segunda-feira, 11 de março de 2013



Crítica filme “O Voo” (Flight / 2012 / EUA) dir. Robert Zemeckis
por Lucas Wagner

  Robert Zemeckis passou cerca de uma década envolvido apenas com animações no estilo de performance capture, criando assim O Expresso Polar, A Lenda de Beowulf e Os Fantasmas de Scrooge. Embora os dois primeiros sejam bastante competentes, e o último seja deplorável, todos foram péssimos no quesito bilheteria, o que fez com que o cineasta voltasse ao ramo dos filmes em live-action (com atores de carne e osso). E O Voo é o primeiro longa de Zemeckis que marca essa volta e, mais do que isso, esse filme é talvez o mais pesado na carreira de um cineasta mais acostumado a trabalhos mais leves como ele (embora seu divertidíssimo A Morte Lhe Cai Bem tenha um humor negro bem acentuado), que aqui lida com palavrões fortes e um tema polêmico e pesado, sem nunca desviar o olhar dos aspectos mais sujos do mundo com que está lidando. No entanto, se O Voo possui uma temática complexa e poderia ser um puta estudo de personagem, acaba sendo um filme bem menor, já que o roteirista John Gatins demonstra imensa inexperiência e acaba tratando tudo com grande unidimensionalidade.  

  Whip Whitaker (Denzel Washington) é um piloto respeitado que está nessa profissão há bastante tempo. Só que ele possui um grave problema com drogas e álcool, demonstrando imensa irresponsabilidade no que se refere ao balanceamento das obrigações com a loucura de sua vida. Mas tudo parece ir bem até que ele, com sua habilidade de piloto, salva 96 das 102 a bordo do avião em um acidente gravíssimo...só que ele fez isso drogado e bêbado. Assim, começa o processo que pode definir se ele será lembrado como herói que salvou 96 pessoas, ou como o assassino que matou 4.

  Como estudo de personagem O Voo é uma grande bagunça incompetente. Nunca realmente compreendemos Whip, nem mesmo de forma tácita. Quem é esse homem? Quais são as variáveis que controlam seu comportamento (fora o alcoolismo)? Gatins transforma essa figura tão ambivalente e potencialmente complexa num ser unidimensional, que parece ser definido pura e simplesmente pelo seu alcoolismo. E, mesmo dentro desse quesito, o roteiro peca pois o personagem é tão mal desenvolvido que chega a dar pena (do roteiro, não do personagem). No início, enxergamos Whip como um cara louco só que ainda assim habilidoso que, embora tenha um estilo de vida autodestrutivo, isso não parece realmente se colocar no seu caminho. Depois do acidente, se sente culpado, assim se livrando de qualquer indício de álcool ou outras drogas em sua vida. Ainda assim, se parece estar resolvido, logo se joga nesse mundo de novo de um modo brusco e mal desenvolvido, iniciando um processo de altos e baixos em sua vida que é comum para um alcoólatra, mas que se torna uma bagunça e não complexidade de personagem, pois o roteirista o transforma num enorme enigma para o espectador. Por quê, por exemplo, Whip tem a mania de sempre ir contra o advogado Hugh Lang (Don Cheadle), que está engajado em ajudá-lo? Um personagem ser complexo e contraditório é fascinante, mas para isso, mais do que tudo, precisa ser desenvolvido com propriedade, para que possamos compreendê-lo, e não servirmos apenas como espectadores da bagunça que é sua vida.

  Também, a incompetência de Gatins fica evidente no que se refere ao relacionamento de Whip com sua ex-mulher e seu filho. Sabemos que esse relacionamento é importante para compreendermos mais sobre ele, só que Gatins pouco dedica ao desenvolvimento dessa relação, deixando mais para tratar disso nas etapas finais do filme, de um modo que soa desesperado, como se tivesse esquecido de trabalhar aquilo e, ao invés de reestruturar o roteiro, preferiu “acochambrar”. Gatins ainda dedica um tempo enorme ao relacionamento de Whip com a viciada Nicole (Kelly Reilly), que se inicia do nada e, para variar, é extremamente mal trabalhado, servindo apenas, no fim das contas, como um recurso usado pelo roteirista para deixar mais evidente a mudança de Whip, e que acaba não servindo nem para isso, já que Gatins descarta a personagem a partir de certo momento da projeção, não concluindo todo o processo que a personagem parecia ter iniciado e também não fazendo jus a todo o tempo dedicado à “desenvolvê-la” no primeiro ato, nos deixando com a seguinte dúvida: afinal, para quê essa personagem existe mesmo? E o que dizer do fato de Gatins ser tão inexperiente a ponto de criar um número excessivo de cenas inúteis, que não servem nem para mover a trama, como aquela do diálogo de Whip, Nicole e um paciente com câncer terminal numa escada? Fora que ainda tem toda a questão religiosa moralista que Gatins tenta enfiar goela abaixo no espectador, o que, sinceramente, foi o que me causou mais nojo.

