domingo, 3 de fevereiro de 2013



Crítica "Eu e Você" (Io e Te / 2012 / Itália) dir. Bernardo Bertolucci

por Lucas Wagner


  Bernardo Bertolucci tem um quedinha por temas polêmicos, como já ficou claro em filmes como Último Tango em Paris, Os Sonhadores, Beleza Roubada, etc. Muitas vezes, cineastas assim não me atraem muito por me transmitirem a impressão de que querem fazer carreira com base no choque que causam nos espectadores mais do que exatamente na qualidade e complexidade do que querem transmitir. Alguns desses cineastas, no entanto, muitas vezes trabalham os temas polêmicos de modo a explorar melhor temas complexos ou a profundidade de seus personagens. Lars Von Trier, Pedro Almodóvar e o próprio Bertolucci são cineastas assim, que, de vez em quando, pecam por se focar apenas na “polemicidade” de seus projetos, mas quando acertam, acertam bonito. Dito isso, um dos temas mais caros a Bertolucci parece ser o incesto, e toda sua carga polêmica que já procurou trabalhar em outros filmes seus. Assim, depois de quase 10 anos desde que realizou o regular Os Sonhadores (filme não muito bom – embora ver Eva Green nua seja sempre algo muito bem vindo – mas amado pelos hipsters), o cineasta volta com um longa mais sensível do que está acostumado a trabalhar, buscando explorar a atormentada vida de um adolescente solitário.

  O roteiro do próprio diretor centra-se na vida de Lorenzo (Jacopo Olmi Antinori), que prefere muito mais ficar sozinho do que ter outra pessoa por perto. Assim, para não preocupar a mãe, finge que vai para uma excursão com a escola em um feriado, mas na verdade se esconde no porão de seu prédio, pretendendo passar uma semana de alegre solidão. Seus planos parecem ir por água abaixo quando sua meia-irmã, Olívia (Tea Falco) aparece exigindo se esconder com ele, enquanto passa por um doloroso processo de recuperação do uso de heroína.

  Como se trata de um longa de Bertolucci, eu esperava, ao ler a sinopse, quase que infinitas cenas de sexo selvagem entre Lorenzo e sua meia-irmã, mas me surpreendi pela abordagem bem mais sutil escolhida pelo cineasta. Um exemplo bem claro é no que se refere às formigas, geralmente símbolo do formigamento que sentimos quando sexualmente excitados (simbologia que Luis Buñuel também usou em alguns filmes seu, e a grande escritora Lygia Fagundes Telles explorou em vários contos): o diretor retrata o início da paixão que Lorenzo sente por Olívia quando o vidro em que carrega o seu formigueiro quebra, e as formigas são liberadas, o que, não por acaso, acontece temporalmente próximo do acesso de ciúme do jovem por um “amigo” de Olívia. Podemos ler esse símbolo como sendo que o protagonista mantinha seus desejos sexuais mais ou menos em “ordem” (ou pelo menos é o que ele achava) dentro de si, e que são liberadas pelo relacionamento com a meia-irmã. Ainda, o diretor é sutil nessa abordagem ao mostrar momentos como o que  Olívia tem que passar pelo irmão que está dormindo ao seu lado, e praticamente se esfrega nele; ou ainda temos o meu momento favorito do filme, quando os dois dançam ao som de “Regazzo Solo, Regazza Sola” de David Bowie, e os carinhos e apertos dos dois sugerem uma sensualidade bem maior do que a usualmente existente entre irmãos (e se prestarmos atenção na letra da música, fica ainda mais evidente o talento de Bertolucci, já que a letra cola perfeitamente com o que os dois estão vivendo). Como o roteiro é focado mais no amadurecimento sexual e emocional de Lorenzo, o diretor busca trabalhar isso tudo da perspectiva de um adolescente de 14 anos, onde poucas coisas e poucos gestos, muitas vezes adquirem significados bem maiores em suas jovens “mentes” (o que me lembrou o maravilhoso Moonrise Kingdom, de Wes Anderson).

