Análise:
O Sonho de Wadjda (وجدة / Arábia Saudita / 2013) dir. Haifaa Al Mansour
por Lucas Wagner
O
Sonho de Wadjda é uma obra doce com uma protagonista
idem, e ainda é relevante por ser o primeiro filme totalmente filmado na Arábia
Saudíta e, o que é mais importante, é o primeiro longa metragem dirigido por um
mulher árabe. Isso mesmo. E o filme dessa talentosa estreante, Haifaa Al
Mansour, trata justamente da opressão sob a qual vivem as mulheres de seu país.
Só que ao invés de criar uma obra densa, a diretora e roteirista optou por uma
abordagem mais leve, contando a história de uma garotinha cujo objeto de desejo
é algo capaz de deixar as mulheres do país chocadas: uma bicicleta, para
apostar corrida com seu melhor amigo.
Al Mansour usa sua
história simples de maneira eficaz para mostrar o cotidiano daquelas mulheres e
meninas. Vivendo numa realidade na qual permitir ser vista por um homem é sinal
de impureza, elas se cobrem completamente e, à vista de um ser do sexo masculino,
desaparecem de vista. Não que as garotas aqui sejam muito diferentes das encontradas
no resto do mundo, já que manifestam interesse por outros garotos e por fofocas
sobre relacionamentos. E se a única possibilidade de se engajarem em uma
relação amorosa é através do casamento, a notícia de que uma delas (garotas de
no máximo 12 anos) se casou é motivo para congratulações e até mesmo piadinhas
de outras meninas, tão imaturas no que diz respeito à relacionamentos. Elas
manifestam sinais claros de uma existência alienada da sexualidade, e se já
estava na hora de pararem de dar risadinhas ao som de uma palavra como “menstruação”, ainda
não resistem a rir cheias de vergonha.
A diretora acerta na
sensibilidade de mostrar várias dessas meninas escapando pelas frestas das leis,
como ao planejarem encontros fugazes com rapazes (isso são as mais ousadas que
fazem) ou até em vista de prazeres simples, mas vistos como pecados, como
pintar as unhas dos pés, algo que deve ser feito as escondidas e sempre com alguém
de guarda. As hipocrisias existentes não são deixadas de lado pela cineasta, e
a figura da coordenadora do colégio, Ms. Hussa (Ahd), é um sinal claro de
ambivalência, pois ela pode pregar com toda a força e paixão a disciplina e
reserva com que as mulheres devem viver, mas ela mesma usa roupas estilosas quando
no colégio (no que seria um péssimo exemplo para as alunas, segundo a lógica
daquela sociedade), como se por colocar-se no pedestal que criou tivesse
direito a esses agrados, e ainda existem boatos que falam sobre ela e um amante
que a visita de noite.
Assim, Al Mansour
demonstra sua inteligência ao ir contra o mais senso comum, abordando sua
temática com mais riqueza, e isso muito também através da personagem da mãe da
protagonista, figura extremamente complexa. Não é surpresa que naquela
sociedade os homens tenham mais de uma esposa, mas como fica o sentimento
dessas mulheres ao terem que dividir o marido? E é esse o grande dilema da
personagem, já que o pai de sua filha está à caça de mais uma mulher, e ela
passa a sentir um profundo desamparo e fazer o pouco que pode para tentar
convencer o marido do contrário (e é mais um acerto da obra que esse homem não
seja visto como um antagonista, mas como um cara tridimensional e amoroso, que
faz o que faz não por maldade, mas porque foi criado assim). Ora, não é só porque
vive numa sociedade na qual essa situação é comum que ela vai deixar de sentir
ciúmes. E ainda a excelente performance de Reem Abdullah permite que a
personagem se torne mais e mais complexa, pois é uma mulher repleta de energia
com talentos que talvez nunca sejam explorados, algo que pode ser evidente
também pelo figurino, com as roupas elegantes e de cores vivas que usa em casa,
em contraponto à burca que usa nas ruas. Quando canta (lindamente) perto de sua
filha, a pequena sugere que a mãe poderia ser cantora, algo que deveria vir
como um elogio mas é recebido como ultraje. Até mesmo coisas mais simples, como
o possível emprego no hospital, é algo que se ela chega a pensar sobre, é com
muita culpa e relutância. Esses comportamentos em nenhum momento lhe tiram as
características de mulher forte e amorosa que tão bem lhe definem.
Mas falar de O Sonho de Wadjda é mesmo falar
de...Wadjda. A garotinha vai contra o estereótipo de meninas de sua idade e
nacionalidade, já que gosta de rock, é extrovertida, brinca tranquilamente com
meninos, bate boca com homens, gosta de usar adereços que são visíveis, e ainda
é esperta e um tanto maliciosa. Assim, o seu figurino é eficaz ao permitir que
vejamos claros sinais de sua personalidade, algo pouco comum dentre as mulheres
árabes, e desde a primeira cena do filme a diferença dela com as outras meninas
fica clara quando a vemos usando um All-Star
com cadarços azuis enquanto suas colegas usam o sapato preto do uniforme. Não
que Wadjda seja alguma espécie de revolucionária (embora seja possível que ela
amadureça para tal), mas é simplesmente uma garota que gosta de ser e
expressar-se como bem lhe agrada, e se ela obedece leis e costumes sociais, é
só até o ponto em que isso não se torna inconveniente para ela. Aliás, a menina
encontra soluções um tanto criativas para contornar dilemas que surgem, como
pintar de preto a parte branca de seu All-Star
depois que leva uma bronca por não usar os sapatos do uniforme.
Nenhuma garota pode
andar de bicicleta, e todo mundo repete isso à ela, mas sua determinação e
desligamento das regras acaba encantando muitas pessoas em seu caminho. E se
nós mesmos nos encantamos com a menina, é também em grande parte devido à bela
performance de Waad Mohammed, expressiva e sapeca o tempo todo, mas também
sendo capaz de demonstrar emoções mais íntimas, como no olhar de carinho que
muitas vezes tem pela mãe, compreendendo um pouco a dor dela e tendo maturidade
o suficiente para não oferecer soluções infantis para a mãe, sabendo respeitar
seus sentimentos frente à sua complicada situação.
Al Mansour consegue
empregar um bom humor exemplar à obra, até mesmo frente à alguns absurdos do
Islamismo, como quando Wadjda recebe uma bronca da mãe por ter deixado o
Alcorão aberto, pois assim “o diabo iria cuspir nele”. A diretora demonstra
ainda inteligência ao confrontar materiais do mundo moderno (como celulares),
com aquele universo que parece ter parado no tempo. A trilha sonora do
fascinante músico Max Richter também é outro elemento de qualidade na obra,
principalmente pela parcimônia com que suas composições são usadas pela
diretora, muito embora alguns dos belos temas criados pelo músico por vezes
soem um pouco densos demais para uma obra que almeja a leveza.
Dito tudo isso, O Sonho de Wadjda é um filme delicioso
de assistir, conseguindo cativar o seu espectador para tratar de uma temática
séria que, por incrível que pareça, não soe datada em pleno século XXI.
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