segunda-feira, 30 de dezembro de 2013


Análise:

Álbum de Família (August: Osage County / 2013 / EUA) dir. John Wells

por Lucas Wagner

Nas peças de Tracy Letts levadas para o Cinema (e roteirizadas por ele mesmo) percebe-se uma habilidade do escritor em levar o espectador à um estado gritante de angústia, contando histórias cujos personagens, figuras sombrias e quebradas, são vítimas de um ambiente aversivo aterrorizante. Em Possuídos, Ashley Judd e Michael Shannon surtavam num exemplo perfeito de folie à deux, e no insano Killer Joe, o assassino do título despejava toda uma perversão sanguinolenta e desconexa em cima de suas pobres vítimas durante 30 desesperadores minutos. O panorama muda em sua nova adaptação, Álbum de Família: agora acompanhamos uma família destruída, repleta de pessoas cuja alma provavelmente está ressecada e apenas os ossos sustentam o corpo.

Assim como Royal Tenenbaum representava uma força sombria que ditou muito do destino de cada membro de sua família, no estupendo Os Excêntricos Tenenbaums, de Wes Anderson, em Álbum de Família a personagem de Meryl Streep, Violet, e sua irmã, Mattie Fae (Margo Martindale), possuem um papel semelhante na vida de seus filhos e netos. Com um grave câncer na boca, Violet encontra a desculpa perfeita para se entupir de drogas, algo que chega ao absurdo de deixá-la com sinais de demência. Criatura amargurada e triste, Violet cresceu em um implacável meio rural que, assim como ocorria com os personagens de Killer Joe, parece ter condicionado todo um repertório comportamental envolvendo atitudes maldosas e mesquinhas (o monólogo em que ela conta um episódio da infância é aterrador). Não que ela queira ser assim, mas simplesmente não consegue evitar. E assim, Meryl Streep se destrói, perde todo o orgulho ao se entregar de corpo e alma para essa mulher assustadora, chocando o espectador desde a primeira cena, quando Violet surge parecendo um zumbi. Streep, mesmo com toda a gritaria e gestos exaltados, a atuação alucinada, permite entrever como aquela mulher é triste, e sentimos pena dela, mesmo quando incomensuravelmente maldosa e dopada.

Diante da convivência com uma mulher como essa, seus filhos e filhas foram obrigados a encontrar alguma forma de se defender, desenvolvendo personalidades tristes que demonstram mecanismos de defesa desesperados (que ficam bem representadas, inclusive, pelo figurino de cada uma das irmãs). Karen (Juliette Lewis) se esconde por trás do noivo rico e de um otimismo exagerado, revelando um certo grau de alienação que a afasta da família, ao mesmo tempo em que o falatório constante impede que outros possam falar, cansando seus interlocutores, talvez seja uma forma patológica de se impor. Ivy (Juliette Nicholson) se esconde no silêncio, evitando revelar sua presença, caracterizando assim uma criatura frágil que na verdade está a ponto de quebrar e, ao ver seu único porto seguro despedaçar, prefere fechar os olhos.

Mas é em Barbara que reside a criatura mais trágica. Erguendo uma armadura de ódio como uma forma de se proteger, a grande ironia envolvendo Barbara é que, por mais sinta aversão de Violet e queira ser o mais distante possível (até mais do que suas irmãs), ela está no caminho de ficar igual a mãe. E, se isso já vai ficando bem evidente no decorrer da projeção, o terceiro ato reserva uma sequência de grande valor simbólico, quando Barbara e Violet encontram-se sozinhas em casa. Julia Roberts, então, abraça todo o potencial dessa personagem e entrega uma de suas melhores interpretações (e a melhor do filme) compondo Barbara com uma fúria palpável, criando uma mulher triste e confusa com seus sentimentos sobre si mesma, sua mãe, seu marido e sua filha (à quem faz um grande esforço para demonstrar carinho), mas que mantém um senso de resiliência admirável, como se o ódio fosse a única maneira que encontrou de se organizar naquele mundo aversivo, embora essa mesma atitude esteja arrastando-a para mais próximo da personalidade da mãe (que também tinha problemas maternos, por sinal).

Ambientando a história (como de praxe) no meio rural, Letts parece usar as pradarias do interior dos EUA com um senso de melancolia até então não presente em suas adaptações. A ambientação ampla, aberta, confere um senso de liberdade, que fica sempre escondida por trás das janelas, cortinas e portas fechadas do casarão da família. O diretor John Wells e o diretor de fotografia Adriano Goldman, por sinal, tem uma boa idéia ao manter o ambiente da casa sempre permeado de sombras, iluminado fracamente por lâmpadas de cor amarelada transmitindo uma noção de podridão/decadência. Ainda, se em Killer Joe o roteirista criava uma longa e angustiante sequência entre quatro paredes onde Matthey McGonaughey torturava sem piedade suas vítimas, aqui temos uma sequência similar e quase tão angustiante quanto, com dessa vez Meryl Streep despejando veneno em cima de seus familiares durante um longo jantar de família (no qual Letts demonstra um senso de humor maldoso quando o personagem de Chris Cooper diz, depois de tanta briga, “acho que estou cheio”, e alguém diz: “ainda tem a sobremesa”).

Com uma enorme quantidade de personagens para analisar, Letts consegue fazer um bom trabalho ao revelar pontos de suas personalidades que os tornam mais complexos, apesar de não ter como mergulhar profundamente em cada um. O roteirista é ajudado nesse processo por um elenco espetacular, com destaque para atuações de Ewan Mcgregor, Benecdit Cumberbatch e Sam Shepard. O primeiro faz do marido de Barbara, Bill, um homem amoroso em conflito, que reconhece seus erros mas também reconhece o que o levou a tal. Cumberbatch cria “Little Charles” como uma figura  mal adaptada que sofreu inúmeros ataques pela sua família e por isso se tornou uma criança no corpo de um adulto sensível e humilde, com medo de fazer mal à qualquer coisa, mas completamente passivo aos abusos da mãe Mattie Fae (quase tão problemática quanto a irmã, Violet). Já Shepard possui apenas uma única cena (a que abre a obra), e faz dela uma das mais profundas do filme, ao evidenciar toda a dimensão da tristeza/nostalgia/dor do patriarca da família, Beverly, um escritor de alma sensível e consumida pelo alcoolismo (uma forma de defesa contra a esposa).

Talvez se tivesse terminado uns cinco minutos antes o filme teria sido ainda melhor, com um poderoso e irônico plano envolvendo uma determinada personagem sozinha e diminuta sentada em uma escada envolvida em trevas. Ainda assim, Álbum de Família é um drama poderoso e impiedoso, com personagens angustiados buscando algum mísero filete de luz que evidencie alguma saída de suas vidas miseráveis.

*Outras análises que escrevi de adaptações de peças de Tracy Letts:



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