Análise:
Jogos Vorazes: Em Chamas (The Hunger Games: Catching Fire / 2013 / EUA) dir. Francis Lawrence
por Lucas Wagner
Construindo uma
complexa e intrigante metáfora de uma sociedade hedocapitalista,
vazia e manipuladora que poderia muito bem representar um futuro para a
humanidade atual, Jogos Vorazes apresentava-se
como uma obra mais ambiciosa do que a maioria dos blockbusters
que lotam os cinemas todos os anos. Assim, era uma pena que
a qualidade do longa despencasse tanto a partir do momento em que os referidos
jogos de fato começavam, já que os realizadores então se perderam em um
emaranhado de contradições e situações mal explicadas, sem contar o patético romance
entre Katniss e Peeta. Felizmente, essa segunda parte da saga se revela uma
obra indubitavelmente superior e mais sóbria, que expande com eficácia o teor
critico desse universo.
Começando
bem ao esclarecer que o romance entre Katniss e Peeta não passava de uma farsa
para que ambos conseguissem sair vivos dos jogos, Em Chamas consegue um bom balanceamento no trabalho de suas metáforas,
personagens, e da mitologia criada nos livros de Suzanne Collins (que não li),
demonstrando notável calma no desenvolvimento da trama, que em nenhum momento
sofre com o afobamento típico de grandes produções que querem pular logo para a
ação. Ainda assim, é infeliz, porém necessário ressaltar que os roteiristas
Simon Beaufoy e Michael Arndt pecam gravemente no desenvolvimento do romance
(desta vez, de verdade) entre Katniss e Peeta, já que não encontram uma maneira
adequada de inseri-lo de maneira suave na trama, mas sim o colocam de maneira
afobada numa montagem do tour dos dois personagens
pelos Distritos. A consequência é que, apesar de entendermos racionalmente a aproximação
dos dois, nos sentimos desconectados pela forma abrupta com que é desenvolvido.
Mas
se isso prejudica o filme, Em Chamas possui
atrativo maior ao se focar nas metáforas envolvendo o funcionamento dos
bastidores da sociedade hedocapitalista apresentada. O casal Peeta e Katniss,
tendo vencido os jogos anteriores e se tornado queridos pelo público, se
tornaram um valioso peão para os poderosos usarem no controle das massas. Se
Katniss se tornou sinal de esperança na luta contra a opressão, o plano é criar
uma imagem dela como apoiadora da Capital, numa estratégia de desinformação perfeitamente
cabível na realidade. Aliás, as formas de controle da Capital vão se tornando
cada vez mais explícitas e, ao menor sinal de desordem, soldados (sob ordem
militar) não hesitam em assassinar e/ou torturar cidadãos (e um ponto em que o
filme merece créditos é por não evitar mostrar essas cenas).
Mais
rica se torna a obra se a colocarmos no contexto dos estudos do sociólogo Zygmunt
Bauman, que, ao discorrer sobre os efeitos da globalização, comenta que as
sociedades de Terceiro Mundo, que sofrem com a falta de recursos tecnológicos e
com pobreza, se tornaram espécies de bases sobre as quais se erguem as
sociedades de Primeiro Mundo, que se reconfortam ao vislumbrar o Terceiro Mundo
sofrendo com a miséria. Em Jogos Vorazes, o Terceiro
Mundo é representado pelos Distritos, e o Primeiro Mundo é Panem, a Capital.
Capital essa que, como países do tipo EUA, Inglaterra, França, Japão, etc,
apresentam uma monodisposição para uma vivência voltada para o prazer, onde o
consumismo exagerado é a chave para a felicidade, que só pode ser alcançada
através de experiências máximas/orgásticas. Se no primeiro filme, tais
elementos da sociologia de Bauman já haviam sido bem explorados, aqui voltam a
receber atenção, seja em grandes detalhes (como os figurinos exagerados, as
enormes e espalhafatosas construções de Panem, representando um ápice de uma
sociedade do glamour/prazerosa/orgástica) ou nos mais sutis (a bebida que faz
com que a pessoa vomite, para que possa comer mais, alcançando maior prazer). Assim,
Jogos Vorazes se torna uma distopia difícil de contradizer como
possível profecia.
