sexta-feira, 15 de novembro de 2013



Crítica Blue Jasmine (Blue Jasmine / 2013 / EUA) dir. Woody Allen

por Lucas Wagner

  Em toda a sua longa carreira, o cineasta Woody Allen pareceu particularmente interessado em investigar o caos que compõe os sentimentos e relacionamentos humanos, muitas vezes utilizando-se de um viés cômico, e outras um mais melancólico. Assim, Blue Jasmine revela-se uma exploração tragicômica de diversas figuras sentimentalmente ambíguas, mas é principalmente um angustiante estudo de uma personagem destruída.

  Com roteiro do próprio Allen (como sempre), o longa tem como protagonista Jannette, que trocou seu nome por um mais chique: Jasmine (Cate Blanchett). De rica e poderosa, frequentadora de uma sociedade de classe alta, Jasmine passa a mulher pobre e psicologicamente debilitada, que é obrigada a morar com a irmã bem mais humilde, Ginger (Sally Hawkins).

  Jasmine seria um caso clínico interessantíssimo para estudar em Psicologia. Mulher completamente desadaptada, Jasmine prefere viver em seu próprio mundinho, sempre virando a cara para o que possa se revelar aversivo, o que nem sempre é algo feito conscientemente pela personagem. Mentindo até a alma para garantir sua imagem, Jasmine parece correr sempre de uma auto-análise, e é essa completa desestrutura que ela tem para se enxergar e se comportar de forma adequada ao ambiente que serve como elemento definitivo para que ela sucumba à um colapso nervoso quando fica impossível virar a cara para a realidade.

  Diante disso, é até irônico que ela ambicione (pelo menos é o que ela diz) se tornar designer de interiores, o que é curioso se lembrarmos que outra das mais problemáticas personagens de Allen tinha essa mesma profissão, a Eve do trágico Interiores, de 1978. É irônico porque, como essa outra personagem, Jasmine não tem qualquer capacidade de enxergar seu próprio interior, e parece procurar na decoração de um ambiente externo a falta de estrutura de seu ambiente interno. Com seu colapso nervoso, Jasmine se fecha de maneira mais preocupante ainda, e começa a estabelecer não diálogos com interlocutores, mas sim monólogos delirantes sobre sua finada vida como rica. Mais sintomático ainda é quando ela literalmente começa a falar sozinha, olhando pro espaço vazio à sua frente e repetindo diálogos que aconteceram no passado, como mecanismo de defesa contra um presente aversivo. Assim, é perdoável que Allen tenha optado por uma estrutura toda em flashbacks, já que isso encontra sentido narrativo de forma orgânica nos delírios de volta ao passado da protagonista, além de ser uma estrutura que serve para resguardar uma importante revelação no terceiro ato.

  E é Cate Blanchett a grande rainha do filme. Dona de uma carreira repleta de performances memoráveis (O Aviador, Não Estou Lá, Notas Sobre Um Escândalo, etc), Blanchett consegue um de seus melhores trabalhos (senão o melhor). Abraçando com vontade a antipatia dessa personagem, a atriz em nenhum momento aposta numa atuação mais doce ou que tente redimir Jasmine de alguma maneira. Realmente, é uma pessoa detestável e com quem ninguém suportaria conviver na vida real. Ainda assim, é surpreendente que Blanchett consiga permitir que nós nos compadeçamos dela, e isso principalmente pelo fato de a atriz investir em sutilezas que denunciam todo o dano interno da protagonista, como na tremedeira involuntária que passa a ser quase constante a partir da metade da projeção, ou ainda através do estado quase catatônico que assume quando paralisa seu olhar num ponto fixo no horizonte ou quando começa a repetir seus diálogos do passado. E é divertido ainda que a atriz sempre mantenha a cabeça erguida, representando a tentativa de Jasmine de “manter a classe” mesmo quando no fundo do poço.

  E Allen também merece elogios no tratamento da personagem. Sem buscar suavizá-la, o direotr/roteirista acerta ao criar momentos intimistas que permitem que o espectador se aproxime da protagonista, como quando ela chora um choro doído porém aliviado depois de receber o telefonema de um possível namorado. Ainda, o diretor é hábil ao conseguir fazer com que o espectador perceba a clara distância das duas vidas de Jasmine através da fotografia de Javier Aguirresarobe, ou da direção de arte (a casa da irmã e sua antiga mansão) e a escolha de localizações, que antes eram ambientes luxuosos e limpos e depois passam a ruas sujas e movimentadas. O uso da trilha sonora também é altamente eficaz. Abusando do jazz (como de hábito), Allen evita o silêncio angustiante de outros dramas seus (Interiores, Setembro, A Outra, etc) e usa os sons de saxofones e baterias tanto em momentos mais cômicos como nos mais dramáticos/pesados, como se ressaltando o caos de tudo que estamos vendo. No geral, o diretor mantém seu estilo de sempre, com diversos planos sequências discretos, além de closes e primeiros planos reveladores.

  Mas como disse no primeiro parágrafo, Woody Allen volta a explorar o caos dos relacionamentos humanos através de uma coleção de personagens extremamente ambíguos que se comportam de forma aparentemente desordenada, mas que na verdade só estão agindo de acordo com os sentimentos. Assim, Ginger é uma figura fascinante ao demonstrar diversas facetas na sua relação com Al (Louis C.K.) e Chili (Bobby Cannavale): ela viaja desde a excitação sexual pelo segundo (musculoso) até o interesse pela estabilidade prometida pelo primeiro (gordo e feio), e faz isso de forma natural (ponto para a atuação de Sally Hawkins), realmente sentindo diversas e complexas emoções. Já Chili é um personagem extremamente complexo no seu comportamento contrastante, violento e apaixonado, numa atuação impecável de Bobby Cannavale. Enquanto isso, Louis C.K. (comediante genial cujo seriado, Louie, tem grande inspiração nos filmes de Woody Allen) consegue interpretar muito bem um sujeito com auto-estima alta (diferente da auto-crítica que constantemente faz em seus stand-ups), e Alec Baldwin acerta na frieza da performance do ex-marido de Jasmine, ao passo que Peter Sarsgaard acerta ao transformar Dwight num sujeito melancólico na falta que ainda parece sentir da finada esposa. Todos esses personagens ressaltam, à sua própria maneira, o universo caótico dos sentimentos humanos, em subtramas lindamente escritas por Allen.

  Com um senso de humor adequadamente sutil (a velhinha falando sobre como são especiais os dias em que faz colonoscopia é um perfeito exemplo), Blue Jasmine é no geral uma obra profundamente dolorosa, que teria sido ainda melhor se tivesse acabado uma cena antes do que acabou, já que reforçaria ainda mais o caos imprevisível dos sentimentos. Ainda assim, o plano final é perfeito pela melancolia massacrante com que lança o espectador para fora do cinema, permitindo que a tragédia da história de Jasmine continue ressoando em nossas cabeças durante um bom tempo.

-Críticas minhas de outros filmes dirigidos por Woody Allen: -Para Roma, Com Amor

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