sábado, 15 de fevereiro de 2014


Análise:

Philomena (Philomena / 2013 / Reino Unido, EUA, França) dir. Stephen Freas

por Lucas Wagner

A religião é uma das maiores expressões de hipocrisia da face mais sombria do ser humano. Se por um lado é uma forma de conforto para o desconhecido da vida após a morte, também é um controle aversivo que pode acabar com alguns dos mais deliciosos sabores da vida, forçando uma existência inferior e focada no medo e na culpa. Pior ainda é quando os sacerdotes e líderes dessas religiões se utilizam do desespero ontológico de seus fiéis para ganhar dinheiro, e isso vai muito além daqueles pastores que afirmam o “poder curativo” do dízimo.

O versátil diretor das obras-primas Alta Fidelidade, Coisas Belas e Sujas e O Segredo de Mary Reilly, Stephen Freas, consegue fazer desse seu novo filme, Philomena, uma obra capaz de alfinetadas desconfortáveis na religião e nos seus efeitos, ao mesmo tempo em que cria um doce drama de personagens, ao contar a história real de uma senhora que há 50 anos vem querendo saber sobre o paradeiro de seu filho, vendido pelas freiras de seu antigo convento.

O roteiro de Jeff Pope e Steve Coogan (que também protagoniza e produz o longa) é inteligente ao equilibrar o desenvolvimento dos personagens, o drama e as críticas que busca fazer. Assim, o jornalista em crise Martin Sixmith (Coogan) e Philomena (Judi Dench) são apresentados separadamente e com calma, e também sua aproximação é gradual, algo para o qual a eficiência de seus intérpretes é essencial. Coogan cria Sixmith como um sujeito cínico e arrogante, cuja tristeza que sente por ter perdido o seu emprego é expressa da forma que mais consegue demonstrar, ou seja, a raiva com pontadas de ironia. Dessa forma, é interessante notar seu comportamento na sequência da festa onde conhece a filha de Philomena, e como ele agride (com um falso pedido anestésico de desculpas) os sentimentos da moça ao classificar a história da mãe dela como “interesse humano”, o que para ele são histórias de pessoas estúpidas e alienadas; mais interessante é que, quando na intimidade de seu lar, quando não precisa mais vestir sua máscara para esconder sua fragilidade, ele finalmente considere a proposta de trabalhar um assunto de “interesse humano”. E Coogan é hábil ao retratá-lo em seu cinismo, fome pela verdade (que caracteriza um bom jornalista) e também os toques de melancolia que existem em seu olhar, ainda mostrando-se competente ao conseguir fazer com que as mudanças de comportamento de Martin soem naturais, quando ele passa das tentativas de agressão às crenças de Philomena para a compreensão mais respeitosa de como essas crenças são valiosas para a doce senhora.

Falando nela, o trabalho da sempre talentosa Judi Dench é de uma beleza descrita com uma palavra que raramente uso: fofura. Pois ela faz de Philomena uma velhinha muito fofa, a partir do fato de que cresceu em grande ignorância dos assuntos do mundo, a ponto de se maravilhar com pequenas coisas do cotidiano. Philomena pode ter sofrido nas mãos de freiras em seu convento, pois ficou grávida (“caiu em pecado”) e para isso foi forçada a trabalhar quase como uma escrava como sua penitência, mas ainda assim, demonstra firmeza em suas crenças, uma espécie de porto seguro para ela, que ainda permite a notável bondade com que trata as pessoas ao seu redor, como quando ela diz para estranhos randômicos que esses são “um em um milhão”. Mas a doce senhora é muito mais complexa, e Dench é genial ao retratar as dúvidas abafadas que mantém em relação às suas crenças, em especial no revelador e doloroso momento em que não consegue se confessar a um padre.

