sexta-feira, 22 de junho de 2012


  


Resenha filme "God Bless America" (God Bless America / 2012 / EUA) dir. Bobcat Goldthwait



por Lucas Wagner

  Um professor que me deu aula de sociologia disse certa vez que "o mundo vai acabar, mas vai acabar é pela cultura". Cada dia que passa essas palavras parecem mais verdadeiras. Vivemos em uma época podre, governada por comportamentos deploráveis e clara distorção da razão, em que o que parece mais importar é ganhar dinheiro e se alimentar da inteligência de seres humanos através de músicas medíocres, programas de Tv nojentos, preconceito e um claro mal entendendimento do que venha a ser "liberdade de expressão". Assim, esse pouco conhecido God Bless America, do diretor Bobcat Goldthwait, funciona quase do modo como o inesquecível Clube da Luta de David Fincher funcionou em 1999, ou seja, como um espelho de uma sociedade, de uma geração deprimente, ridícula, que busca se justificar de formas tenebrosas enquanto apenas confirma sua inegável estúpidez.

  O longa, também escrito por Goldthwait, conta a história de Frank (Joel Murray), um sujeito cansado da própria vida, divorciado, com um emprego que detesta, uma filhinha que tem tudo para se tornar uma imensa vadia, etc. Ele observa com tristeza e desgosto as desgraças da sociedade norte-americana, até que um dia descobre ter um tumor terminal no cérebro. Tendo primeiramente pensamentos suicidas, ele os descarta e se junta à uma garota de 16 anos, Roxy (Tara Lynne Barr), em uma cruzada sangrenta buscando "limpar" pelo menos um pouco da "América".

  God Bless America já merece respeito por ter uma trama como essa. Correndo os mesmos riscos que obras como Laranja Mecânica, Assassinos Por Natureza, ou o já citado Clube da Luta correram por tratar de temas pesados envolvidos em uma trama que poderia facilmente ser considerada moralmente repugnante, God Bless America encara sem reservas e sem medo algum a desgraça que é a cultura norte-americana atual, que domina o mundo com seu lixo (sim, apesar de gostar de muitos filmes e cineastas norte-americanos, acho que muito do vem de lá seja porcaria) e envolve os seus cidadãos em uma espécie de sonambolismo intelectual que os deixa cegos diante de suas próprias atitudes. Essa coragem do longa fica clara em diversos momentos, como ao criticar abertamente os preconceitos, atribuindo-os muito a conservadores reliogiosos, ou ao criticar o nojento seriado Glee abertamente ("Vc está aprendendo a atirar rápido hein" "Eu tenho um bom professor. Além de que eu imagino estar atirando no elenco de Glee"), ou ainda destruir o imbecil programa American Idols através de um outro (fictício) cujo nome não esconde seus objetivos: American Superstarz.

  O filme não critica sem fundamento essas questões, mas sempre busca embasar seus argumentos, como quando Roxy revela sua vontade de atirar no elenco de Glee e Frank pergunta qual é o problema do seriado, recebendo como resposta que este "estereotipa homossexuais". Então, vemos que Goldthwait não está atirando no escuro aqui, como muitas pessoas fazem em seu cotidiano, criticando situações e pessoas sem qualquer argumento. Ele não simplesmente espalha seu ódio contra a modernidade como um louco. Aliás, as discussões que vemos aqui contidas nos diálogos dos personagens são os pontos mais altos do longa. Como por exemplo, temos aquela que é minha cena favorita, em que um colega de trabalho de Frank o indaga porque não gosta de American Superstarz,o que gera uma discussão que, ao mesmo tempo em que contém argumentos impecáveis e valiosos por Frank, serve como espelho da ignorância e estupidez da sociedade atual na pele do colega dele, que se restringe a rir e dizer que o programa é "divertido" (argumento de imbecil, como quem defendeTransformers como sendo um filme para "desligar a cabeça) ao invés de realmente pensar no que consome. Ele até mesmo chega a dizer que Frank é contra a liberdade de expressão, recebendo deste como resposta: "eu defenderia a liberdade de expressão se eu achasse que ela está ameaçada; eu defenderia a liberdade de expressar e querer mostrar piadas racistas e de estupros, de mau gosto, sob o pretexto de ser ´ousado´, mas isso não é ser ousado, é apenas o que vende. Eles não poderiam abusar mais da baixaria comercial, porque essa é a geração do ´não, você não pode dizer isso´, onde um cometário tem mais peso do que a verdade. Ninguém mais tem vergonha, e nós deveríamos celebrar isso?!". Fascinante...fascinante mesmo.

