quinta-feira, 3 de julho de 2014


Análise:

O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel / 2014 / Alemanha, EUA) dir. Wes Anderson

por Lucas Wagner

O que torna Wes Anderson um dos mais interessantes artistas da atualidade é a sua capacidade de, contando histórias bem diferentes em cada filme, ainda assim permitir a sensação de que todos os seus trabalhos se passam em um mesmo universo amalucado e um tanto surrealista, onde figuras distintamente solitárias e à deriva procuram significado. Assim, suas obsessões estéticas tomam forma e se justificam, construindo obras únicas que misturam melancolia e humor, e onde uma sensibilidade admirável permeia o olhar que nos guia naquele universo e seus personagens. Seu novo filme, O Grande Hotel Budapeste, trás novamente essas qualidades, revelando um cineasta seguro de si e do que quer, que transforma esse seu insano trabalho numa obra-prima repleta de camadas e surpreendentemente eficiente em todas elas.

Roteirizado pelo próprio Anderson a partir de um argumento concebido por ele e Hugo Guinesse e nos escritos do dramaturgo Stefan Zweig, o longa narra uma história em forma de “boneca russa” onde um Autor (Tom Wilkinson) conta sobre quando era um jovem escritor (Jude Law) que escutou as fascinantes aventuras de Mr. Mustafa (F. Murray Abraham) quando era um jovem Lobby Boy chamado Zero (Tony Revolori) a serviço do excêntrico concierge Gustave (Ralph Fiennes), envolvido em uma trama de assassinato e roubo.

Como em qualquer outro trabalho do diretor, basta uma olhadela em qualquer plano para se saber tratar de um filme dele. O apuro estético de Anderson se revela cada vez mais rigoroso e rebuscado, e o cineasta aproveita novamente para criar um universo colorido mas estranhamente mórbido em vários aspectos, usando e abusando de planos-sequências, slow-motion, travellings, e coreografias milimetricamente ensaiadas, tudo controlado à mão firme quase obsessiva, tal como a centralização absurda da maioria de seus quadros. Talvez, no entanto, O Grande Hotel Budapeste seja seu filme que mais permite sua “fritação" visual, já que a absurda trama em que nos mergulha dá espaço de sobra para o diretor fazer o que quiser e ainda se dar a liberdade de brincar à vontade com invencionismos que surgem intrigantes, elegantes e imensamente divertidos, como as diversas vezes que usa animação stop-motion para sequências de ação.

Assim como Viagem à Darjeeling fazia diversas homenagens ao cinema de Satyajit Ray, aqui o diretor reverencia Ernst Lubitsch e suas ousadas comédias do início do século XX, refutando valores morais ao cortar de rebuscados diálogos para fortes palavrões, coisa que Anderson também faz explicitamente através do personagem de Gustave em cenas engraçadíssimas, embora em nenhum momento perca suas idiossincrasias para as homenagens (um feito admirável). Aliás, o humor do cineasta continua afinadíssimo e talvez ainda mais entregue ao nonsense do que o habitual, promovendo sequências cômicas tanto física quanto dialogicamente, e o próprio diretor parece querer nos empurrar para essa atmosfera insana logo nos primeiros cinco minutos de filme quando, depois de umas duas cenas melancólicas, tem uma poética fala quebrada pela bruta bronca que o Autor dá em seu filho (ou neto, não sei).

E se a própria trama maníaca e amalucada permite que o diretor brinque misturando aventura e comédia de forma absurda e propositalmente farsesca (inclusive vemos um tiroteio completamente sem sentido em que personagem algum parece pelo menos se ferir), chegamos ao ponto de Gustave perguntar meio para si e meio para Zero se essa trama que “engrossa” não seria uma “metáfora da sopa”, o que é um comentário metalinguístico acerca da futilidade dessa própria aventura, que não faz sentido nem para eles mesmos. E é admirável que mesmo em meio a todo esse hospício Anderson se mostre um cineasta maduro ao conseguir abordar temas que já se mostraram de seu interesse pessoal e compõem a alma de todos os seus trabalhos.

O Grande Hotel Budapeste trás a temática que já tanto permeou seu filme anterior, o lindo Moonrise Kingdom, e novamente acompanhamos uma história onde o passado é pintado (literal e metaforicamente) como ideal, onírico e belo, em contraposição ao futuro/presente, aos quais o tempo em tudo corrói. Anderson aborda essa questão de forma bastante direta, e assim a cada época que retrocedemos parece que entramos em mundos cada vez mais mágicos. 1932 é construído como um ano fantástico, juvenil, gostoso, enquanto 1968 é marcado pela solidão que engloba personagens em ruínas tanto internas quanto externas no hotel do título; e se 1985 aparentemente é agradável aos olhos, logo se revela incomodado por um quarto em reformas e uma escada para pinturas. Os dias de hoje são representados por uma paisagem mórbida dominada pela neve e pela tristeza. O que é fascinante porque, além de nos dar um lugar privilegiado na psicologia do próprio cineasta, nos coloca nos sapatos da moça que lê o livro do Autor sentada no banco circundado de neve, conferindo um delicioso aspecto metalinguístico à obra.

