Análise:
Ninfomaníaca – Volume 2 (Nymphomaniac: Volume II / 2014 / Dinamarca, Alemanha, França,
Bélgica, Reino Unido) dir. Lars Von Trier
por
Lucas Wagner
Naquele que é o melhor
e mais definidor momento de Ninfomaníaca– Parte 1, a protagonista Joe, frente a um triste e angustiante evento, não
demonstra as respostas esperadas, como choro e pesar. Ao invés disso, ela fica
sexualmente excitada, sua vagina ficando molhada enquanto seu rosto continuava
impassível e seco.Joe se condicionou tanto a usar o sexo como forma de contato
com o mundo exterior, que também é só a partir de orgasmos que ela consegue
expressar alguma coisa, ou mesmo sentir, o que, infelizmente, é insatisfatório
por si só, e leva a protagonista a buscar alguma forma de sentir que a torne
mais plena, ao mesmo tempo em busca afirmar-se como pessoa.
Logo, por mais mal
aproveitada que tenha sido como personagem, Joe é uma figura complexa e interessante,
e se na primeira parte dessa sua “odisseia sexual”, o diretor e roteirista Lars
von Trier tinha falhado quase totalmente na tentativa de explorar a sua
psicologia, ele faz um trabalho bastante superior nesse Volume 2, não só no desenvolvimento da protagonista, que inclusive
sofre notáveis modificações frente ao visto anteriormente, mas também numa
direção mais sutil e inteligente, conseguindo extrair reflexões não só
interessantes como também importantes.
Ainda assim, seu filme
está à milhas de distância da perfeição, já que o cineasta continua cometendo
muitos erros semelhantes aos de Volume 1,
só que numa menor intensidade. Se lá o que tanto irritava era o tom didático da
narrativa, destruindo basicamente qualquer beleza que os simbolismos traziam
justamente por martelar seus significados através dos diálogos, aqui é
basicamente a mesma coisa, além do fato de von Trier insistir, principalmente através
do personagem Seligman (Stellan Skarsgard), em devaneios intelectuais fora de
hora cujo único objetivo aparente é mostrar os conhecimentos culturais do
diretor. Felizmente, em Volume 2 os
devaneios não se afastam tanto da narrativa a ponto de sugerir uma ligação do
sexo com a sequência de Fibonacci, e surgem até mesmo com sentido,
principalmente quando encontram coerência com a narrativa como um todo e aparecem
em momentos adequados, como é a discussão sobre pedofilia, que, além de bem
pensada, é eficiente por ligar-se com a própria tese do filme. Em outros
momentos, mesmo com coerência narrativa, von Trier peca em discussões pedantes
como aquela em que Seligman explica, didaticamente, a história da Igreja
Ocidental e Oriental, e suas diferenças, com um objetivo de ligar, porcamente,
a jornada de Joe à uma comparação religiosa (e não é só aqui que o filme tenta
isso).
É curioso, no entanto,
como von Trier parece ter consciência do caráter didático da obra, e das
críticas que lhe foram feitas nesse sentido no Volume 1, e aqui chega a brincar com essa característica do filme,
como quando Seligman avisa o tanto que sua história vai parecer uma aula, ou
ainda quando, num momento fenomenal, Joe termina de ouvir um devaneio
particularmente besta de Seligman (como os piores do primeiro filme) e diz:
“Essa foi, com certeza, a sua digressão mais fraca”. Claramente estamos vendo
um pedido de desculpas do diretor pelo seu próprio pedantismo, e eu não me
surpreenderia se cenas e diálogos como esses que descrevi tenham sido gravados
depois do lançamento de Volume 1.E se
isso não redime totalmente o cineasta, é porque ele continua errando, mesmo
cônscio e mesmo brincando com o fato de estar errando; às vezes ele erra até
nas desculpas, como ao tentar justificar a chatice de Seligman pelo fato de
este ser virgem; e não, não estou de zueira. Em outros momentos, von Trier não
resiste e faz auto-homenagens, como ao colocar a música Lascia Ch’io Pianga em um momento praticamente idêntico ao prólogo
de seu Anticristo, quando tocava a
mesma música; mas até que isso não incomoda. Além disso, o inesperado bom humor
do primeiro filme é mantido com qualidade, como na cena envolvendo as colheres
ainda no início da projeção.
Como já dito, von Trier
volta a mostrar maior sutileza na direção, e toma decisões evidentemente
inteligentes. Isso fica claro, por exemplo, na bela (ahem) cena em que Joe leva uma surra sadomasoquista de K
(interpretado de forma extremamente complexa por Jamie Bell, que inclusive
merecia um texto a parte apenas para ser discutida a perfeição de seu trabalho),
e consegue, enquanto apanha, mover sua pélvis de modo a estimular seu clitóris,
sentindo então prazer e dor ao mesmo tempo, e von Trier acerta ao tirar o som diegético
dos golpes e investe numa música sacra e doce, num ótimo exemplo de
subjetividade “mental”. Outros momentos surgem com simbolismos sutis e
intrigantes, como o brinco de P que lembra uma forca, criando uma rima com o
momento em que Joe observa uma árvore torta (representação de sua personalidade?) e se posiciona de um modo que lembra o enforcamento;
essa ligação de elementos encontra um sentido narrativo que é revelado com o
decorrer da projeção e ganha múltiplas interpretações.