Grata
surpresa em Em
Chamas é também perceber
como esse acerta onde o anterior mais errou: os jogos. Aqui, finalmente a sensação
de perigo é palpável e constante, e durante todo o tempo em que estão jogando,
tememos pelo destino dos heróis. Os perigos são mais intensos, atingindo os
jogadores tanto física quanto psiquicamente. E mais interessante ainda é como é
ampliada a mitologia da série no contexto psicológico: os traumas causados
pelos jogos são cicatrizes que assombram os Vencedores, que em nada se sentem
honrados por terem sido vitoriosos, e aqui se enraivecem por terem que competir
de novo. Muito mais preocupados em sobreviver e em estabelecer laços do que em necessariamente
matar e vencer, os Vencedores passam por todo o processo de exibição para a mídia
e treinamento de forma automática, compartilhando entre si as dores e tristezas
advindos dos jogos. Assim, Em Chamas ganha um
caráter ainda mais melancólico que o anterior, ressaltado pela direção de
Francis Lawrence (do ótimo Eu Sou a Lenda) em planos
que transmitem tristeza e uma sensação apocalíptica. Ainda assim, é importante
notar que Lawrence não trás nada de novo em relação ao trabalho de Gary Ross no
primeiro filme, e que ainda não se utiliza de recursos tão interessantes como o
seu predecessor usou.
Encabeçando
com maestria habitual um elenco soberbo, Jennifer Lawrence transforma Katniss
numa protagonista ainda mais complexa. Mulher forte e independente, a moça
ainda apresenta um lado mais sensível e sinceramente ferido por suas
experiências nos jogos, e por isso busca certo isolamento no silêncio de
florestas. Katniss se torna mais fascinante por, mesmo indignada com os abusos
da Capital, não agir como uma protagonista clichê e irritante guiada por
princípios abstratos de “certo” e “errado”, mas sim agir de acordo com o
instinto de sobrevivência, até mesmo abaixando a cabeça para o presidente Snow
quando isso é o mais sensato a se fazer. Assim, Lawrence vai trabalhando o lado
duro e o lado sensível de Katniss de modo que possamos perceber quando a necessidade
de uma Revolução passa ser visto em primeiro plano por ela.
Joss
Hutcherson continua fazendo de Peeta um personagem tocante e tridimensional, e
o veterano Donald Sutherland aposta na frieza para interpretar o vilão,
presidente Snow. Infelizmente, Sutherland acaba sofrendo com problemas no
roteiro (e no livro?) que vai acabando
com o personagem quanto mais esse parece mostrar ter alguma rixa pessoal com
Katniss, perdendo a sobriedade que o fazia tão ameaçador. Esse papel acaba
sendo muito melhor representado pelo gênio Phillip Seymour Hoffman (um dos
melhores atores vivo) na pele de Plutarch Heavensbee, um homem ambíguo, frio,
calculista e que se torna um vilão muito mais satisfatório (pelo menos durante
a maior parte da projeção).
A
franquia Jogos Vorazes como um todo pode sofrer de diversos problemas
narrativos que lhe tira um pouco da força, mas esse Em Chamas consegue coloca-la de volta aos trilhos de onde tinha
descarrilhado, aproveitando muito de seu (enorme) potencial. E o gosto de “quero
mais” que fica nos espectadores quando a obra encerra é evidência suficiente de
que as expectativas para a última parte da saga já estão notavelmente altas.
--Minha análise do primeiro filme: https://www.facebook.com/lucas.wagner.549/posts/552754544802651?comment_id=14495768&offset=0&total_comments=7¬if_t=share_comment
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