quinta-feira, 3 de abril de 2014



Análise:

Noé (Noah / 2014 / EUA) dir. Darren Aronofsky

por Lucas Wagner

Aviso: aconselho que o texto a seguir seja lido apenas por quem viu o filme, já que dessa vez os spoilers foram inevitáveis, até mesmo para discutir a obra com propriedade.

O que filmes tão diferentes em suas premissas como π, Réquiem Para Um Sonho, Fonte da Vida, O Lutador e Cisne Negro tem em comum não é apenas o mesmo diretor, Darren Aronofsky, mas no cerne uma temática que aparentemente fascina tal realizador: o de seres humanos levados ao extremo de seus limites físicos e psicológicos. Assim, não é surpresa que Noé, seu novo filme, volte a abordar esse tipo de personagem, usando o brutal arco dramático pelo qual o protagonista tem que passar para transformar esse longa não apenas uma leitura moderna de uma fábula bastante conhecida, mas sim em uma exploração das complexas implicações morais que tal fábula tem a oferecer.

E se uso a palavra “fábula” não é apenas para pirraçar fundamentalistas religiosos, mas porque Aronofsky (que é ateu) e o co-roteirista Ari Hendel abordam a história não com fidelidade absoluta à bíblia, mas dão asas a suas imaginações e criam um universo mais nos moldes de épicos como Game of Thrones ou O Senhor dos Anéis. E isso a introdução do filme já deixa bem claro, ao repassar a história da Criação chegando até o momento em que Caim matou Abel dividindo a humanidade em duas partes: os descendentes de Caim (uma espécie de Sauron), sempre maus, violentos e perversos; e os descendentes de Set, mais escassos, mas bons e humildes servos do Criador.

O Noé interpretado por Russell Crowe é um dos últimos da linhagem de Set, e recebeu a difícil missão de construir uma arca para salvar os animais da grande inundação que o Criador lançará para limpar o mundo da imundice dos homens. Assim, os sonhos premonitores do personagem-título são oportunidades bem aproveitadas para Aronofsky brincar com simbolismos que, mesmo fáceis de se decifrar, não deixam de ser conceitualmente interessantes, como a terra da qual brota sangue, ou os dois momentos em que vemos Noé debaixo de uma grande massa d’água e, na primeira vez, percebemos o personagem rodeado de cadáveres, enquanto da segunda vemos a mesma imagem mas, de onde supúnhamos ver corpos em decomposição, agora percebemos vários animais nadando para se salvar das profundezas aquáticas.

É também a partir de um desses reveladores sonhos do protagonista que Aronofsky introduz a temática da ambiguidade moral que vai guiar Noé da metade do filme até o fim, e que compõe o seu núcleo narrativo. Nessa sequência, quando vemos Noé chocado com a crueldade dos homens ao trocarem mulheres por carne, matarem alegremente animais e ainda se verem envoltos em perversão e sadismo, é interessante notar como a fotografia de Matthew Libatique é eficiente ao criar uma lógica visual que será valiosa para que o filme funcione. Percebam como a cena é iluminada pelo fogo, e as cores reforçam uma visão de verdadeiro Inferno. E depois, percebam como Libatique e Aronofsky utilizam a mesma cor amarelo-fogo para filmar os ambientes dentro da arca, não apenas para simular um lugar iluminado por velas, mas para introduzir a ideia que os eventos ali passados não se distanciam muito do que vimos no acampamento do sonho. Além disso, o fato dos rostos dos personagens na arca virem constantemente cobertos por sombras não é apenas para mostrar como é difícil enxergar naquele lugar parcamente iluminado, mas para ilustrar o lado sombrio daqueles indivíduos. A grande fornalha dentro da arca também é interessante nessa interpretação, sendo mais emblemática no plano que aparece logo atrás de Noé.

Pois aqui entra a tal temática sobre “limites”, constante nos trabalhos de Aronofsky. Seguindo a crença de estar cumprindo a “vontade do Criador”, segundo sua própria interpretação, Noé é confrontado com questões que todo o seu ser moral repudia e, como ser humano, sente-se devastado por ter que realizar ações abomináveis em nome de um “Bem maior”. Mas a imagem que viu de si mesmo em seu sonho (num momento tipicamente aronofskiano) o assustou o suficiente, e a mera possibilidade de se tornar o tipo de homem que tanto lhe enoja, o choca de modo que, dialeticamente, acabe ele mesmo se tornando um. Aronofsky, aliás, deixa isso mais do que claro no momento em que, depois de um ato particularmente cruel, Noé é acidentalmente misturado à multidão que tenta invadir a arca. Não que ele seja um sujeito realmente mal, afinal, ele acredita piamente que faz o que faz por motivos importantes e incontestáveis. Mas essa mesma característica que pode redimi-lo não poderia ser aplicada a centenas de fanáticos religiosos que, baseando-se em suas crenças, cometeram/cometem crueldades imperdoáveis contra a humanidade ao longo da História?

A visão do Criador que Aronofsky trás é cruamente a do Velho Testamento: de um tirano impiedoso que obriga suas criaturas a atitudes desumanas para provar seu amor por deus. Aqui, a questão ganha contornos éticos e morais. A provação a qual Noé é submetido (se interpretarmos sob o viés de que deus tinha reais planos para ele no futuro – ou não – da humanidade) pode ser interpretada como um teste do próprio Criador para ver se valia ou não a pena extinguir de vez a raça dos homens. Pois os argumentos usados por Tubal-Cain (Ray Winstone), descendente de Caim, na hora de afirmar seu valor diante do Dilúvio, não deixam de ser menos válidos quando ele afirma que foi criado à imagem e semelhança de deus, logo podendo afirmar sua superioridade naquele mundo. A fragilidade, então, está na própria concepção do Homem: ser ambíguo multifacetado com iguais possibilidades de agir como um demônio ou como um anjo, dependendo do momento. Não é atoa que uma comparação filosófica seja traçada entre Tubal-Cain e Noé, principalmente através do relacionamento paternal do primeiro com Cam (Logan Lerman), que remete até ao protagonista e seu próprio pai. O que muda é apenas a motivação, e nesse sentido, é curioso que em certo momento, mais intimista, vejamos Tubal-Cain clamando pela atenção de deus, como um filho rejeitado. E que espécie de pai rejeita seu filho apenas por ir contra seus planos e expectativas?

A partir desse arco, então, Aronofsky delinea as discussões de seu filme, envolvendo o Bem e o Mal, e como a humanidade se encontra num parco equilíbrio entre um e outro, assim como a noção de livre-arbítrio (como estudante de psicologia, repudio esse conceito, mas tudo bem) e como o Homem se comporta sendo deixado livre para agir de acordo com sua interpretação do mundo. Afinal, em algum momento fica claro para todos que deus queria que Noé matasse as filhas de Ila (Emma Watson)? Ou seria apenas o modo como o personagem interpretou o fim das chuvas? Por que também seria tão errado ajudar algumas pessoas agonizantes no Dilúvio? Realmente é “certo” concordar com o genocídio promovido pelo Criador? Ou ainda: o que deus realmente queria era que Noé, no fim das contas poupasse a humanidade, ou era tudo um teste? Essa última (e particularmente interessante) questão, no entanto, é quase estragada pelo diretor quando investe em um diálogo dolorosamente expositivo no fim do filme.

Beneficiado com dinheiro suficiente para criar um verdadeiro épico, Aronofsky acerta na construção de ambientes digitais que evidenciam o próprio estado emocional naquele mundo decadente. Para todo lugar que olhamos o que vemos é cinza, árvores cortadas e terreno árido e infértil. Até mesmo a floresta surgida a partir da semente do Éden é evidentemente triste, apesar de um pouco mais “feliz” do que o que víamos antes. E essa lógica é seguida pelo diretor para criar planos emblemáticos e trágicos como aquele que mostra uma montanha de homens e mulheres sofrendo com as inundações. Já os efeitos visuais são por vezes fascinantes (as inundações) e por vezes decepcionantes (os animais digitais), mas ganham nos Guardiões, os anjos caídos, um design genial que conta sua trágica história apenas com seus corpos quebradiços e desconfortáveis, suas tristes faces, e a luz amarela que deixa-se ver através das fendas de seu corpo e seu rosto, como dolorosas lembranças de tempos mais felizes. Aliás, ainda é curioso que Adão e Eva, antes do Pecado Original, sejam vistos como brilhantes luzes douradas, assim como os anjos, ou ainda como a derradeira maçã da Árvore do Bem e do Mal parece um coração pulsante, tudo gerando discussões que poderiam durar vários textos.

Com um elenco unânime em competência (em especial Jennifer Connelly), que consegue dar aos personagens a devida tridimensionalidade, Noé pode até ser uma obra mais irregular dentro da genial carreira de Darren Aronofsky, até porque aqui, um blockbuster, ele é obrigado a aliviar na violência (os corpos abatidos e destruídos sem qualquer evidência de sangue são lamentáveis) e desenvolver seu filme com mais afobação do que de costume para caber em seus 138 minutos. Ainda assim, é prova mais do que suficiente de sua ambição e inteligência enquanto realizador.

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