quinta-feira, 14 de agosto de 2014



Análise:

O Duplo (The Double / 2014 / Reino Unido) dir. Richard Ayoad

por Lucas Wagner

Ladrilhando o caminho para obras literárias como Clube da Luta, O Homem Duplicado e Os Filhos de Anansi, o romance O Duplo, escrito em 1846, representa uma primeira tentativa de aprofundar na psicologia de um personagem criando uma imagem sua detentora de predicados desejados pelo protagonista. O dono de tal façanha foi um jovem e já brilhante Fiódor Dostoiévski, estabelecendo com esse seu segundo romance a temática central de toda sua obra: o homem do subsolo. Acima disso, a obra em questão foi ganhando admiração com o tempo, em vista do experimentalismo formal proposto pelo mestre que, longe de ser apenas linguisticamente curioso, enriquecia o livro ao permitir uma complicada leitura do “interior” do protagonista, o miserável Sr. Golyádkin (nome que significa “completamente nu”, em russo).

Assim, percebe-se o tamanho da responsabilidade que o comediante Richard Ayoad adquiriu ao ousar dirigir e co-roteirizar o projeto. E o melhor é que ele não faz feio, e cria uma obra que, salvo algumas ressalvas, é intrigante e faz jus à complexidade do livro. E desde o princípio é de se admirar a adaptação da história russa a um contexto inglês sem gastar a bizarrice da trama, não fazendo alterações muito drásticas: aqui, Golyádkin é Simon James (Jesse Eisenberg), um funcionário esforçado mas constantemente reprimido e tratado como uma “não-pessoa”, a não ser pela sua paixão platônica Hannah (Mi Wasinkowska) que, bem, o trata como uma “quase-pessoa”. O mundo do jovem muda quando um novo funcionário chega à sua empresa, com uma aparência idêntica à sua e de nome James Simon (Eisenberg também). Inicialmente amigos, a situação se desestrutura quando sua “cópia” começa a ganhar sucesso em qualquer aspecto da vida roubando idéias e projetos do protagonista.

Reconhecendo o estilo alucinado que Dostoiévski empregou ao livro, Ayoad aproveita a chance de, numa mistura de David Cronenberg e Terry Gilliam, fazer de O Duplo um filme pautado num tom expressionista, que constantemente realça a melancolia daquele universo sem, no entanto, ignorar todos os potenciais cômicos que ali existem. E assim, Ayoad cria um filme agridoce em seu tom, e se constantemente rimos ao longo da projeção não é nem sempre por vermos algo muito engraçado, mas que na verdade é por demais absurdo e grotesco, um universo habitado por figuras alienadas que, diferentes do protagonista, são verdadeiras “não-pessoas”.

Assim, a fotografia árida em tons amarelados de Erik Wilson divide a tela inteligentemente com cores que, aqui e ali, tem um caráter mais forte, como o azul que tanto diz sobre Hannah (blue – triste), realçando assim tanto potenciais de vida naquele universo como permitindo que percebamos mais o caráter farsesco e cômico de toda a obra, algo que ainda é realçado pela decisão de Ayoad ao rechear o longa com um elenco repleto de comediantes. E nessa perspectiva ainda, o design de produção de David Crank é ideal ao conferir uma atmosfera digna de Brazil ao projeto, criando ambientes claustrofóbicos mas inerentemente bizarros, com uma tecnologia que impede inserir O Duplo em qualquer período do tempo, já que seus computadores fictícios e programas de Tv oitentistas podem até sugerir, mas nunca definem se o que estamos vendo ao menos acontece em um período histórico real ou faz parte de um universo paralelo, sendo essa última proposta a mais provável.

Ayoad demonstra boa compreensão da obra de Dostoiévski ao deixar claro que, mesmo que o protagonista seja inegavelmente portador de alguma espécie de psicopatologia, é na verdade o mundo que habita que está doente, sendo os distúrbios psicológicos de Golyádkin/Simon reflexos de uma sociedade deturpada. Se prestarmos bem atenção, o que faz de Simon um “louco”? Na verdade, ele é constantemente desconfirmado pelo meio em que vive, sendo injustamente agredido enquanto parece tentar fazer alguma diferença nem que seja em seu trabalho, e ainda sendo chamado de “decepcionante”, ou até mesmo de, como já dito, uma “não-pessoa”, algo que a solidão em que vive só serve como amplificador de sua dor (percebam a constante falta de mensagens em seu telefone). É natural que o rapaz tenha desenvolvido uma espécie de desamparo aprendido, que basicamente o impede de se comportar em seu meio, adotando uma postura cada vez mais passiva em que chega a pontos tocantes e preocupantes como ao descartar uma carta melancolicamente bela por uma mais sintética. Afinal, quem iria se interessar na dor da escrita de uma “não-pessoa”?