Vivendo um arco dramático sutil e tocante (e é curioso vê-la, a partir de certo ponto, conseguindo bater o pé contra os as agressões ideológicas de Martin), Philomena é uma personagem mais interessante ainda por representar alguns dos efeitos nocivos que a religião trás à vida de seus crentes. Ao falar de seu namorado de adolescência (que a engravidou quando ainda estava no convento), é possível notar certo sentimento de culpa na senhora, apesar de uma sensação de frescor e nostalgia que fica clara na suave entonação de Dench, como se estivesse se deliciando com essas “perigosas” lembranças. Mas porque ela deveria se sentir culpada? Como qualquer jovem, Philomena se sentiu atraída por outra pessoa, se sentiu bem em seus braços, ao ser beijada e adorada por alguém. Mas há algo claramente errado em sua fala: “Senti que algo tão bom não poderia ser certo”. Ora, então seria mais certo viver uma vida reprimida para se tornar uma velha rabugenta como a Irmã Hildegard de seu convento, que suprime sua angústia num orgulho construído de sempre ter mantido sua castidade? Além do mais, Philomena é uma velhinha claramente ignorante quanto a muito da vida, pois o mundo, sendo um lugar de pecado, também é um ambiente do qual pessoas “de boa índole” deveriam se afastar.

Mas onde o longa mais perfura com seu olhar crítico é o absurdo da atitude das irmãs. Enquanto Philomena é um exemplo de pessoa religiosa que enfrenta certos dilemas como não manter uma verdade escondida para si pois isso seria mentir, ou seja, um pecado, a grande maioria das irmãs do convento se utilizam de seus poderes e influência para lucrar, vendendo os filhos das noviças que “sucumbiram ao pecado” para pessoas ricas dispostas a pagar uma fortuna. O pior não é nem isso, mas o claro ódio que existe nessas freiras, em suas atitudes rígidas, pois elas realmente acreditam que as noviças que engravidaram fizeram algo tão ruim como matar outra pessoa, e que a dor que sentem ao ver seus filhos irem embora é uma forma justa (!) de penitência para o “mortal” pecado das jovens. Assim, elas torturam essas moças não apenas de maneira ideológica, mas ao permitir um tempo diminuto para que possam passar ao lado de seus bebês, tornando o inevitável momento da separação ainda mais doloroso. E elas ainda tem a audácia de mentir para os filhos ou as mães que surgem no futuro querendo saber um do outro, numa demonstração de maldade muito pior do que as que tanto condenam.

Talvez (e isso pode ser uma reflexão mais pessoal minha, mas o filme a despertou em mim) isso seja uma maneira que essas mulheres, tão machucadas pela culpa auto imposta, encontraram de lidar com essa realidade da vida religiosa que decidiram servir. E o mais triste é que esse tipo de gente é encontrada o tempo inteiro no dia-a-dia, como vermes do tipo Marcos Feliciano, que, ao invés de pregar a boa convivência entre as pessoas, exaltar a beleza que existe no amor entre dois seres humanos, preferem esmagar esses sentimentos com base em crenças que, ironicamente, afirmam pregar a bondade. Pois não há bondade no ódio tirânico desses religiosos extremistas, mas apenas escuridão, do tipo que pode ter surgido e sido cultivado tanto a ponto de fazer com que os naturais sentimentos que tendem a surgir na vida de uma pessoa (mas vistos como malignos pelas crenças religiosas) se tornem repulsivos, como uma forma desesperada e cruel que esses indivíduos encontram para “se purificarem”. E assim Philomena se torna mais uma vez um raro exemplo de ser humano que vive com crenças religiosas mas enxergam nelas os elementos de amor genuíno, e isso fica claro quando ela não se importa com o fato de que seu filho era homossexual, não mudando em nada seu amor pelo rapaz por conta disso.

Beneficiado pela sensível direção de Freas (atentem para a beleza do primeiro flashback de Philomena, quando a distorção de sua imagem provocada pelo reflexo de um espelho se torna uma maneira de demonstrar a liquidez incompreensível das memórias e ainda garante um belíssimo tom nostálgico), Philomena é um filme complexo e humano em suas propostas, corajoso ao encarar de maneira inteligente formas de comportamentos ambíguos, e mais ainda por nunca se definir totalmente por um lado, explorando aspectos válidos e outros nem tanto da religião e do ateísmo, criando assim uma obra de força e doçura incomensuráveis.

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