  É impossível não encarar dolorosas verdades e não sentir vergonha do mundo em que vivemos assistindo esse filme. É tudo tão podre, as pessoas são tão cegas que parece até mesmo comédia, como ao notarmos que os argumentos mais niilistas e pessimistas acerca das pessoas são geralmente os corretos. A mídia não possui qualquer regulamento, não possui pudor, e assim vemos na televisão banalidades que chegam ao extremo do mau gosto, como quando vi esses dias um programa que elegia as dez mulheres com melhores peitos e bundas na Tv, num canal aberto (!!!!), ou quando ouvimos tele jornais sensasionalistas em que mediocridades que se dizem jornalistas alegam "como o mundo está ruim" pela falta de Deus, ou ainda pelos falsos discursos anti-homofobia que essas desgraças de novelas da Globo tentam transmitir enquanto na verdade apenas vendem uma imagem estereotipada e tosca dos homossexuais. E o que dizer dessas músicas escrotas que, por incrível que pareça, pessoas escutam, como essa desgraça chamada funk ou sertanejo, em músicas que possuem letras como "Ai se eu te pego", ou ainda "Eu quero tchu, eu quero tcha, eu quero tchu tcha..."; e quando as pessoas são criticadas por ouvir essas músicas, dão o mesmo argumento que o homem do filme que gosta de American Superstarz: é divertido. Ou seja, foda-se se na verdade a sociedade está apenas destruindo sua capacidade de pensar, te transformando em um vegetal inútil. O filme, mesmo dentro de sua lógica e universo, obriga o espectador a pensar na sua própria realidade, e a sentir nojo dela.

  Goldthwait estuda essa sociedade através do humor, do humor negro para ser mais preciso. É inegável que um espectador inteligente vai rir das mortes de medíocridades vistas aqui, sentindo até mesmo um prazer mórbido ao observá-las, como quando Frank explode a cabeça de um patricinha mimada que dizia "odiar os pais", porque esses deram a ela o carro errado de aniversário, ou ainda quando os protagonistas atiram loucamente de dentro de um carro em um grupo de religiosos conservadores anti-semitas e homofóbicos, chegando no ápice quando esses atropelam cruelmente o pastor que comandava o grupo, momento em que o espectador abre um inegável e sincero sorriso. Goldthwait ainda critica a forma como a mídia parece pouco se interessar pela onda de assassinatos cometidos pelos protagonistas, sempre achando "soluções fáceis" para essas situações, como ao dizer que os religiosos conservadores filhos da puta discutidos um pouco mais acima, foram mortos por ateus. A falta de interesse da mídia se dá principalmente em relação a falta de material de vídeo dos assassinatos pois, como diz Frank, você não presta atenção em nada que não esteja gravado. No entanto, o cineasta ainda se entrega ao humor negro de formas menos críticas, mas não menos eficientes, como no momentos em que Frank persegue desajeitadamente uma vítima sua, enquanto essa grita estericamente, ou ainda quando este prepara erroneamente um carro para a explosão e sai, como em um filme de ação, sem perceber que não tinha feito o serviço direito. Confesso, no entanto, que achei o bebê explodindo ofensivo, e olha que eu geralmente aprecio o humor negro sem reservas.