  Bertolucci se mostra ainda inteligente ao retratar o isolamento voluntário do protagonista. Este muitas vezes coloca seus fones de ouvido para evitar ter que interagir com outras pessoas, e o diretor é genial ao, numa das primeiras cenas, criar um plano onde Lorenzo aparece à direita (ponto mais forte da tela), escutando música com seus fones de ouvido, e uma outra pessoa está passeando com um cachorro, se localizando no canto esquerdo da tela (ponto mais fraco) e ainda completamente fora de foco, já que o diretor, inteligentemente, emprega uma profundidade de campo reduzida nesse momento. Ainda, Bertolucci vai mergulhando mais e mais no protagonista, desvendando aspectos de sua personalidade de modo a torná-lo mais complexo.

  Lorenzo é um rapaz que opta pela solidão, e aparentemente não sofre muito com isso. No entanto, no fundo ele anseia por contato humano, mas não consegue, já que parece olhar as outras pessoas com uma curiosidade quase que científica (atentem para o momento em que observa a irmã dormindo), e, quando interage com outros, parece querer se colocar como que num plano superior, numa clara demonstração de narcisismo (como quando tenta conversar com um trabalhador numa loja de animais). Isso tudo é perfeitamente bem demonstrado pela sua escolha de ter comprado o formigueiro, que permite olhar para aqueles seres vivos (as formigas) como se ele fosse uma espécie de Deus (outro simbolismo presente no formigueiro). E sua visão de mundo, de como os outros o veem é maravilhosamente ilustrada na cena em que imagina um dialogo de seus pais sobre ele, em que os vemos como que quase caricaturas, com roupas brilhosas num ambiente irreal, enquanto procuram por um sapato e depois dançam, ao mesmo tempo em que conversam sobre o filho, ou seja, como se na verdade não se importassem com ele.

  No entanto, tudo isso vai mudando quando seu arco dramático se inicia de fato, e seu relacionamento com a irmã começa a acontecer. Lorenzo é muito reprimido sexualmente, ainda sendo capaz de apresentar sinais indubitáveis de complexo de Édipo, como fica bem claro na conversa que tem com a mãe em um restaurante. Nessa mesma conversa, fica evidente que seus impulsos sexuais estão quase explodindo dentro dele, embora ele, conscientemente, não se preocupe muito com sexo. Esses impulsos sexuais começam a se aflorar mesmo no contato com a irmã, principalmente depois que vê as fotos sensuais que ela tirou. Mais importante ainda é que, no contato com a irmã, os desejos sexuais e emocionais de contato humano se organizam, e o permitem amadurecer nessas áreas. Dessa forma, o plano final do filme é eficiente (mesmo que meio tosco) por mostrar um Lorenzo mudado, sorrindo com a perspectiva de um futuro diferente.

  Infelizmente, Olivia não é uma personagem tão interessante como o irmão. Mesmo sofrendo com um futuro embaçado e pelo uso de drogas, Olivia nunca deixa de ser unidimensional, algo que, felizmente, é balanceado pela excelente atuação de Tea Falco, que confere força e verossimilhança à personagem, o que impede que o filme seja corroído por artificialidade. Já Jacopo Olmi Antinori está ótimo como Lorenzo, e ilustra bem as ambiguidades do jovem. É um ator promissor.

  Eu e Você é um longa tocante e muito bem realizado, que fica ainda melhor por contar com uma trilha sonora excepcional com musicas de David Bowie, Red Hot Chillipeppers, The Cure, etc. No fim, esse novo excelente longa de Bertolucci funciona ainda como uma bela sessão dupla com outro belo filme, As Vantagens de Ser Invisível, que também funciona como um estudo de um adolescente solitário. Mas Eu e Você tem em Lorenzo um jovem mais obscuro do que o Charlie daquele filme, o que não deixa de tornar a relação entre os dois trabalhos ainda mais interessante. Enfim, Eu e Você é um belo longa, e uma joia na carreira de Bertolucci, apesar de menos ambicioso do que muitos projetos dele.

3 comentários:

  1. Lucas
    gostei muito da sua crítica e principalmente de algumas simbologias que não tinha pensado, a do formigueiro como o formigamento. Concordo muito com a parte que esse é um Bertolucci menos Bertolucci e acho que esse é o grande ganho do filme, a grande surpresa.
    Gostei muito do filme, mais até que de 'Os Sonhadores'

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  2. Parabéns pela crítica!
    "Eu e você" é realmente um um filme complexo em suas sutilezas, o que o torna um grande filme!

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