sexta-feira, 16 de novembro de 2012


Resenha filme "Cosmópolis" (Cosmopolis / 2012 / França, Canadá, Portugal, Itália) dir. David Cronenberg

por Lucas Wagner


  "Nós multiplicamos nossas possessões mas reduzimos nossos valores. Falamos demais, amamos raramente, e odiamos freqüentemente. Nós aprendemos como fazer uma vida mas não como viver. Adcionamos anos à nossa vida, mas não vida aos nossos anos"   George Carlin

  Um dos intelectuais mais fascinantes da atualidade é, sem dúvidas, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que busca estudar como se dão as relações da pós-modernidade. Um conceito com que ele sempre trabalha é o de liquidez, de vida líquida. A matéria em estado líquido escorrega por entre nossos dedos; nós não somos capazes de mantê-la conosco por mais do que alguns segundos; está sempre escapando. Bauman observa as relações, os sentimentos (como Amor ou Medo) e a própria Vida como um todo, nesta pós-modernidade, como melhor comparada à liquidez: nada é permanente; nós e nossos relacionamentos fogem de nós mesmos, podem mudar em um espaço de segundos. Nessa contemporaniedade, o que mais parece se pregar é o desapego emocional, a frieza e calculismo que podem levar à perfeição das ações no modo de produção capitalista em que vivemos. É a “filosofia da mochila vazia”, onde os objetos que carregaríamos nessa mochila seriam pessoas ou qualquer outro componente emocional que pese e, consequentemente, atrase o jovem promissor da sua escalada ao sucesso, riqueza e poder. Desse modo, vivemos em um mundo onde essa liquidez é desejada, que vai levando a tal processo de desestruturação psíquica que, sem dúvida, pode acabar caindo em uma manifestação inexoravelmente psicopatológica. Afinal, quem é capaz de se manter tão frio, tão apático e tão calculista assim por tanto tempo, e ainda ser feliz?

  Em Cosmópolis, o cineasta canadense David Cronenberg mergulha em reflexões profundas e extremamente complexas sobre a pós-modernidade, sobre a liquidez da vida contemporânea, o vazio, a frieza e a loucura a que tudo isso pode levar, através de um estudo de personagem fascinante e assustador, com um caráter levemente surrealista (como muitos dos seus trabalhos, por sinal). No caminho, Cronenberg cria um longa marcante e niilista que pode funcionar como uma curiosa mistura dos inesquecíveis Clube da Luta e Waking Life, do primeiro pegando a análise do vazio da vida moderna que pode levar à loucura, e do segundo a estrutura, onde o protagonista vai se encontrando com diferentes figuras em seu caminho, e com cada uma, trava reflexões filosóficas/existenciais.

  O protagonista é Eric Packer (Robert Pattinson), jovem gênio multimilionário com 28 anos de idade. Em um determinado dia, quando o presidente está na cidade (que é Nova York), um rapper famoso morreu, e está tendo um enorme funeral, e, ainda por cima, vemos uma manifestação anarquista, que afirma que a moeda atual é o rato (que ilustra bem a falta de sentido e propósito do dinheiro na atualidade), Packer decide que deve cortar seu cabelo, custe o que custar, e assim, dentro de sua limosine futurista, enfrenta um trânsito dos infernos ao mesmo tempo em que trava diversas reuniões importantes. Packer é, sem a menor sombra de dúvida, um personagem extremamente complexo. Charmoso e egocêntrico, ele é a perfeita imagem de um rapaz que, ainda no fim da adolescência, descobriu uma certa forma de genialidade que o levaria longe, e assim entrou de cabeça nesse estilo de vida, deixando que cada milímetro desse estilo entrasse em seu cerne, tanto as partes boas (dinheiro, mulheres, etc) quanto às ruins (como o desapego e a frieza). Packer é apático, nada parece lhe impressionar, fazer com que se apaixone. Nada lhe encanta. O mundo é um lugar prático, onde ganhamos dinheiro, fazemos sexo, compramos coisas e... bem, cortamos cabelo. Ele já está tão impregnado com esse modo de viver, que qualquer outro lhe parece alienígena, e assim, ele parece incapaz de ser compassivo, de enxergar os sentimentos de outras pessoas, e os levá-los em conta, como fica bem claro no seu relacionamento com a esposa, com a qual só quer saber quando farão sexo de novo (e enquanto não fazem, ele transa com outras mulheres), e que se surpreende com o fato dela fumar (algo que faz desde os 15 anos e ele nunca tinha notado nas duas semanas em que estão casados). E se ele é incapaz de enxergar sentimentos alheios, isso não é diferente para ele mesmo: ele não consegue descrever suas próprias emoções, angústias e nem o que quer da vida, a longo prazo. Ele parece comprar coisas com o objetivo único de comprar, já que o dinheiro é um fim em si mesmo nos dias de hoje. Assim, o fato de ele estar sempre dentro de sua limusine funciona com eficiente simbolismo sobre ele mesmo, já que está constantemente em movimento (como um business man bem sucedido da atualidade) e está sempre à parte do que ocorre fora dela, que tem um aspecto futurista e tecnológico que não encontra igual no mundo fora; sendo à prova de som, ele não escuta nada do lado de fora, e ainda pode deixar as janelas todas escuras, e assim recostar em seu trono (é um trono mesmo, literalmente) dentro do carro e viver sua vida.