  Mas se ainda nos importamos com Whip e torcemos por ele, a ponto de a cena final ganhar força e poesia, é porque Denzel Washington é um ator fascinante, sem duvida um dos melhores da atualidade. Washington luta com unhas e dentes para transformar esse O Voo em um estudo de personagem, se esforçando para servir como um guia para o espectador para todas as tormentas internas dele. O sofrimento e angústia dele acerca do seu alcoolismo são palpáveis, assim como sua dificuldade em aceitar sua condição. Sua culpa e fragilidade ainda são reforçados brilhantemente pelo ator a partir de detalhes específicos: prestem atenção em como ele bate, nervoso, a bengala no chão em certos momentos, ou, quando conversa com seu ex-co-piloto e treme a mão esquerda, nervoso e exposto. Washington ainda confere força extra ao seu personagem até mesmo no sentimental discurso que faz no terceiro ato. Assim, Whip quase se torna uma figura complexa e fascinante, mas, assim como Day-Lewis foi castrado de transformar Lincoln num indivíduo realmente tridimensional e complexo, Washington também sofre por incompetência de terceiros.

  No resto do elenco, ainda temos um Don Cheadle e um Bruce Greenwood completamente no piloto automático (não, esse termo não foi uma brincadeira de propósito), um John Goodman extremamente divertido e brincalhão, e uma Kelly Reilly maravilhosamente linda (quem me conhece sabe que tenho um fraco enorme por ruivas, ainda mais se tiver olhos claros) que quase consegue transformar Nicole numa personagem tridimensional, já que a interpreta com uma melancolia que surge doce e nostálgica, automaticamente nos levando a nos preocupar com ela, embora, no fundo, seja uma péssima personagem, por culpa do roteiro.

  Mais contido do que de costume, Zemeckis entrega uma direção mais focada na performance de Washington do que nas brincadeiras técnicas que tanto adora fazer (lembrem-se de que esse é o diretor de Contato, Forrest Gump, De Volta Para o Futuro, etc). Mas ainda assim, o diretor confere um ritmo invejável à narrativa, nunca deixando que esta se torne enfadonha, e ainda entrega um momento de puro brilhantismo: a sequência do acidente. Com planos bem fechados (gerando claustrofobia/angústia), inclinados (sugerindo instabilidade), câmera na mão (instabilidade de novo) e cortes frenéticos (mas nunca frenéticos demais, afinal, estamos falando de um diretor competente, e não de Michael Bay), o cineasta consegue alcançar uma tensão impecável e insuportável, tornando esta a sequência mais memorável do longa. E ainda é interessante ver um cineasta como Zemeckis dando uma de Scorsese quando, por exemplo, um personagem cheira uma carreira de cocaína, e é filmado em um close alucinado que lembra diretamente aqueles vistos no inesquecível Os Bons Companheiros, de Scorsese. O único problema mais identificável em sua direção é quando sente a necessidade de incluir uma trilha melosa na bela cena final, como se ainda precisasse de algo a mais para nos emocionarmos com ela.

  Acabando sendo mais moralista do que parece achar que é, O Voo é um longa regular que, devido ao roteiro porco e inexperiente de Gatins joga fora a oportunidade de ser um grande filme, não ficando, assim, do lado dos grandes trabalhos de Zemeckis, como Contato (um dos melhores filmes que já assisti), De Volta Para o Futuro ou Náufrago, estando mais para algo dispensável como Forrest Gump, não chegando, no entanto, a ser algo terrível como seus Revelação ou Os Fantasmas de Scrooge. Mas gostei desse lado mais “rock n’ roll” de Zemeckis, e espero poder vê-lo de novo, em algum filme melhor.

Nota: 5.7 / 10.0

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