  Goldthwait, além do roteiro quase impecável, tem uma excelente direção, conseguindo manejar como um mestre as discussões críticas do longa, ao mesmo tempo que mantém o bom humor na maior parte do tempo. Além disso, o cineasta acerta ao incluir referências a outros longas de maneira orgânica, como quando reverencia Bonnie e Clyde (uma referência óbvia para um filme como esse, obviedade esta contornada belamente pelo diretor ao ter um personagem reconhecendo a inevitabilidade da comparação), Lolita (mesmo que o longa critique Nabokov em certo momento), Taxi-Driver, etc. Outra coisa ainda, Goldthwait é extremamente feliz na escolha da trilha incidental que guia o filme que, além de canções belíssimas, se inserem adequadamente na narrativa, contribuindo para que o cineasta conte sua história. A trilha aliás, tanto a original quanto a incidental, são compostas de músicas mais calmas, por vezes clássicas e muitas vezes transcedentais, ressaltando a maneira singular como Frank e Roxy se destacam do mundo em que vivem. A relação dos dois, aliás, é muito bem desenvolvida por Goldthwait, que os leva a uma relação de paternalidade e amizade, sempre contendo um senso de liberdade e alegria, coloridos por uma leve tensão sexual. No entanto, não gostei que o cineasta tenha incluído determinada briga dos dois no terceiro ato, que soa falsa e clichê, aderindo a um objetivo infame de tentar comover mais o espectador.

  Joel Murray e Tara Lynne Barr estão simplesmente perfeitos em seus papéis. Murray confere tridimensionalidade a Frank, tranformando-o em quase um zumbi ambulante, cansado de sua ridícula vida e so seu ridículo mundo, que encontra libertação e prazer quase martírico nos seus atos criminosos. Já Tara Lynne Barr se revela um tremendo espetáculo: linda, a garota possui um carisma grandioso e transforma Roxy em uma personagem complexa e interessante que possui grande inteligência e opniões fortes, mas se mostra como uma mini-psicopata em seu ódio a sociedade e suas falsidades ("Devíamos matar todos aqueles que usam camisas com o símbolo do anarquismo" diz ela em certo momento). Aliás, é fascinante que ela, mesmo toda revolucionária, ainda às vezes se comporte como uma típica adolescente, como pela dimensão do sofrimento que acarreta ao pensar que Frank a chama de feia. Lynne Barr ainda acerta ao basear sua interpretação naquela de Sue Lyon em Lolita de Stanley Kubrick.  Murray e Lynne Barr possuem ainda uma química impecável que é vital ao filme.

  God Bless America, mesmo com alguns defeitos, é um longa extraordinário e ousado, um dos melhores do ano, que deveria ser mais conhecido. Ele nem previsão de estréia tem aqui no Brasil, e teve péssima bilheteria nos EUA (o que parece ser revelador, não?). Mas eu indico, ou melhor, insisto que assistam o filme, já que não se arrependerão e ainda ficaram completamente empolgados para discutir o mundo atual. Eu só queria que Frank e Roxy viessem aqui no Brasil e desse jeito no funk e no sertanejo...

 Mas, enquanto isso não acontece, gostaria de dizer a Goldthwait: "you, sir, made my day".

3 comentários:

  1. Eu raramente faço comentários em qualquer tópico, uma vez que, normalmente seguem-se uma serie de comentários estúpidos e de cultura zero. Porém neste caso tive que abrir uma exceção, essa foi simplesmente uma das melhores coisas que eu já li em tempos. A maneira como você descreveu o filme foi de uma perfeição simplesmente impressionante. A maneira como foi tocado no assunto principal e demonstrado como isso nos afeta é da mais completa precisão. Meus parabéns pela sua maneira de pensar e sua pelo seu ótimo trabalho nesse artigo.

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  2. Assim como o Sleev falou acima, não sou de comentar, mas seu texto foi ótimo!
    Muito bem escrito e sintetizou de forma muito boa o filme, me ajudou também a ver coisas que deixei escapar.
    Filme muito inteligente, que me fez parar pra pensar um bocado na vida.
    Passo a ser um visitante do blog a partir de hoje, um abraço!

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  3. Opa, muito obrigado! Fico muito feliz que tenham gostado : )

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