  Vaidoso e com uma preocupação com a morte (talvez o único aspecto que lhe torna humano na metade inicial do longa, mas ele nem sabe bem o por quê disso), ele faz check-ups médicos todos os dias (incluindo dolorosos exames de próstata), e ao descobrir que tem a próstata assimétrica (nada grave, por sinal), enxergamos o estopim que o levará à uma cisão psíquica, deixando-o completamente louco em uma busca existencial paranoica. Essa próstata assimétrica quebrou a simetria perfeita de sua vida, assinalou um ponto fraco, um erro, uma deficiência, e isso o leva a, aos poucos, ir tomando consciência de sua apatia, e ao perceber-se completamente incapaz de sentir algo, que tenta encontrar formas cada vez mais absurdas e desesperadas de fazê-lo. Seu leve problema desencadeou isso tudo, pois o trouxe à vida real, mortal, na qual ele não tem um padrão para se comportar. Seja na morte, mutilação, assassinato, Packer tenta sentir alguma coisa, acabar com essa anestesia que lhe corrói a alma. Mas o mais complexo não é nem isso, já que se prestarmos bem atenção, perceberemos que ele nem sabe que esse é o seu objetivo. Como em muitos trabalhos de Cronenberg (como A Mosca, Videodrome, etc), acompanhamos aqui uma metamorfose, algo que ele deixa claro, inteligentemente, através do figurino de Parker: se no início está de terno completo, e óculos escuros, vai perdendo vários pedaços da indumentária (e no fim, chega a perder até um pouco de seu cabelo), algo que ilustra com perfeição a queda, a destruição de personalidade pela qual o personagem passa. É como se tivesse perdendo suas máscaras e encarando a vida pela primeira vez.

  Essa busca do protagonista é (surpresa!) extraordinariamente bem representada por Robert Pattinson. Muito disso pode ser mesmo pelo fato de que a eterna poker face, inexpressividade do ator, sejam perfeitamente adequadas ao personagem. Mas, em alguns momentos, podemos perceber que Pattinson realmente sabe o que está fazendo, dando uma dimensão extra à Packer, quando este surge com lágrimas nos olhos ao saber da morte de um rapper do qual gostava, ou na longa sequência de conversa entre ele e Benno (Paul Giamatti, excepcional) no fim do filme. Por essa eu não esperava, sinceramente.