James Simon é bem o oposto: extrovertido a ponto de ser arrogante, ele não apresenta o menor pudor ou mesmo consideração pelos outros quando se trata de conseguir o que quer. Tal postura parece torná-lo bem sucedido. Mas será que ele é mesmo tudo isso ou estamos vendo uma alucinação de Simon? Aposto minhas fichas na segunda opção, e a criação dessa imagem que é James evidencia suas raízes no belo monólogo que Simon diz em certo momento, em que chega a comentar, com lágrimas nos olhos, que não parece estar em seu próprio corpo durante a maior parte do tempo, e que alguém poderia facilmente trespassar sua mão pelo seu corpo, sem ao menos notar ali um obstáculo físico. James faz exatamente as mesmas coisas que Simon, mas mesmo naquele universo estagnado onde ninguém pode galgar degráus a mais na sociedade, ele consegue ser bem sucedido e querido por todos. Mas como consegue isso? Acho que a melhor pergunta seria: será que ele consegue? O mais provável é que James seja fruto da uma profunda ruptura egoica de Simon, numa culpa mal dirigida por uma sociedade impiedosa, de que ele (Simon) é o culpado por seu próprio fracasso, ele não pode ser bem sucedido em nada, ele é miserável. Enquanto a realidade é bem diversa: ele é fruto de seu meio, e nunca deixa de ser imensamente triste perceber essa auto-imolação, principalmente por percebermos suas constantes tentativas. James é o Brad Pitt do Edward Norton que é Simon.

Mas é bem aqui também que o longa evidencia seu ponto fraco se comparado ao livro. Dostoiévski criou em O Duplo uma narrativa de cunho psicológico que funcionava como uma severa crítica à sociedade russa de então, estagnada por uma aristocracia e burguesia primitivamente selvagens, dirigindo com extrema burocracia as classes mais baixas, estagnadas a tal ponto em seus relacionamentos sociais/culturais que criava-se uma sociedade onde as relações só se davam por meio de interesses burocráticos, criando uma deformação humana de tal ordem que a solidão era a única constante para aqueles miseráveis relegados às classes pobres. E se o filme de Ayoad tem tudo isso, não estamos mais na sociedade russa de século XIX, e assim perde-se uma excelente oportunidade de explorar as implicações de uma trama como essa no mundo contemporâneo, doente em diferentes aspectos. Mas acaba que o filme funciona bem é como fantasia, perdendo o caráter crítico que era o foco principal do escritor ao decidir se passar em um universo bizarro demais para exceder a ficção.

Se isso decepciona um pouco, não faz de O Duplo um filme necessariamente inferior. Aliás, é um prazer acompanhar a complexa montagem de Chris Dinkens e Nick Fenton, construída de modo dialético na composição de imagens “reais” com muitas de tendência surrealista ou mesmo poética. A trilha sonora original de Andrew Hewitt, assim como a trilha incidental, marcam bem a caracterização esquizofrênica da obra, enquanto as ruas sempre esfumaçadas conferem um tom de além-vida adequado a um mundo repleto de fantasmas. Além disso, a sutileza do desenvolvimento da personagem Hannah é encantadora, seja pelo citado tom azul que a caracteriza, passando pelo seu apartamento desconfortável e aconchegante, enquanto podemos ainda perceber sua própria despersonalização no uso de uma indumentária de cor não-azul em ambientes sociais festivos, como o baile no primeiro ato, sem contar que tal despersonalização grita na re-imaginação da pintura La Reproduction Interdite de René Magritte com a imagem da Hannah.

Formando uma dobradinha irresistível com a adaptação de O Homem Duplicado, nesse mesmo ano, O Duplo tem qualidades primorosas e representa uma experiência complexa, desafiadora para aqueles que ousarem encará-la. O que também é muito divertido, é claro.

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