sábado, 17 de maio de 2014


Análise:

Praia do Futuro (Praia do Futuro / 2014 / Brasil, Alemanha) dir. Karim Aïnouz

por Lucas Wagner

Criar uma forte interação com outra pessoa é algo extremamente complexo, já que passamos muita de nossas inseguranças, frustrações, anseios, sonhos para outro alguém com tantas confusões quanto nós mesmos. Visto que não raro não conseguimos nem descrever nossas angústias com clareza suficiente, exigir que outra pessoa seja capaz de compreender-nos realmente é muito frustrante. Às vezes há muito para ser dito, mas nem sempre esse “muito” cabe em palavras. Essa sensação de confusão intra e inter-pessoal, de sentimentos fortes guiando diversos indivíduos e moldando suas confusas vidas, deixando tudo em suspensão e a possibilidade de conforto parecendo uma fantasia juvenil permeia o tempo inteiro Praia do Futuro, novo filme de Karim Aïnouz.

Escrito por Aïnouz e Felipe Bragança, o longa conta a história do bombeiro Donato (Wagner Moura), que falha na tentativa de salvar um homem que se afoga na praia do futuro, em Fortaleza. Donato acaba criando, depois disso, um envolvimento amoroso com o piloto de motocross alemão Konrad (Clemens Schick), amigo do falecido, e eventualmente se muda para a Alemanha com este, deixando sua família em Fortaleza.

Acertando como Azul é a Cor Mais Quente e Hoje Eu Quero Voltar Sozinho ao não tratar a homossexualidade dos personagens como algo estranho e digno de discussões, mas sim como fruto de sentimentos mais que naturais, Praia do Futuro prefere começar focando em certo estranhamento que surge entre Konrad e Donato depois de sua primeira transa. No dia seguinte a uma noite de sexo intenso, os dois parecem não trocar muitas palavras, e há até um certo desconforto quando estão próximos, ao mesmo tempo em que parecem buscar a companhia um do outro, indo em lugares onde existe a possibilidade de um encontro.

Depois de todo esse silêncio, Aïnouz demonstra sua inteligência no belíssimo plano em que os dois estão perto do mar em período de maré alta, sob o som forte de ondas quebrando, e aí, em meio a todo esse barulho, Donato finalmente pergunta: “você vai ir embora amanhã?”. O início de uma paixão sempre trás o medo do outro sumir, um medo que se torna maior pelo anseio de que fazer uma pergunta que demonstre que você se importa com a presença dessa pessoa possa ser, de algum modo, inapropriado.

É notável que, posteriormente, Aïnouz invista em uma cena um tanto similar, mas passada em diferentes condições geográficas e psicológicas. Dessa vez na Alemanha, vemos Konrad e Donato diminutos em um plano aberto que, agora sem o barulho das ondas ou a agitação do mar, se passa em uma área aberta de um parque vazio, cercado por árvores mortas de um inverno que teima em continuar. No silêncio angustiante da cena parece que muito já foi dito entre o casal, mas esse muito na verdade se revela pouco, pois a maioria das angústias e sentimentos de inadequação gritados a plenos pulmões nunca foi externalizado. Donato quer ser compreendido por Konrad e quer que esse lhe dê um rumo, algo injusto ainda mais quando um rumo é apresentado e Donato, reconhecendo isso mas não conseguindo calar seus próprios anseios, não se contenta e tenta ferir os sentimentos do parceiro. Tal cena se torna ainda mais arrepiante quando uma tempestade de neve começa a cair sobre o casal, num belo simbolismo.

Karim Aïnouz, por sinal, continua sendo um colosso na hora de usar o ambiente e os estímulos sensoriais provindos desse como forma de dizer muito de forma econômica, poética e elegante, como eu comentei ao escrever sobre o seu O Abismo Prateado. Em Fortaleza, o mar fica em constante evidência, como uma lembrança de sua importância para Donato e também da tragédia do afogamento que redefiniu os rumos das vidas dos personagens. A segunda cena que se passa em uma boate é também fascinante já que, optando pelo abafamento do som cacofônico do ambiente e usando uma belíssima trilha de cordas, o diretor alcança a proeza de conferir uma atmosfera ao mesmo tempo melancólica e de liberdade, como se ao se entregarem à dança pura e irracional, Konrad e Donato finalmente alcançassem uma espécie de clareza na confusão de sua paixão, e não é a toa que a cor vermelha da boate (cor da paixão e do perigo) divida espaço com flashes de uma luz branca, clara.

