

  O mais fascinante sobre o filme é o modo como Solanas vai desenvolvendo a própria lógica daquela mitologia, desde os créditos iniciais, que surgem dinâmicos com uma animação que pode ser bem enquadrada sob o conceito de psicodelia (e o recurso preguiçoso da narração em off, mesmo não sendo 100% necessária no longa, é essencial em algumas partes, como na introdução). Não satisfeito em apenas criar conceitos interessantes, Solanas aprofunda-se na exploração desses conceitos, como na criação do ponto onde as atmosferas dos mundos se encontram e Adam vai catar frutos que caem do mundo de cima; o fato de, nesses frutos, conter uma substância que, aparentemente, encontra um equilíbrio entre as gravidades, conseguindo, mesmo ser do mundo de cima, se manter no de baixo; a invenção de Adam do creme “anti-envelhecimento”, muito criativo e divertido; e até mesmo em detalhes pequenos mas cheios de inventividade, como a bebida “invertida” que os personagens bebem no “Café dos Mundos”, os objetos metálicos do mundo de cima que o pessoal do mundo de baixo usa para fins de aquecimento, ou quando Adam urina no mundo oposto ao seu e o líquido “cai para cima”.

  Como se não bastasse, Solanas demonstra ser um bom conhecedor do que enriquece, de fato, uma ficção científica e discute conceitos sociais que se aplicam àquele Universo e retroagem na nossa própria realidade. O caso é que o diretor/roteirista entra nas discussões marxistas de classes sociais e coloca o mundo de cima como pertencente às classes mais altas e o de baixo como às classes mais baixas. A segregação é tão grande que os habitantes dos mundos opostos não podem possuir qualquer contato mais duradouro sem correr risco de vida, já que é proibido por lei a própria relação de amizade/amor entre eles (o que, é claro, influência ainda mais na impossibilidade do amor entre Eden e Adam). As pessoas do mundo de baixo não podem possuir qualquer possibilidade de crescimento social, já que, até mesmo àqueles possíveis gênios (como Adam com suas invenções), só é permitido o mínimo possível de contato com o mundo de cima, que tomam dos “de baixo” o que precisam, lhes dando pouco crédito depois, já que eles são “ralé”, de periferia. A coisa toda se torna ainda mais complexa quando percebemos que no mundo de cima ainda existe a classe média e sua indeterminação de identidade (algo que discuti extensivamente na minha crítica do maravilhoso O Som ao Redor), sendo considerada quase próxima do mundo de baixo, algo que fica evidenciado no longo escritório onde coexistem trabalhadores de cima e de baixo, como se fosse o fundo do poço para os de cima, e o ápice da vida social para os de baixo. Podemos até mesmo transcender tudo o que Solanas propõe e imaginarmos a contradição existente no fato de os “de cima” se chamarem assim, já que, objetivamente, os que estão em baixo estão em cima na perspectiva desses. Então, na verdade, o oposto sempre está acima! Então, é na verdade uma ordem social imposta pelas classes mais altas que forçam uma visão inferiorizada para as denominadas classes mais baixas, exatamente como acontece na realidade, já que toda a noção de classes sociais é socialmente construída nas contradições inerentes ao processo da História! Genial!!! E fica simplesmente impossível não apreciar a inteligência de Solanas ao colocar o mundo de cima pegando formas de energia mais barata do mundo de baixo para vender para esses mesmos com um preço absurdo. Lembra alguma coisa?

  Visualmente também Upside Down é simplesmente de tirar o fôlego! Com uma fotografia belíssima e uma direção de arte impecável, Solanas consegue balancear uma atmosfera de ficção científica e fábula para seu filme, ressaltando a linha tênue entre a ciência e fantasia do longa. A direção de arte é eficientíssima em ressaltar a grandiosidade tecnológica do mundo de cima com a decadência do de baixo, se tornando ainda mais fascinante na construção dos ambientes da classe média do mundo de cima ou, principalmente, na criação do “Café dos Mundos”, bar que tem o teto como o chão do mundo oposto; o fascinante sobre esse bar é que, mesmo interessante como conceito em si mesmo, funciona como uma forma de desenvolver mais a personagem de Eden, já que transmite, em seu ambiente antiquado, decadente mas ainda dono de uma rústica beleza, toda uma nostalgia melancólica de um tempo e uma amor que agora não passam de uma névoa em sua cabeça. É bem verdade, no entanto, que Solanas exagera no uso de flares (reflexos luminosos), chegando a incomodar um pouco, embora, aqui e ali, o uso seja adequado para um tom maior de romantismo. No quesito da trilha sonora o diretor ainda erra pelo uso constante, embora esse equívoco possa ser parcialmente perdoado já que a trilha composta por Benoít Charest é belíssima, funcionando com tons fabulescos/românticos e outros mais intensos e modernos.

   Como filme de romance, Upside Down não é lá um Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças ou Antes do Amanhecer/Antes do Pôr-do-Sol, mas funciona bem, com toda a dose de utopia que devemos aceitar de um amor à primeira vista que dura a vida toda. Para isso, as atuações de Sturgess e Dunst funcionam para nos aproximar daqueles indivíduos e nos importarmos com eles, torcendo pelo sucesso de seu relacionamento. Jim Sturgess é um ator que, assim como John C. Reilly e Ron Perlman, consegue deixar interessante qualquer personagem que interpreta, já que é dedicado e cheio de energia, conseguindo conferir intensidade e tridimensionalidade à qualquer papel, tornando palpáveis os dilemas de seus personagens (lembro bem da intensidade brutal de sua atuação em A Marca da Vingança, cujo papel que interpretava seria muito infantil sem a forte atuação dele), e assim, transforma Adam num indivíduo romântico e inocente, e, o que é mais importante, consegue nos fazer importar com seu amor sem limites por Eden. Já Kirsten Dunst transforma Eden numa figura cuja própria tragicidade melancólica da falta de memória, da nostalgia constante e sem forma, junto com a beleza física, já a deixam apaixonante, nos deixando com pena e carinho pela personagem, compartilhando da dor que um mero evento, por menos importante que pareça, pode provocar nela. Infelizmente, o roteiro de Solanas não é eficiente no desenvolvimento de Eden como é no de Adam, e lhe dá muito menos atenção, o que impede um pouco que fiquemos mais ligados à personagem como deveríamos.

  Além dos problemas que discuti acima, Upside Down possui alguns mais graves que o impede de se tornar uma obra-prima. Muito disso se refere, principalmente, às formas tolas que Solanas encontra de resolver muitos conflitos que cria, como a resolução da falta de memória de Eden ou de toda a história da impossibilidade física do casal ficar junto. Aliás, chega a ser decepcionante que o diretor, tão ambicioso, force um final muito artificial, forçando a barra para acabar tudo feliz.

  Apesar disso, a questão é que Juan Solanas conseguiu criar um longa admirável e bonito, criativo e inteligente, que ainda consegue nos fazer importar com o casal protagonista, transformando, assim, Upside Down em uma experiência emocionalmente e intelectualmente estimulante.

Nota: 8.8 / 10.0

Nenhum comentário:

Postar um comentário