Análise:
A Grande Beleza (La Grande Bellezza / 2013 / Itália, França) dir. Paolo Sorrentino
por
Lucas Wagner
Fazer Arte é um ato
doloroso por definição, já que parte da tentativa de elaboração de sentimentos
que, muitas vezes, revelam-se puro caos. Mas é também irresistível, e uma forma
de tentar elaborar uma compreensão particular do mundo que ninguém mais pode dar
ou compreender. E é sobre a natureza da Arte e sua decadência atual que versa o
cineasta Paolo Sorrentino nesse seu estupendo A Grande Beleza, uma obra que ainda consegue fazer lembrar Roma e 8 ½ (um de meus filmes favoritos), dois grandes longas de Federico
Fellini.
Do primeiro, Sorrentino
pega a visão de transformação, ao comparar o passado grandioso com o presente
vergonhoso, e do segundo pega elementos do personagem principal: um artista (lá
um cineasta, cá um escritor) que não consegue encontrar elementos para compor
sua nova obra, e assim mergulhamos na cabeça de um homem brilhante em suas
profundas reflexões e andanças pelo bizarro composto que é ele mesmo, buscando
fazer sentido de si e do caótico mundo ao seu redor.
Caótico que é, por
sinal, uma palavra perfeita para definir o universo de A Grande Beleza, que não é senão aquele dos grandes meios
artísticos. Pois hoje em dia, o fazer Arte, ou até mesmo apreciá-la, se tornou
uma espécie de masturbação intelectual de pessoas inseguras e confusas, que a
usam como uma defesa para sua própria insignificância, tentando, através de
citações arrojadas e discursos elaborados, mostrar-se como alguém “relevante”.
Isso fica muito claro quando o protagonista, Jep Gambardella (Toni Servillo), retruca
para sua convencida amiga os motivos pelos quais tudo o que ela falou sobre seu
trabalho e sua vida não passam de farsa (numa cena que inclusive insita a
questão: uma obra de Arte ganha mais valor por tratar de algo externo e
“relevante” como política e perde quando trata de algo íntimo como exploração das
próprias percepções?). Sorrentino já escancara sua tese logo no início de seu
filme, quando vemos imagens contemplativas acompanhadas por música sacra,
mostrando grandes esculturas e peças arquitetônicas de Roma, e logo depois
corta para uma longa sequência em uma festa de artistas famosos, regada a
álcool, drogas e puro sexo. Aliás, sexo que é o único objetivo desses
“intelectuais”, que aqui citam Marcel Proust não com o intuito de discutir sua
obra e seu significado, mas para mostrar-se superior e conseguir tirar a
calcinha de alguém. Há nessa sequência também um plano significativo onde uma
mulher seminua dança dentro de um cubículo fechado por um vidro transparente, e
enquanto o público de fora a observa dançando, ela aprecia a si mesmo através
do reflexo que o vidro lhe proporciona.
E nem precisa ir muito
longe para encontrar esse tipo de gente carente de atenção. Na verdade é só
entrar no feed de notícias do
Facebook e ver alguma postagem citando Clarice Lispector ou Mark Twain, que
acompanham fotos de meninos em academia ou bebendo, ou de garotas empinando
suas bundas na frente do espelho. Somos todos passageiros de um barco que
navega águas turbulentas e, como tão lindamente diz Jep, porque não aproveitamos
essa situação para conversar e brincar? A insistência de martelar para o mundo
(e para si) sua própria importância, não só irrita, como ainda desperta nojo e
pena.
Dentro desse caótico
meio, Jep se insere como um indivíduo que só publicou um romance em toda a sua
vida, não conseguindo voltar a escrever por não ter encontrado algo como uma
“grande beleza”, que faça valer a pena ser eternizada no papel. Mas uma coisa
que fica sempre muito clara é o sofrimento de Jep, que assim como Guido de 8 ½, não consegue organizar o seu caos
interior para trabalhá-lo através da Arte. No caso de Jep é não apenas essa
organização, mas algo que valha a pena escrever sobre. Assim, somos levados
através de passagens belíssimas em que Sorrentino viaja através dos pensamentos
de Jep, empreendendo até mesmo uma visão surrealista como o oceano no teto.
Passeamos na infância de Jep, na época da perda de sua virgindade, nas memórias
de uma antiga paixão, e podemos sentir um pouco da carga que os sentimentos
despertados por essas lembranças tem para ele.
Jep que, interpretado
de forma genial, divertida, melancólica e charmosa por Toni Servillo, é uma
figura fascinante em todos os sentidos. Ele compreende a mediocridade do meio
artístico, mas ao mesmo tempo faz parte dele, e não porque é arrastado, mas faz
isso de bom grado. É um personagem nostálgico e sensível à sua própria maneira
(vide a pergunta que responde no primeiro diálogo que trava com o espectador),
que observa a destruição do mundo ao seu redor tentando entendê-lo, captá-lo,
encontrar algo nele (e em si mesmo) que justifique ser traduzido em palavras.
O que Jep não entende é
que as “grandes belezas” não estão distantes, em algo metafísico ou
macrossocial. Está na poesia do envelhecimento do rosto humano, na observação
da beleza de um animal, ou ainda na simples constatação de que uma desconhecida
tem o mesmo nome de uma personagem de Dostoiévski. E se citei exemplos vistos
no filme, peço licença ainda para extrapolar o material disponibilizado por
Sorrentino, e dizer que essa “grande beleza” pode ser sentida com toda a força
do mundo no ato de segurar a delicada mão de uma garota especial para você,
brincando distraído com o peculiar anel que tem em seu indicador, ou ainda quando
observamos a beleza de um dia chuvoso. O escritor russo Joseph Conrad certa vez
escreveu que “o mundo dos vivos encerra maravilhas e mistérios suficientes que
agem sobre nossas emoções e nossa inteligência de maneiras tão inexplicáveis
que quase bastariam para justificar a concepção de vida como um estado de encanto”.
O cotidiano é repleto de histórias tão espetaculares, sentimentos tão
profundos, atos tão heróicos, e o passado é tão cheio de nostalgia e pontas
soltas, que toda uma história poderia ser criada a partir de um simples olhar.
Basta uma sensibilidade que permite desnudar o que tudo isso significa para si.
E Jep tem toda a capacidade do mundo para isso, mas seu maior obstáculo é ele
mesmo, por talvez subestimar a sua própria importância, ou também a relevância de
tudo o que o cerca, já que o excesso de estímulos acaba por anestesiar suas
percepções.
Pois o fazer Arte tem
sua essência não só no encontro das “grandes belezas”, mas como elas nos afetam
e nos tocam, e como podemos expor esses sentimentos a outros seres humanos,
buscando um amparo para o nosso profundo desamparo. E assim, ver uma garotinha
sendo usada como produto por seus pais, que a obrigam a pintar um quadro na
frente de estranhos, se torna não só uma crítica (os pais usando Arte apenas
pelo dinheiro) mas também algo belíssimo quando percebemos que a pintura dela
está se transformando num reflexo de si, da fúria que sente frente à falta de
respeito de seus pais, e quando a raiva passa e ela começa a organizar as
caóticas cores que jogou na tela, o que vemos é uma artista usando sua angústia
para organizar seus anseios e confusões, criando uma obra belíssima e
profundamente íntima. Aliás, não seria Arte o que a freira de 104 anos aqui
faz, quando sobe uma Escada Santa? Não é isso para ela uma realização que
contém níveis pessoais profundos e significativos? Nesse sentido, a insistência
da mulher de 42 anos em ser stripper
também não é Arte?
Com sua belíssima
trilha sonora e planos elaborados, por vezes insanos e muitas vezes
contemplativos, Paolo Sorrentino cria em A
Grande Beleza um filme que tem a Arte como tema, contemplando sua destruição
atual frente a uma sociedade que, em seus excessos, perde a sutileza que essa
tão bela ferramenta proporciona. Afinal, quando o objetivo passa a ser apenas
financeiro (“Qual a sua profissão?”, “Ser rica”) e para conseguir “status”, é
como se escarracem em todo o sofrimento esculpido na escrita, na música, na
tela, ou onde quer que seja. E por isso vivemos num mundo em decadência, onde
“as grandes belezas” parecem sempre invisíveis. Afinal, como poderiam ser
vistas se a maior parte da população está cega?
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