Ao mesmo tempo em que alguns simbolismos visuais são mais óbvios (embora nem por isso menos eficazes), como Donato dentro de um aquário gigante em meio a um edifício cinzento, outras vezes os simbolismos são de uma sutileza apaixonante, como a árvore morta cujos galhos se erguem sobre o casal principal como uma enorme mão. Além disso, é interessante o minimalismo com que Aïnouz desenvolve os conflitos centrais de Donato, como o desconforto que passa a sentir na Alemanha, algo que o espectador percebe através de detalhes como o momento em que Donato sai de perto de Konrad e sua amiga e os observa através de uma porta de vidro (demonstrando seus sentimentos de inadequação e alienação), ou ainda através da fotografia do mar em preto e branco que fica pregada em cima da cama do casal, como que representando o passado como uma memória antiga e distante.

Aliás, a direção de arte acerta ao preencher os ambientes de Donato com detalhes que lembram o litoral, como estrelas-do-mar, conchas ou a citada fotografia, demonstrando o apego do protagonista ao passado em meio à nova vida na Alemanha, algo que se torna evidente também no seu trabalho no aquário ou ao estar sempre nadando em uma piscina pública, além de, é claro, os momentos intimistas do personagem ao fechar os olhos e dar um pequeno sorriso ao sentir o sol no rosto, num detalhe impecável da performance de Wagner Moura, que aqui investe numa atuação sutil e extremamente complexa cujo ápice é alcançado no momento em que a frieza da falta de expressão facial quando escuta notícias dolorosas é traída pela dor dos olhos vermelhos e molhados.

Praia do Futuro é, acima de tudo, um filme triste como a vida, onde os sentimentos que tanto nos angustiam em momento algum fazem sentido por completo, e a ambiguidade e força disso fica bem evidente na linda cena em que uma briga física tem, simultaneamente, sinais de um carinho intenso e irreprimível. Tanto Donato como Konrad ou Ayrton (irmão do protagonista) tem suas vidas constantemente moldadas um pelo outro, e a intensidade do que parecem sentir muitas vezes não podem ser expressas de forma satisfatória pela fala, o que torna compreensível o silêncio e dificuldade de expressão que fica evidente em Konrad durante a maior parte do tempo. Algumas poucas falas, no entanto, surgem como construções inacabadas de algo muito mais profundo, e a percepção de Ayrton ao dizer, fascinado, em certo momento, que “então isso aqui é o meio do mar?”, é uma prova de um mundo de idéias e dores, algo que vale também para a fala de Donato ao discutir os prejuízos do salitre infiltrando em edifícios: “não dá para construir nada na praia do futuro”. Os próprios nomes dos capítulos são irresistíveis em sua profundidade poética: “O Abraço do Afogado”, “Um Herói Partido ao Meio” e “Um Fantasma Que Só Fala Alemão”.

É interessante que os momentos mais intimistas e bonitos do filme venham no silêncio do toque, nos mistérios do contato físico e da percepção sensorial, uma espécie de comunicação mais pura em sua falta de palavras. Nesse sentido, as citadas cenas da boate e da briga colam perfeitamente com outras como a dança do casal protagonista no apartamento da Alemanha ou mesmo o costume de Donato de, quando está transando com o namorado, passar a mão no rosto do parceiro, buscando senti-lo e explorá-lo, algo que se torna hábito de Konrad também.

Assim, ao finalizar o filme sob o som da maravilhosa canção Heroes, de David Bowie, percebemos a amplitude da sabedoria de Karim Aïnouz. Bowie canta sobre amantes que, pelo menos em um mísero trechinho de sua existência fatalmente solitária, conseguem encontrar conforto um no outro, combatendo inimigos que insistem em separá-los e sendo assim heróis, por apenas um dia. Já Aïnouz mostra seus personagens desaparecendo sob uma densa névoa, numa representação de um destino incerto; mas naquele momento, naquele dia, eles estão bem...estão amparados um pelo outro.

-Outros textos que escrevi de filmes dirigidos por Karim Aïnouz:
 


 

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