Análise:
A Imagem Que Falta (L’image Manquante / 2013 / França, Camboja) dir. Rithy Panh
Por
Lucas Wagner
Assim como fez Petra
Costa em Elena, o cambojano Rithy
Panh busca usar o Cinema como uma forma de reconciliar-se consigo mesmo, buscando
fazer sentido do que sua vida se tornou depois de um evento externo devastador.
Se para Costa era o suicídio da irmã, aqui são os anos de servidão brutal ao
Khmer Vermelho, que dizimou (física e espiritualmente) não só a família de
Panh, mas diversos de seus conterrâneos, sob o pretexto de criar uma sociedade
comunista e coletivista. Dessa forma, quando no início do filme somos sufocados
por imagens ininterruptas de ondas do mar que açoitam a tela, podemos sentir um
pouco da asfixia e desespero com que Panh vive desde sua infância, e somos
então guiados por ele através de uma viagem íntima e assustadora.
Utilizando-se de
imagens de arquivo e outras filmadas com bonequinhos de argila (aparentemente
feitos pelo próprio diretor), A Imagem
Que Falta conta com uma narração em off
(de Randal Douc, mas representando Panh) que surge monocórdia, quase tediosa,
trazendo em si uma espécie de frieza construída com os anos de intenso
sofrimento. As palavras escritas pelo diretor vem, no entanto, repletas de angústia
quase poética ao se referir aos eventos de sua juventude, quando este se
entremeia em reflexões acerca de como no meio da vida a infância volta a
aparecer, e como não parece mais ser tanto ele que busca sua infância, mas como
esta parece buscá-lo. Essa sensibilidade ainda fica evidente quando o diretor
se permite declarada apreciação, que surge doída, por pessoas como seu pai (“Às
vezes, o silêncio é um grito desesperado”) ou sua mãe, em suas silenciosas e
íntimas revoltas, que no fim levaram à ruína dos dois, separadamente. Em outros
momentos, o diretor se entrega a devaneios imagísticos e dolorosamente bonitos,
como os bonequinhos de crianças que acabaram de morrer e então são vistos
voando felizes no céu aberto.
Com os bonecos de
argila, Panh é inteligente ao muitas vezes mostrar um boneco de si mesmo
criança com uma vestimenta distinta do preto coletivo, usando então uma camisa
amarela com toques vermelhos, em tons fortes e chamativos, numa representação
da ser infantil que ainda habitava o seu corpo maltratado. Esse bonequinho em
diversos momentos aparece sentado e com a boca aberta e olhos arregalados, numa
espécie de grito que nunca sai, se posicionando no meio de outros bonecos
trabalhando e sofrendo, numa representação do desespero íntimo que Panh sentia
mas não expressava naquele tempo. Fascinante, diga-se de passagem, é o momento
em que Panh troca fisicamente (vemos
seu braço realizando a ação) seu boneco com uniforme preto pelo de camisa
colorida, num momento em que ele se permite um delírio infantil que o lança
para longe daquela realidade.
Mas Panh ainda consegue
ser objetivo na descrição das atrocidades cometidas pelo Khmer Vermelho, e
assim explora não apenas os atos de violência física, seja na agressão direta, seja
na fome que obrigavam seus “servos” a passar pelo “bem do coletivismo”, ou
ainda mesmo ao serem obrigados a trabalhar escutando slogans sobre a “bondade” do Kampuchea Democrático. Com o pretexto
de estarem construindo uma sociedade igualitária, coletiva e unida, o governo
obriga seus servos a trabalharem brutalmente hoje para “colherem os frutos
amanhã”, como se isso justificasse a brutalidade com que tratava os cambojanos.
O governo ainda utilizava a mídia como forma de propagação de seus valores,
tanto para seus membros, como para o resto do mundo que, ao verem as imagens de
crianças arando terra com um sorriso e uma expressão determinada, parecia não
enxergar os horrores que realmente ocorriam ali.
O pior é que, como
Steve McQueen trabalhou em seu poderoso 12 Anos de Escravidão, esses anos de trabalho forçado e contato direto com a
violência não serviram apenas para machucar no sentido físico, mas para
destruir a sensibilidade e individualidade daquelas pessoas, que em certo ponto
foram obrigadas a adotar a frieza como defesa contra o cotidiano. Assim, só fica
mais triste (e fascinante) que a dor de Panh tenha sobrepujado a frieza, e que
assim o diretor tenha buscado, duas vezes já, propagar para o mundo toda a sua
angústia que por anos foi obrigado a guardar.
Pois A Imagem Que Falta é a segunda tentativa
de Panh de retratar cinematograficamente os eventos que destruíram sua vida. A
primeira vez (que não assisti) lhe soaram insatisfatórias e incompletas. No
entanto, essa segunda acabou caindo na mesma situação, mas Panh aparentemente
amadureceu como ser humano, e compreendeu que por mais que tente, nunca
conseguirá entrar em perfeita harmonia consigo mesmo, não depois de tudo o que
já passou. Li há pouco tempo que “o Cinema é um antídoto para o desamparo”, e
isso é verdade, só que em parte, pois esse antídoto funcionará “apenas” como
uma tentativa de compreensão de algo
que é incompreensível. Como o próprio Panh chega a afirmar, ele nunca
encontrará a imagem que falta, aquela que juntaria tudo num grande painel que
finalmente faria sua vida fazer sentido. E o diretor mostra compreender isso
desde as cenas iniciais, quando filma diversos rolos de filme e negativos
bagunçados, remexidos e estragados, chegando a estar amontoados um em cima do
outro como se, depois de muito trabalho, Panh tivesse aberto mão dessa procura
insana de uma imagem ideal.
Não que por ser conscientemente
apenas uma tentativa seus esforços sejam menos válidos. Como comentei em meu
texto sobre A Grande Beleza, o fazer
Arte pode ser doloroso e até mesmo frustrante, mas também é irresistível como
uma forma de elaboração de uma compreensão do mundo que ninguém além de si
mesmo pode oferecer. Então, assim como Petra Costa no citado Elena, é visível que Panh saiu de sua
nova experiência cinematográfica mais maduro e em melhores termos com o seu
passado. Seus pesadelos e angústias nunca acabarão, mas pelo menos o diretor
parece ter sido capaz de falar, através da Arte, sobre sua devastação
emocional, empreendendo o que foi, tenho certeza absoluta, uma experiência
íntima e difícil.
Como os bonequinhos que
Panh afirma ser tão fáceis de fazer, o ser humano é também extremamente frágil,
e experiências como a que o diretor passou são mais do que suficientes para
destruir o mais forte dentre nós. Sua grande sorte (e de todo o mundo, diga-se
de passagem) é a existência de uma forma de comunicação como a Arte para
expressar um pouco do que sente.
Ótimo - você não acha que este filme deveria ser exibido nas escolas nas aulas de história? Claudio
ResponderExcluirCom certeza seria bastante proveitoso se fosse exibido em aulas de história, geografia e até sociologia...
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