  Mas essa batalha existencial de Packer, esse estudo de personagem, não possui um fim em si mesmo. Cronenberg usa o protagonista como um espelho para a busca incessante que nós temos em nós mesmos. Cada vez mais nos vemos mais frouxos, mais anestesiados pela vida, completamente dormentes frente à realidade. Nem sabemos bem quem somos, para ser sincero, e usamos inúmeras máscaras no cotidiano, de beleza, de um ideal falso. Nós estamos sempre vendendo uma imagem. A diferença entre nós e Packer, é que esse já passou para um nível superior de apatia, e chegou à loucura. Na pós-modernidade, tão gritantemente materialista, podemos enxergar uma melancólica falta de propósito no nosso existir. O que buscamos? Sonhos? Amor? Poder? Tudo isso são desejos abstratos, que busca inserir um objetivo claro para cada um. Mas e quando alcançamos tudo que materialmente podemos alcançar? O que fazer então? O que guiará, norteará nosso comportamento? Além disso (e isso talvez seja ainda mais importante), como podemos fazer para nos manter fiéis a nós mesmos, sem nos corromper na visão niilista que parece essencial na busca do sucesso de hoje em dia? De fato, pelo que podemos enxergar (e como Bauman tanto comenta), para alcançarmos o poder, o sucesso, o status, devemos abrir mão de muito do lado emocional, do amor, dos relacionamentos, pois isso (e estou sendo realista, e não pessimista) isso atrasará completamente seu propósito de sucesso. Não dá mais para conciliar os dois. Desse modo, parece que somos presos num permanente dilema existencial: buscar o amor/relacionamentos, ou buscar o sucesso? Com o primeiro, podemos encontrar sentimentos profundos, mas também uma existência mais desconfortável e difícil. Com o segundo, nos tornamos imagens a serem veneradas, lendas exaltadas, e damos (talvez) um significado para nossa vida que contemple mais do que o curto espaço de tempo que passamos nesse planeta. Porém, dependendo da intensidade com que fazemos isso, perdemos a nós mesmos, como acontece com Packer. E isso é lindamente demonstrado por Cronenberg na cena do barbeiro, em que o guarda-costas do protagonista escuta histórias sobre Parker e seu pai, contadas pelo barbeiro, e nessa hora, o diretor parece deixar Packer de lado, focando sua câmera mais nos dois outros personagens em cena.

  Cronenberg, aliás, tem um trabalho excepcional, conseguindo dar uma dose certa de frieza e apatia à sua direção. Seu trabalho é seco, sem graça, não possuindo em nenhum momento algo que nos deixa visualmente embasbacados (a não ser o interior da sua limusine). E isso é proposital, serve maravilhosamente aos objetivos do filme em si, de vazio da vida na pós-modernidade. A sensação transmitida por sua direção é de completo niilismo, tédio (o que levou muitos espectadores a sair da sala antes da hora, por sinal). E não só na direção, mas a trilha sonora de Howard Shore (parceiro habitual do cineasta, mas que é mais conhecido pelo seu inesquecível trabalho na trilogia O Senhor dos Anéis), também alcança bem esse objetivo de apatia e niilismo. Além disso, o roteiro do próprio Cronenberg cria cenas maravilhosas em que Packer trava diálogos filosóficos/existências impecáveis e profundos com diversos interlocutores; e são sempre reflexões sobre a existência no mundo capitalista pós-moderno. Apesar disso, na metade inicial do filme, Cronenberg investe, erroneamente, em cenas de diálogos com determinados interlocutores que não acrescentam nada ao seu trabalho, mas esse é basicamente o único erro de um trabalho tão bom.

  Contando com uma conclusão perfeitamente abrupta depois de uma longa (e fantástica) sequência de conversa, que ilustra com brilhantismo o lado do mais rico e do mais pobre na contemporaniedade, Cosmópolis é um feliz retorno à boa forma de Cronenberg depois do seu regular Um Método Perigoso. É um filme complexo, intrigante, triste e niilista, que nos lança de volta a nossas vidas com um gosto amargo de desespero e desilusão por parte da realidade. E essa é justamente uma das mais belas funções da Arte: nos dar um tapa na cara quando precisamos.

*Outras resenhas minhas de filmes dirigidos por David Cronenberg:

-Um Método Perigoso (A Dangerous Method / 2011 / EUA): 
http://mestredeobras.blogspot.com.br/2012/05/resenha-filme-um-metodo-perigoso.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário