Análise:
Álbum de Família (August: Osage County / 2013 / EUA) dir. John Wells
por
Lucas Wagner
Nas peças de Tracy
Letts levadas para o Cinema (e roteirizadas por ele mesmo) percebe-se uma
habilidade do escritor em levar o espectador à um estado gritante de angústia,
contando histórias cujos personagens, figuras sombrias e quebradas, são vítimas
de um ambiente aversivo aterrorizante. Em Possuídos,
Ashley Judd e Michael Shannon surtavam num exemplo perfeito de folie à deux, e no insano Killer Joe, o assassino do título
despejava toda uma perversão sanguinolenta e desconexa em cima de suas pobres
vítimas durante 30 desesperadores minutos. O panorama muda em sua nova
adaptação, Álbum de Família: agora acompanhamos
uma família destruída, repleta de pessoas cuja alma provavelmente está
ressecada e apenas os ossos sustentam o corpo.
Assim como Royal
Tenenbaum representava uma força sombria que ditou muito do destino de cada
membro de sua família, no estupendo Os
Excêntricos Tenenbaums, de Wes Anderson, em Álbum de Família a personagem de Meryl Streep, Violet, e sua irmã,
Mattie Fae (Margo Martindale), possuem um papel semelhante na vida de seus
filhos e netos. Com um grave câncer na boca, Violet encontra a desculpa
perfeita para se entupir de drogas, algo que chega ao absurdo de deixá-la com
sinais de demência. Criatura amargurada e triste, Violet cresceu em um
implacável meio rural que, assim como ocorria com os personagens de Killer Joe, parece ter condicionado todo
um repertório comportamental envolvendo atitudes maldosas e mesquinhas (o
monólogo em que ela conta um episódio da infância é aterrador). Não que ela
queira ser assim, mas simplesmente não consegue evitar. E assim, Meryl Streep
se destrói, perde todo o orgulho ao se entregar de corpo e alma para essa
mulher assustadora, chocando o espectador desde a primeira cena, quando Violet
surge parecendo um zumbi. Streep, mesmo com toda a gritaria e gestos exaltados,
a atuação alucinada, permite entrever como aquela mulher é triste, e sentimos
pena dela, mesmo quando incomensuravelmente maldosa e dopada.
Diante da convivência
com uma mulher como essa, seus filhos e filhas foram obrigados a encontrar
alguma forma de se defender, desenvolvendo personalidades tristes que demonstram
mecanismos de defesa desesperados (que ficam bem representadas, inclusive, pelo figurino de cada uma das irmãs). Karen (Juliette Lewis) se esconde por trás
do noivo rico e de um otimismo exagerado, revelando um certo grau de alienação
que a afasta da família, ao mesmo tempo em que o falatório constante impede que
outros possam falar, cansando seus interlocutores, talvez seja uma forma
patológica de se impor. Ivy (Juliette Nicholson) se esconde no silêncio,
evitando revelar sua presença, caracterizando assim uma criatura frágil que na
verdade está a ponto de quebrar e, ao ver seu único porto seguro despedaçar,
prefere fechar os olhos.
Mas é em Barbara que
reside a criatura mais trágica. Erguendo uma armadura de ódio como uma forma de
se proteger, a grande ironia envolvendo Barbara é que, por mais sinta aversão
de Violet e queira ser o mais distante possível (até mais do que suas irmãs),
ela está no caminho de ficar igual a mãe. E, se isso já vai ficando bem
evidente no decorrer da projeção, o terceiro ato reserva uma sequência de
grande valor simbólico, quando Barbara e Violet encontram-se sozinhas em casa. Julia
Roberts, então, abraça todo o potencial dessa personagem e entrega uma de suas
melhores interpretações (e a melhor do filme) compondo Barbara com uma fúria
palpável, criando uma mulher triste e confusa com seus sentimentos sobre si
mesma, sua mãe, seu marido e sua filha (à quem faz um grande esforço para
demonstrar carinho), mas que mantém um senso de resiliência admirável, como se
o ódio fosse a única maneira que encontrou de se organizar naquele mundo
aversivo, embora essa mesma atitude esteja arrastando-a para mais próximo da
personalidade da mãe (que também tinha problemas maternos, por sinal).
Ambientando a história
(como de praxe) no meio rural, Letts parece usar as pradarias do interior dos
EUA com um senso de melancolia até então não presente em suas adaptações. A
ambientação ampla, aberta, confere um senso de liberdade, que fica sempre
escondida por trás das janelas, cortinas e portas fechadas do casarão da família.
O diretor John Wells e o diretor de fotografia Adriano Goldman, por sinal, tem
uma boa idéia ao manter o ambiente da casa sempre permeado de sombras,
iluminado fracamente por lâmpadas de cor amarelada transmitindo uma noção de
podridão/decadência. Ainda, se em Killer Joe o roteirista criava uma longa e angustiante sequência entre quatro
paredes onde Matthey McGonaughey torturava
sem piedade suas vítimas, aqui temos uma sequência similar e quase tão
angustiante quanto, com dessa vez Meryl Streep despejando veneno em cima de
seus familiares durante um longo jantar de família (no qual Letts demonstra um
senso de humor maldoso quando o personagem de Chris Cooper diz, depois de tanta
briga, “acho que estou cheio”, e alguém diz: “ainda tem a sobremesa”).
Com uma enorme
quantidade de personagens para analisar, Letts consegue fazer um bom trabalho
ao revelar pontos de suas personalidades que os tornam mais complexos, apesar
de não ter como mergulhar profundamente em cada um. O roteirista é ajudado
nesse processo por um elenco espetacular, com destaque para atuações de Ewan
Mcgregor, Benecdit Cumberbatch e Sam Shepard. O primeiro faz do marido de
Barbara, Bill, um homem amoroso em conflito, que reconhece seus erros mas
também reconhece o que o levou a tal. Cumberbatch cria “Little Charles” como uma
figura mal adaptada que sofreu inúmeros
ataques pela sua família e por isso se tornou uma criança no corpo de um adulto
sensível e humilde, com medo de fazer mal à qualquer coisa, mas completamente
passivo aos abusos da mãe Mattie Fae (quase tão problemática quanto a irmã,
Violet). Já Shepard possui apenas uma única cena (a que abre a obra), e faz
dela uma das mais profundas do filme, ao evidenciar toda a dimensão da
tristeza/nostalgia/dor do patriarca da família, Beverly, um escritor de alma
sensível e consumida pelo alcoolismo (uma forma de defesa contra a esposa).
Talvez se tivesse
terminado uns cinco minutos antes o filme teria sido ainda melhor, com um
poderoso e irônico plano envolvendo uma determinada personagem sozinha e diminuta
sentada em uma escada envolvida em trevas. Ainda assim, Álbum de Família é um drama poderoso e impiedoso, com personagens
angustiados buscando algum mísero filete de luz que evidencie alguma saída de
suas vidas miseráveis.
*Outras análises que escrevi de adaptações de peças de Tracy Letts:
--Killer Joe - Matador de Aluguel: http://mestredeobras.blogspot.com.br/2012/12/critica-filme-killer-joe-matador-de.html
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