O design de produção também tem seus
momentos de destaque, como no estabelecimento de K, com suas cores frias (azul
e cinza) evidenciando a impessoalidade do personagem. Enquanto isso a
fotografia também tem momentos de brilhantismo, como na bela cena do nascer do
sol, bem no fim do filme, quando um tom azulado de amanhecer vai iluminando os
personagens e criando um eco com a metáfora poética do feixe de luz que, com
dificuldade, consegue alcançar um pedacinho do muro em frente ao apartamento de
Seligman.
Em relação
à protagonista, sua jornada ganha contornos mais complexos e tridimensionais, e
é interessantíssimo ver os percalços que Joe percorre para tentar se encontrar
como pessoa, passando de sentimentos de culpa até aqueles de afirmação de seus
desejos, numa coexistência ambígua de elementos desconexos. É interessante
ainda o modo como von Trier troca as atrizes da Joe nova para a mais velha, num
intervalo de apenas três anos na história: enquanto o personagem de Jerome
continua interpretado pelo mesmo Shia Labeouf nesse espaço de tempo, Joe deixa
de ser a bela e jovem Stacy Martin para ser a esquelética e frágil Charlotte
Gainsbourg, numa representação dos sentimentos e estados psicológicos da
personagem. O problema que impede que a protagonista cresça mais está na inexpressiva
performance de Gainsbourg, uma atriz geralmente competente (vide seus trabalhos
em Anticristo, Melancolia, O Jardim de
Cimento, 21 Gramas, etc).
Mas Ninfomaníaca acerta principalmente na
sua tese final, quando parece discursar sobre como a jornada de Joe é admirável
por se tratar de uma mulher buscando afirmar seus prazeres e sua independência,
numa época em que, surpreendentemente, personagens fracas e dependentes de
machos como Bela Swann de Crepúsculo e
Anastasia de Cinquenta Tons de Cinza
ainda causam identificação por parte de várias mulheres/meninas. Como Joe diz
em certo momento: “A sexualidade é a maior força no ser humano”. O modo como
ela busca abraçar esses seus “instintos” e sua fome por prazer, indo contra
dogmas sociais que insistem em dizer como ela está errada, é importante por ser
uma mulher agindo não de maneira tradicional e machista, mas aceitando que sua
sexualidade não é motivo de vergonha ou nojo, mas sim é algo perfeitamente
natural e saudável. E se ela mesma às vezes tem dúvidas e culpa em relação a
seus sentimentos, é porque ela também está inserida num contexto social tão
machista que, mesmo em mulheres liberais, pode causar certo estrago. Pois se
esse filme fosse protagonizado por um homem heterossexual certamente várias das
cenas aqui consideradas obscenas e pesadas não teriam tanta repercussão.
Mesmo com
esses elementos e reflexões admiráveis e tão importantes, Volume 2 cai quando, no terceiro ato, Seligman e Joe mastigam
muitas dessas observações para o espectador, como se von Trier estivesse
inseguro se seria ou não devidamente compreendido. Além disso, determinado
triângulo amoroso quase no fim da obra é uma regressão absurda para um filme
que tinha tomado contornos tão mais complexos, inserindo um elemento de
sentimentalismo irritante, chegando ao ridículo quando Joe joga uma caneca na
parede gritando “Ah! Esse sentimentalismo!!!”, parecendo uma dessas meninas que
ficam chiando no Facebook por causa de seus sentimentos. Mas confesso que a
rima visual com os números da sequência de Fibonacci do início do Volume 1 e que retornam quase no fim de Volume 2 é curiosa e inteligente, por
estabelecer uma ligação entre duas personagem que evidencia um vislumbre no
futuro de uma delas. Infelizmente, mesmo os efeitos anestésicos dessa rima caem
por terra quando von Trier não resiste e abusa de seu trabalho forçando uma
conclusão pessimista, algo feito pelo puro choque.
Aos trancos
e barrancos, Ninfomaníaca é um
esforço ambicioso e importante nessa época em que estamos vivendo. Pode ser um
trabalho inferior na carreira de seu cineasta, mas tem elementos,
principalmente nesse Volume 2, que
fazem valer a pena o ingresso. Infelizmente, o Volume 1 tem que ser assistido antes da segunda parte. Não fosse
por isso, eu até gostaria de revisitar o trabalho de Lars
von Trier.
*Minha
análise de Ninfomaníaca – Volume 1:
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