E se isso já é admirável em diversos níveis (narrativa, filosófica e psicologicamente), Anderson ainda revela sua inteligência e fineza artística ao adotar razões de aspecto diferentes para cada tipo de imagem em distintas épocas, usando o 1:85 para os dias de hoje, o 1:33 muito usado nos anos 30 e aqui repetido, e até o 2:35:1 do Cinemascope, que usa lentes anamórficas típicas para produções das décadas de 50 e 60. Um detalhe técnico elegante que não abafa as ambições poéticas do diretor, aqui novamente em alta e que divulga informações emocionais de profunda significância através de efeitos de luz e detalhes na direção de arte. Um belo exemplo seria a grande quantidade de vidros de perfume no decadente quarto de Gustave, o que já ilustra a pomposa e desesperada imagem que tenta transmitir contra sua verdadeira e não tão chique personalidade. Mas o meu momento favorito (que me fez sorrir em meio a lágrimas) fica por conta de quando Mr. Mustafa relembra de sua amada Agatha, com a dor da saudade, e uma luz se acende iluminando seu rosto envelhecido e melancólico: é o passado lançando sua luz para espantar um pouco as sombras do presente, mesmo que traga consigo dor ao fazer isso.

Acima de tudo, no entanto, O Grande Hotel Budapeste se revela um trabalho essencialmente de Wes Anderson ao trazer o mesmo tipo de personagem solitário, sem rumo e alienígena a si próprio em meio a um mundo que não faz sentido. Isso é bastante evidente no protagonista, através de uma genial abordagem de Anderson ao lhe dar o nome, quando jovem, de Zero, quando era um insignificante imigrante refugiado que se vê envolvido em um romance e uma aventura. Ele só ganha nome e personalidade quando velho, o Mr. Mustafa, que mesmo rico e dono de vários estabelecimentos, sempre se recolhe no Hotel Budapeste no que foi, quando era apenas um Lobby Boy, seu quarto de dormir. Aliás, contratar um ator fisicamente estrangeiro para interpretá-lo enquanto jovem é um lance de mestre do diretor, como se o rapaz realmente não fizesse parte daquele ambiente, situação que muda apenas muitos anos depois. E o próprio romance que vive com Agatha (Saoirse Ronan) reflete a já abordada idéia de duas pessoas deslocadas e solitárias se relacionando amorosamente.

Mas, para além de Zero ou Agatha, o concierge Gustave é um personagem andersoniano ainda mais fascinante, e talvez seja a figura mais complexa e multifacetada que o diretor cria desde o inesquecível Royal Tennenbaum de Gene Hackman no maravilhoso Os Excêntricos Tennenbaums. Buscando transmitir uma imagem de elegância, fineza e perfeccionismo, além de tentar transparecer uma alma romântica através da leitura e citação de poesia, Gustave é na verdade um sujeito que mal consegue esconder seu lado trambiqueiro, não raro interrompendo discursos poéticos com um “fuck it” de quem está cansado de fingir. Aliás, chega a ser engraçado vê-lo abandonando essa imagem intelectual, fina, apenas porque não consegue resistir ao seu inegável materialismo. No entanto, em nenhum momento seus ideais ou amor ao hotel, ou mesmo o afeto que sente por diversas pessoas, chega a ser falso, mas essa sua personalidade quebradiça e contraditória faz parte de uma natureza profundamente solitária e alienada. E Ralph Fiennes entrega uma performance digna de prêmios, e não menos um de seus melhores trabalhos em uma carreira já admirável, e consegue expressar todas essas camadas psicológicas de Gustave ao mesmo tempo em que, pela própria abordagem de Anderson ao não tratá-lo como o narrador da história, mantém uma aura de mistério que o torna ainda mais fascinante.

Trazendo de volta nomes conhecidos na filmografia de Anderson que completam um elenco de tirar o chapéu (e como é bom ver Owen Wilson novamente ao lado do diretor), O Grande Hotel Budapeste ainda conta com uma trilha sonora deliciosa composta com maestria por Alexandre Desplat. E, novamente, com todos esses elementos tão bem organizados por um artista único e surpreendente, temos uma obra-prima de grande valor, que consegue enxergar a profundidade do humano em meio à loucura do nonsense.

-Outros textos meus sobre filmes de Wes Anderson:
  

     

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